Mais de 70% das mulheres em todo o mundo sofrem algum tipo de violência de gênero ao longo da vida, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU). Para diminuir o número alarmante, o ativista norte-americano Quentin Walcott, diretor da ONG Connect (organização dedicada ao combate da violência doméstica em Nova York, Estados Unidos), insiste numa solução pouco buscada: é preciso conversar com meninos e homens sobre o tema. Quentin esteve no Recife a convite do Consulado Americano e ministrou palestras em escolas da rede estadual e na Faculdade Guararapes sobre masculinidade, gênero e violência contra a mulher. Em entrevista ao Diario, ele ressaltou que investir apenas em assistência às vítimas é como estar colocando um curativo no problema. “Temos que ter homens e meninos – e até agressores – como aliados e ativistas contra todas as formas de violência”, disse.
É difícil ver homens ativistas nas discussões sobre gênero. Por que poucos se engajam na causa que você assumiu?
Acredito que isso aconteça principalmente porque essa ainda é considerada uma questão das mulheres. Raramente é vista como algo que o homem precisa se preocupar, se envolver. Então, o movimento acaba sendo segregado e visto como exclusivamente feminino. Além disso, ser ativista da questão de gênero não é uma atividade lucrativa, então não atrai os homens, que geralmente são detentores do dinheiro, poder e privilégio. No entanto, se o homem parasse para avaliar o impacto desse engajamento e percebesse que os benefícios não seriam apenas para as mulheres, eles se envolveriam mais com a questão. Há ainda uma outra barreira, que é a da liderança das mulheres, ou seja, ainda é difícil para muitos homens deixar a mulher demandar algo.
Então, como reverter esse quadro?
É preciso abrir diálogos sobre masculinidade, atitudes e comportamento. Não necessariamente iniciar o debate falando sobre violência doméstica e violência contra a mulher, mas começar dialogando sobre a visão que eles têm sobre o que é ser homem, o que é masculinidade, ou melhor, quais são as masculinidades (enfatizando o plural), já que não há apenas uma forma. Reforço que é necessário trabalhar muito fortemente com jovens e discutir as opções que eles têm de modelos de homens, quais são referências positivas e quais são referências negativas. Porque quando se tem uma referência negativa, a tendência é seguir aquele comportamento. Nosso papel é dar referências positivas e mostrar os atributos que eles querem e podem ter.
Pessoalmente, o que o inquietou para se engajar nessa causa?
Eu costumo dizer que entrei nessa causa quase acidentalmente. Terminando a faculdade de direito, eu estava precisando de uma renda. Nessa época, tinha um tempo de quatro meses disponível para trabalhar e fui chamado para uma colônia de férias, um programa para estudantes durante o intervalo do ano letivo com atividades durante o dia. Eu era um dos recreadores. A colônia era voltada para alunos de bairros bastante violentos e acabei sendo a pessoa escolhida para ficar com os jovens mais problemáticos. Eu conversava muito com eles sobre comportamentos violentos. Porém, eles voltavam para casa e, depois, retornavam para a colônia com o mesmo comportamento agressivo. Foi quando comecei a perceber que todos tinham situação de violência em casa. Eles presenciavam comportamentos violentos e os reproduziam. Muitos deles acabavam se envolvendo com gangues, ou seja, eles preenchiam lacunas da vida familiar com atitudes violentas. Só depois de já estar atuando nessa área, descobri que minha mãe também tinha sido vítima de violência doméstica durante minha infância. Isso deu mais sentido para lutar pela causa. Até então, eu me achava um cara normal, mas quando descobri esse passado da minha mãe, percebi que eu era uma daquelas crianças com quem eu estava trabalhando. A descoberta deu um novo significado ao trabalho. O início pode ter sido acidental, mas, depois, vi um propósito no que eu estava fazendo. Assim, um trabalho que seria de apenas quatro meses se tornou o que eu faço há 19 anos.
Sua agenda no Recife informa que você fez palestra para estudantes de ensino médio da Escola Estadual Porto Digital e para alunos de ensino fundamental da Escola Poeta Manuel Bandeira. O foco do seu trabalho é a juventude? A partir de que idade devemos falar sobre violência doméstica e como abordar o assunto com crianças e adolescentes?
A introdução ao assunto deve acontecer o mais cedo possível porque somos socializados desde o nascimento. No entanto, não devemos trabalhar apenas com os mais jovens. É preciso atuar fortemente também com os adultos, já que eles dão exemplo aos mais jovens. Os adultos passam aos pequenos conceitos de masculino e feminino desde muito cedo. Fazem a separação por gênero desde cedo, quando definem, por exemplo, que meninos usam azul e meninas usam rosa. Devemos ajudar a formar as percepções das crianças desde muito cedo, respeitando a faixa etária para tocar em determinados assuntos. Minha experiência mostrou que a gente trabalha com jovens, faz desconstruções de conceitos, crenças, valores e atitudes, mas, quando eles voltam para casa, como não há continuidade no trabalho, existe uma descontinuidade do que foi avançado. Então, pais, professores, treinadores, pastores, isto é, a rede de adultos que formam os jovens, também precisam ser alvo desse trabalho para se tornarem influenciadores positivos.
Você costuma enfatizar a importância da prevenção, mas como ressocializar um homem agressor?
Estávamos falando sobre prevenção, mas são raros os casos em que a violência aparece sem um histórico de ameaças e agressões. Seja na prevenção ou na ressocialização, é importante tentar trabalhar a situação específica daquela pessoa, daquela família, daquela comunidade porque, muitas vezes, é oferecida uma solução “tamanho único”, em que se aplica uma resposta padrão independentemente do alvo. Então, é preciso ir mais a fundo para entender e trabalhar as especificidades da pessoa e da sua realidade. Vivemos em um mundo muito violento globalmente e precisamos resolver isso conversando com os jovens e os homens, conscientizando-os sobre a violência doméstica, mostrando que esse não é um problema só delas, apesar de, pelo menos nos Estados Unidos, as mulheres serem vítimas em 90% dos casos. Temos que trabalhar o que está por trás do comportamento do homem que o leva a achar que pode dar um empurrão numa mulher e não ver problema nisso.
No caso do Brasil, como você encara a condição da mulher? Quais as questões mais urgentes?
As questões são muito parecidas com as que encontramos nos Estados Unidos. Já trabalhei na Ásia, África, Europa, e os cenários são muito parecidos. Alguns países têm mais dinheiro para lidar com a problemática, mas as questões de pano de fundo não mudam tanto. No Brasil, percebi que são feitos vários esforços criativos para tentar contornar a situação, como a Lei Maria da Penha. O trabalho realizado com agressores aqui é bastante interessante.
Como interromper o abuso sexista?
Os recursos destinados ao combate à violência doméstica precisam ser diversificados. Se não houver um trabalho voltado para os homens, você estará sempre colocando um “band-aid” no problema e não vai sair do lugar. Não quero ser mal entendido. Dizer isso não significa que os investimentos em outras áreas não devem ser feitos. Acredito que deve haver cada vez mais recursos para atender a mulheres e meninas vítimas ou ameaçadas. Isso também é importantíssimo.
Anamaria Nascimento