Problema atinge 18% das gestantes brasileiras. Documentário mostra que a realidade do DF é parecida
“Para mudar o mundo é preciso mudar primeiro a forma de nascer”. A frase de Michel Odent, defensor do parto humanizado, encerra o trabalho de conclusão de curso de um grupo de alunas de Direito. O documentário, intitulado A dor além do parto, trata da violência sofrida pelas gestantes no Brasil e já tem mais de 50 mil visualizações no YouTube. Levantamento do Ministério da Saúde, iniciado em julho do ano passado, confirma o problema: 18% das 246 mil pesquisadas alegam ter sofrido algum tipo de violência durante o parto pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O promotor de Justiça do DF Diaulas Ribeiro é uma das pessoas ouvidas pelo documentário. Segundo ele, a violência no parto coloca a obstetrícia no primeiro lugar do ranking de erros médicos. “É a especialidade com o maior número de ocorrências, sejam relacionadas a lesão corporal ou a mortes. Isso quer dizer que 70% de tudo o que o Ministério Público apura, no quesito erros médicos, está ligado à obstetrícia”, explica. Esther Vilela, do Ministério da Saúde, também participou do trabalho. Para ela, a violência no parto, seja de que tipo for, configura uma penalização à mulher. “É uma agressão colocá-la na pior sala do hospital, sem janela, com outras parturientes e sem poder se alimentar. Muitas vezes ela vai passar as próximas dez, 12h de trabalho de parto ali. Isso é considerado violência”, conta. A técnica de enfermagem Pollyane Rosa, 32, foi uma dessas vítimas. Ela relatou os momentos difíceis no filme. “Fiquei um dia inteiro com a camisola suja de sangue. As enfermeiras não me deixavam trocar de roupa. Passei três dias sem escovar os dentes e pentear o cabelo. Eu sabia que estava sendo vítima de algum tipo de violência, mas a gente se preocupa tanto em não perder o bebê que isso fica em segundo plano”, diz. Versão oficial Procurada, a Secretaria de Saúde afirmou que não tem registros sobre violência obstétrica. Segundo a pasta, a rede pública faz, em média, 45 mil partos anualmente. De janeiro a abril deste ano, foram 8,7 mil partos, dos quais 5,3 mil foram normais. O parto normal é majoritário na rede, diz o órgão, mas a secretaria presta assistência aos casos mais complexos, que necessitem de intervenção cirúrgica. Já o Ministério da Saúde informou ter criado, em 2011, a Rede Cegonha. De acordo com o órgão, o programa foi implementado com o objetivo de aumentar o apoio à gestante e reduzir qualquer incidência de violência obstétrica. “A iniciativa incentiva o parto normal humanizado e intensifica a assistência integral à saúde de mulheres e crianças, desde o planejamento reprodutivo, passando pela confirmação da gravidez, pré-natal, parto, pós-parto, até o segundo ano de vida do filho”. Deboche na sala de parto Maiara Cristina Rocha, de 18 anos, passou por constrangimentos na hora de dar à luz. “Para começar, tive que brigar para entrar com um acompanhante porque eles diziam que não tinha espaço. Depois, na hora do parto mesmo, me deram um pano para morder para não gritar e ainda tive que ouvir de uma enfermeira: ‘na hora de fazer é bom, né?’”, denuncia. Maiara também conta que assim que a filha nasceu, no inverno, não havia sequer um cobertor para embrulhá-la. “Um momento que era para ser bom virou um pesadelo”, diz. Além da violência moral e verbal, também podem ser consideradas agressões a parturiente práticas como romper a bolsa, colocar medicamentos para acelerar as contrações e proceder a episiotomia – corte na vulva ou na vagina afim de aumentar o canal para a passagem do bebê – sem necessidade. Segundo o pesquisador Carlos Antônio Montenegro, no livro Obstetrícia Fundamental, a técnica só é realmente necessária em 10 a 15% dos casos, apesar de ser utilizada em 90% dos partos realizados na América Latina. Negligência resultou em morte Tanta falta de respeito ao ser humano pode culminar em um desfecho trágico. Foi o que aconteceu com Sheila Britto de Souza, dona de casa, de 38 anos. Ela deu à luz o primeiro filho em abril de 2010, em um hospital particular do DF, visando conforto e atendimento de excelência, mas não podia imaginar os transtornos que estariam por vir. “Como minha cunhada havia feito o parto no mesmo local e correu tudo bem, achei que era confiável. O que eu não sabia é que o hospital não possuía Unidade de Terapia Intensiva (UTI)”, conta. Assim que o bebê nasceu, apresentou um aparente desconforto e não conseguiu mamar. “Mandei chamar a enfermeira, que demorou a vir. Quando ela viu o estado dele, conversou com o médico de plantão e eles o mandaram para o oxigênio. Nessa hora, já preocupada, pedi para meu marido ficar de olho, porque era nítido que ele não estava nada bem”, lembra. DESESPERO Quando o marido de Sheila questionou a enfermeira sobre o estado da criança, teve que ouvir um sonoro “eu já falei que ele está bem e não tenho mais satisfação para te dar” da enfermeira, atravessado até hoje em sua garganta. Com a mudança de plantão, mais uma tentativa. “Meu marido tentou falar com a médica e quase foi agredido pelo segurança do hospital”. Nesse intervalo, o bebê teve uma parada respiratória no berçário, percebida tardiamente pela enfermeira que estava conversando no corredor. “Ninguém tomava providências e eu ouvia meu esposo gritando para poder falar com a médica. Foi nessa hora que arranquei o soro e desci correndo e sangrando até lá. Quando meu marido conseguiu falar com a plantonista, descobriu que ela sequer sabia que havia um bebê em atendimento. Ela ainda subiu e tentou reanimá-lo, mas não teve sucesso”, conta. Trabalho de utilidade pública A advogada Amanda Rizério, 24 anos, é uma das autoras do documentário A dor além do parto. A ideia de abordar o tema surgiu do interesse em fugir do trivial. “Não queríamos assuntos clichês do direito, e queríamos algo mais dinâmico. Procuramos um tema que tivesse utilidade pública”, conta. Após uma colega ter assistido a uma reportagem sobre violência obstétrica, o grupo achou o tema interessante e passou a questionar mulheres próximas sobre esse tipo de agressão. Para sua surpresa, quase todas já haviam sofrido algum tipo de violência no parto. “As pessoas passaram a aceitar o parto com um momento de sofrimento. A dor é inevitável, mas o sofrimento pode ser minimizado”, garante Amanda. Para ela, no Brasil, as mães costumam ser deixadas de lado nesse momento. “O importante é tirar o bebê, a mãe é completamente esquecida”, completa. A servidora Letícia Campos, 23 anos, e as advogadas Natália Machado, 24, e Raísa Cruz, 22, são as outras autoras do trabalho. O vídeo foi postado no YouTube no Dia Mundial de Combate à Violência contra a Mulher, em 25 de novembro, várias entidades se interessaram e ajudaram na divulgação. Família processa hospital O filho recém-nascido de Sheila chegou em estado gravíssimo ao hospital para o qual foi transferido, em Taguatinga, e não resistiu. “Não recebemos nenhum auxílio do hospital depois do ocorrido. Inconformados com tamanha negligência, abrimos um processo contra o hospital. Isso me causou traumas enormes. Passei um bom tempo com medo de ser mãe e depois, quando decidi que queria tentar novamente, demorei a conseguir engravidar. Penso no meu filho todos os dias. A gente se acostuma com a dor, mas ela nunca passa”, lamenta. Segundo o laudo do Instituto Médico Legal (IML), o bebê sofria de Síndrome da Angústia Respiratória Aguda. O problema, no entanto, tem cura e é de fácil solução. O segundo filho de Sheila nasceu com a mesma doença, mas, graças ao atendimento de qualidade recebido logo após o parto, sobreviveu e leva uma vida normal. Muitos médicos, porém, negam que a violência obstétrica exista, já que aprenderam tais procedimentos em suas graduações e as práticas continuam sendo utilizadas. De acordo com Alisson Zanatta, diretor de comunicação da Associação de Ginecologia e Obstetrícia do DF, o termo “violência” – que diz respeito ao constrangimento físico ou moral de submeter alguém à vontade de outrem – pode ser constatado em diversas situações da prática obstétrica, como o jejum durante o trabalho de parto, a falta de um acompanhante a parturiente e procedimentos obstétricos porventura desnecessários. “Devemos enfatizar, entretanto, que não foram os médicos que criaram esse modelo. Eles também são vítimas, no tocante às condições de trabalho. Há de se ter cuidado para não apresentar o médico como um inimigo, frio e desumano, único responsável pelos infortúnios ocorridos”, aponta. Humilhação x reação Pesquisa da Fundação Abramo, de 2010, destacou que 23%, das 2,3 mil entrevistadas foram submetidas a alguma forma de xingamento ou humilhação na hora do parto. Os abusos aconteceram em hospitais públicos e privados. O Ministério Público só age nesses casos de violência obstétrica se for provocado, ou seja, se receber uma solicitação da vítima. De acordo com o promotor Diaulas Ribeiro, os conselhos profissionais são constantemente acusados de negligência no processamento da sindicância das causas, mas, ainda assim, condenam mais do que o sistema de Justiça tradicional. Por isso, uma outra opção é abrir uma reclamação junto ao Conselho Regional de Medicina. “A cassação de um registro médico equivale à morte da pessoa no âmbito profissional. Quem é cassado nunca mais pode exercer a profissão, nem se fizer outro curso superior”, esclarece o promotor de Justiça do DF. Ponto de vista De acordo com Alessandra Arais, psicóloga especialista em obstetrícia, consultada para o documentário, o momento do parto é potencialmente crítico. “Se uma mulher nunca teve problemas mentais, tem 25% de chance a mais de ter nessa fase da vida. Isso porque em função da instabilidade hormonal, entre outros fatores, está sensível e deveria receber uma atenção especial”. Segundo ela, em alguns casos o trauma é tão grande que as mulheres precisam de ajuda psiquiátrica. “Normalmente elas não buscam ajuda e a depressão pós parto é subdiagnosticada, fazendo com que essas mães sofram sozinhas. Elas não têm coragem de dizer que estão com o bebê e mesmo assim estão tristes”, alerta. E, para o psicólogo Luiz Flávio Mendes, o direito a um acompanhante é indispensável em todos os momentos da gestação. “A companhia é muito importante, já que essa é uma fase em que a mulher está cercada de medos e muitas vezes com baixa autoestima”, resume. Ludmila Rocha |
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Fonte: Jornal de Brasília
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