Um terço das mulheres mortas no país em 2020 morreu apenas por ser mulher. A porcentagem de feminicídios no universo de todos os assassinatos de brasileiras foi de 35%, patamar que se manteve com relação ao ano anterior.
Esse número, porém, pode estar aquém da realidade, já que a classificação da ocorrência na hora do registro depende pessoalmente do delegado ou da delegada que investiga o óbito, ainda que baseada em critérios.
Desde que a lei que especifica o crime foi criada, em 2015, as notificações desse tipo de assassinato só crescem apesar do endurecimento das punições, segundo o 15º anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, lançado nesta quinta (15) com dados dos estados.
O Código Penal determina que a morte é um feminicídio quando envolve violência doméstica, familiar e “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. É um agravante do homicídio comum, com pena prevista de 12 a 30 anos atualmente.
Serviu ao caso de Vitórya Melissa Mota, 22, por exemplo. A estudante de enfermagem estava na praça de alimentação de um shopping em Niterói (RJ) quando foi esfaqueada por um colega de turma, em junho. Ele foi preso em flagrante e denunciado.
No último ano, foram pelo menos 1.350 mulheres assassinadas dessa forma, número semelhante ao que a Folha já havia coletado junto às secretarias de Segurança Pública no mês passado (1.338). Isso significa uma vítima a cada seis horas e meia.
O cenário, mais uma vez, pode ser ainda pior, já que não há padronização na coleta e divulgação dos dados por alguns estados. O Ceará, por exemplo, não discrimina o feminicídio nas estatísticas e registrou apenas 27 ocorrências, quase metade do contabilizado por acadêmicos independentes da Rede de Observatórios da Segurança.
No início de 2020, o então ministro da Justiça, Sergio Moro, chegou a sinalizar que implantaria um sistema nacional para consolidar e divulgar esse tipo de informação, mas ele foi demitido e até hoje esse sistema não existe. Por enquanto há apenas um projeto em desenvolvimento.
Segundo o anuário, os estados com maiores taxas do crime estão concentrados nas regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste. O índice do Mato Grosso, por exemplo, é o triplo (3,6 mortes por 100 mil mulheres) da média nacional (1,2). Os próximos da lista são Mato Grosso do Sul, Roraima e Acre.
O crescimento dos feminicídios notificados no ano passado, de 2%, foi mais tímido do que nos anos anteriores, possivelmente por causa da pandemia. Quase todos os registros de violência contra a mulher feitos pelas delegacias caíram no período.
Foi o caso dos crimes de assédio (-21%), ameaça (-11%) e violência doméstica (-7%). Estupro e estupro de vulnerável, que vinham crescendo desde 2016, também diminuíram (-13%). O único que não teve redução foi a importunação sexual (+12%), quando alguém pratica um ato libidinoso como a masturbação na presença do outro sem consentimento.
O que para especialistas não quer dizer que essas agressões diminuíram. Pelo contrário: os pedidos de socorro ao número 190, das polícias militares, saltaram 16% de 2019 para 2020, e as medidas protetivas concedidas pelos Tribunais de Justiça cresceram 4%.
O tema ganhou mais um episódio de grande repercussão na última semana, quando a ex-mulher do músico Iverson Araújo, conhecido como DJ Ivis, publicou imagens de socos, tapas e empurrões sofridos por ela, certas vezes com a filha do casal nos braços . Ele foi preso preventivamente nesta quarta (14).
“Ainda é cedo para avaliar se estamos diante da redução dos níveis de violência doméstica e sexual ou se a queda seria apenas dos registros em um período em que a pandemia começava a se espalhar, as medidas de isolamento foram mais respeitadas e muitos serviços estavam ainda se adequando ao atendimento não-presencial”, diz o relatório.
Mas, segundo outra pesquisa recente, não foi esse o fator principal para a subnotificação durante a pandemia. O motivo mais determinante foi a perda de autonomia financeira, concluiu o estudo “Visível e Invisível – A vitimização de mulheres no Brasil”, realizado pelo Datafolha a pedido do Fórum em maio.
Entre as que sofreram violência, só 10% citaram a dificuldade de ir à delegacia como causa para o aumento da vulnerabilidade, enquanto 25% mencionaram a perda de renda e a impossibilidade de trabalhar para garantir o próprio sustento, e 22% destacaram a maior convivência com o agressor.
“Como a mulher coloca o marido para fora de casa se não tem dinheiro para os filhos comerem?”, ressaltou a pesquisadora Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum, quando a pesquisa foi divulgada.
Como já se sabe, o perfil majoritário de quem perde a vida pela sua condição de gênero é de negras (62%), mortas em casa (54%), por companheiros ou ex-companheiros (82%) e com o uso de armas brancas, como facas, tesouras e pedaços de madeira (55%).
As armas de fogo, porém, também são uma preocupação grande num momento em que o Brasil vê o número de armamentos nas mãos de cidadãos comuns disparar, sob as medidas de flexibilização do governo Jair Bolsonaro (sem partido).
“Diante […] do crescimento de 100% no total de registro de posses de arma desde 2017 —passando de 638 mil para 1,3 milhões em 2020—, vivemos o sério risco da antecipação de desfechos ainda mais violentos como os feminicídios para as mulheres expostas à violência doméstica”, alerta o relatório.
As soluções para o problema, defendem especialistas, estão principalmente na prevenção. Elas passam pela abordagem do tema nas escolas e pela efetiva punição dos agressores, evitando que os episódios se repitam e que as vítimas sejam julgadas.
Fonte: Folha de São Paulo