Há exatos 40 anos, no dia 19 de junho de 1975, começava a primeira Conferência Mundial das Nações Unidas sobre as Mulheres com três objetivos prioritários: igualdade, desenvolvimento e paz. Foi nessa conferência que se instituiu o 8 de março como o Dia Internacional da Mulher.
Quatro décadas de luta contra a desigualdade de gênero e a discriminação das mulheres resultaram em importantes conquistas, principalmente no acesso à educação e ao mercado de trabalho. Mas em relação à violência, o caminho ainda parece ser longo. “Não tenho expectativa de que daqui a cinco anos não haverá mais violência contra as mulheres. Sequer durante toda a minha vida”, diz Joana Chagas, da ONU Mulheres, em entrevista à DW Brasil. Recentemente, dois crimes chocaram o país. Na pequena Castelo do Piauí, no interior do estado nordestino, quatro adolescentes foram brutalmente violentadas por jovens de idade semelhante – uma das vítimas não resistiu aos ferimentos e morreu no dia 7 de junho. Em Araçatuba, interior de São Paulo, uma jovem de 20 anos foi estuprada, morta e jogada em um rio. Crimes como esses entram na estatística do feminicídio (ou femicídio), termo que designa o assassinato de um mulher por razões estritamente de gênero. A capital federal, Brasília, registrou no dia 2 de junho seu primeiro caso desde que a lei do feminicídio foi sancionada, em março. Um ex-policial militar teria matado a companheira a socos. Joana Chagas acompanha o protocolo sobre feminicídio e ações na área de eliminação da violência contra mulheres e meninas no Brasil e conversou com a DW a respeito do tema. Educação, punição e proteção seriam, para ela, a tríade a ser colocada em prática para evitar que mais mulheres sejam agredidas. Joana Chagas, da ONU Mulheres Brasil DW Brasil: Dezesseis países da América Latina e do Caribe adotaram medidas para combater e punir o feminicídio. Estamos enfim aptos a reduzir o número de mulheres assassinadas? Joana Chagas: A violência contra a mulher é um processo que demanda tempo para enfrentar. Não tenho expectativa de que daqui a cinco anos não haverá mais violência contra as mulheres. Sequer durante toda a minha vida. Em oito anos, a Lei Maria da Penha diminuiu em 10% os homicídios de mulheres. Isso demonstra que leis efetivamente aplicadas podem reduzir crimes e mandar uma mensagem à sociedade: a de que esses crimes não são tolerados. Mas somente leis não respondem a todo o problema. O que mais precisa ser feito? Na verdade, [o combate à violência contra a mulher] começa na escola, na família, na comunidade, no ambiente de trabalho, nas ruas. Na escola, por meio de uma educação que promova papéis de gêneros que valorizem a mulher e desvalorizem uma masculinidade violenta. Que valorizem a igualdade de gênero, a liberdade e uma vida livre de violência. Acredito que a violência pode estar aumentando porque cada vez mais mulheres participam da vida pública, da vida produtiva… Por que isso seria uma causa? Isso poderia vir como uma resposta conservadora para que as mulheres voltem aos seus “lugares tradicionais”. Se trabalharmos desde a infância desconstruindo esses papéis, da mulher como mãe, restrita ao ambiente privado, e do pai como provedor, no ambiente público, poderemos construir imagens de homens e mulheres em pé de igualdade, prevenindo uma violência futura. O ambiente de trabalho, em certas situações, também pode ser complicado. Há a questão do assédio, que precisa ser combatido com mais participação, possivelmente com mais mulheres em cargos de decisão, nos quais as mulheres ainda estão menos representadas. Nas ruas, a questão é a não tolerância com o assédio, por meio de campanhas. O transporte público é um bom exemplo disso. A adoção de vagões de metrô exclusivos para mulheres, por exemplo, ajuda a inibir ou estimula a cultura do assédio? Esse é um exemplo que causa opiniões contraditórias. Por um lado, devido à situação atual de violência e assédio, as mulheres que têm a possibilidade de usar um vagão somente para elas sentem-se muito mais tranquilas. Se perguntarmos, não tenho dúvidas de que elas dirão que a ação é positiva. Por outro lado, a mensagem é complicada porque não estamos indo à raiz do problema. São as mulheres que têm de usar outro vagão. Não os homens, que são os agressores. Soa praticamente como um retrocesso. O ideal é ter pacotes complementares, ou seja, a possibilidade de oferecer proteção, mas também tratar os agressores, o problema, para que possamos, daqui a dois, cinco, 10 anos, eliminar esse vagão [exclusivo às mulheres]. Pode até ser necessário, mas não deve ser a única política. Sozinha, essa política não vai resolver o problema. Entre 84 países, o Brasil é o sétimo no ranking de assassinatos de mulheres. Além disso, segundo o Ministério da Saúde, são de 40 a 50 mil atendimentos anuais devido à violência doméstica. Há distinção de classe, cor, religião nessa conta ou a violência está em todos os lugares, em todas as classes? No caso do Brasil, é muito difícil falar sobre violência sem fazer um recorte de raça e de classe social. A violência está mais concentrada nas classes mais pobres, na qual a maioria é negra e marginalizada. No entanto, a violência acontece em todos os lugares. Não há como ignorar o fato de que em todas as classes, religiões, em todas as famílias há violência. É muito difícil, para as mulheres, assumirem que já sofreram violência. E a maior parte das mulheres assassinadas, no país, está na faixa dos 20 aos 39 anos. É a faixa das relações, em que o controle e a possessividade são mais complicados. Falando em feminicídio, por que existe um termo específico para definir o assassinado de mulheres? A importância do termo específico é porque essa é uma violência diferente. Homens e mulheres morrem de maneiras diferentes. O feminicídio é o homicídio de mulheres causado por razões de gênero. A maioria tem requintes de crueldade, com mutilação dos corpos, principalmente em áreas características das mulheres, como seios, genitais, rosto, olhos, sem contar a tortura. Obviamente, há homicídios semelhantes de homens. Mas, no caso do feminicídio, está presente na maioria dos casos. São crimes que podem ser evitados porque sabemos quem é o agressor, a partir de um ciclo de violência anterior. Quem é o agressor? Na maioria dos casos são companheiros ou ex-companheiros. Por volta de 60% dos agressores são pessoas que tiveram relações íntimas com as mulheres. Também há, em segundo lugar, a família: pais, irmãos, padrastos, pessoas ligadas por laços familiares. E também, em menor número, pessoas desconhecidas. Apesar do feminicídio ser, sim, um resultado extremo de um ciclo de violência doméstica, ele não ocorre somente via parceiros ou ex-parceiros e apenas no ambiente doméstico. Há 50 mil estupros por ano no país. O número oficial já é assustador. Há estimativas sobre quantos casos não são registrados? Sim. Existem alguns cálculos e estimativas mundiais que indicam que somente um terço dos estupros são registrados. E aí esse número poderia ser triplicado, o que é ainda mais chocante. O que decepciona mais: que os números sejam tão altos ou que as mulheres tenham tanto medo de denunciar, o acaba diminuindo a estatística, a investigação e a punição? Difícil escolher. Os dois são horríveis, obviamente. É preocupante que exista tanto estigma e que as mulheres não busquem os postos de saúde e delegacias para registrar os casos. Em relação ao estupro, há preocupações quanto à saúde, para evitar gravidez indesejada ou contaminação por doenças sexualmente transmissíveis, e também quanto à punição. Queremos que os agressores sejam punidos pelos crimes cometidos. Para isso, as mulheres agredidas não podem se sentir envergonhadas.
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Fonte: DW Brasil
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