Apesar de mulheres não chegarem a 10% da população carcerária mundial, em países como México, Argentina, Chile e Brasil a maioria delas está presa por delitos relacionados ao tráfico
Quando a jovem colombiana protagonista do filme “Maria Cheia de Graça” decide engolir “pepas” (cápsulas com cocaína ou heroína) para transportá-las aos Estados Unidos, ela repete a experiência de muitas mulheres que cresceram em países que produzem drogas ou por onde elas transitam. A maioria delas, seja atuando no tráfico ou como consumidoras, compartilha a precária existência comum a muitas mulheres pobres em todas as Américas: exclusão social, violência, sexismo e feminização da pobreza. “Tenho quatro filhos e sou mãe solteira”, disse Nelsy, no documentário “Cocaine Unwrapped” [“Cocaína Desmascarada”, em tradução livre], de 2011. Ela trabalhava como “mula” para traficantes no Equador. “Nós não o fazemos porque queremos nos tornar milionárias, mas porque estamos desesperadas.” Mesmo considerando que as mulheres são minoria no total de pessoas presas, entre 2% e 9% da população carcerária mundial de acordo com o Centro Internacional para Estudos das Prisões, o aumento no número de presas no continente tem sido assombroso: dobrou em apenas cinco anos. A alta é especialmente dramática na Argentina, onde a taxa de encarceramento de mulheres cresceu 271% entre 1989 e 2008 enquanto a dos homens aumentou somente 112%. A vasta maioria das mulheres no sistema carcerário está presa por delitos relacionados com drogas, que, no caso argentino, correspondem a mais de 60% dos motivos de prisões de mulheres, segundo um relatório de 2011 compilado pelo Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS) da Argentina. O pesquisador do sistema legal Alejandro Corda, de Buenos Aires, argumenta que o aumento está diretamente relacionado com a lei das drogas de 1989, que elevou substancialmente as penas no país. No Chile, 68% das prisões de mulheres estão relacionadas com drogas, em comparação com 26% no caso dos homens. De acordo com um relatório de 2011 publicado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) do Brasil, no estado de Roraima, pouco povoado e situado na fronteira com a Guiana e a Venezuela, as mulheres acusadas de tráfico de drogas somam mais de 90% das presas. Nas prisões latino-americanas a maioria das mulheres que cometeram delitos são rés primárias, geralmente sustentam suas famílias sozinhas e têm histórias de vida marcadas por várias formas de violência e, em muitos casos, abuso sexual. Elas têm baixo nível educacional e pouco ou nenhum trabalho. Em uma entrevista publicada pela primeira vez em meu livro “Drogas, género y prisión: Experiencias de mujeres privadas de su libertad en México”, de 2013, Mariana, uma jovem viciada em crack na Cidade do México, contou uma história trágica: “Meu pai abusava de mim e minha mãe nunca acreditaria em mim se eu contasse. Então eu fui viver nas ruas e isso me levou às drogas. Eu tinha 10 anos de idade. Conheci uma mulher chamada Veronica, e ela me fez trabalhar como prostituta. Eu nem sequer sabia o que era uma prostituta”. Quase sem exceção, estas mulheres representam o degrau mais baixo do trabalho no tráfico de drogas. A maioria das mulheres trabalha nas vendas de pequena escala e no transporte de quantidades limitadas tanto em nível doméstico como internacional. Elas frequentemente recorrem ao tráfico de drogas como um meio de superar uma emergência, com frequência relacionada à saúde, que ameaça deixá-las desamparadas. As que são consumidoras de drogas acabam nas mãos do poder punitivo do Estado ao financiar seu vício por meio do tráfico ou da prostituição. Outras se envolvem com o tráfico por meio de ligações emocionais com homens – sejam amantes, irmãos, ou pais. Consuela, uma “mula” de drogas mexicana, descreveu as ligações entre abuso e tráfico em sua vida: “O tráfico está destruindo muitas famílias, não apenas as pessoas que consomem drogas, mas também aquelas que estão na prisão por causa de alguém mais forte do que nós, alguém que usou e abusou de nós.” Este trabalho oferece a mães solteiras a flexibilidade de que precisam em face da discriminação de gênero e da marginalização da informalidade do trabalho. “Eu não queria um emprego em tempo integral porque não queria deixar meus filhos sozinhos”, explicou Chela, outra mulher mexicana que entrevistei para meu livro. Do trabalho disponível para elas na economia informal – faxina, lavar roupas, cozinhar, tomar conta de crianças ou idosos –, o tráfico de drogas é o que oferece mais dinheiro. Lucy foi levada ao negócio por uma vizinha. “Alguém para quem eu lavava roupas me disse um dia: ‘Ei, Lucy, você gostaria de ganhar algum dinheiro? É fácil’. Minha primeira resposta foi ‘Não’, mas, então, quando vi como ela chegava em casa cedo, com dinheiro no bolso, pareceu ser algo sem preocupações.” A mãe solteira de cinco filhos inseriu drogas, chamadas de “aguacates” (avocado) pela forma como são empacotadas, em sua vagina, para receber 500 pesos mexicanos [cerca de 92 reais]. Poucos meses depois de começar, Lucy foi pega contrabandeando drogas para um centro mexicano de detenção juvenil e foi condenada a 15 anos de prisão. Não há consenso internacional sobre até que idade crianças podem ficar com as mães na prisão. Na Bolívia, as crianças podem viver até os seis anos com as mães que estão presas, enquanto na Venezuela só podem ficar até os três anos. No Brasil, a lei determina que as crianças podem ficar com as mães na prisão até, no máximo, sete anos de idade. O filme argentino Leonera, de 2008, que trata de crianças encarceradas, ajudou a facilitar mudanças legais que permitem prisão domiciliar para mães como uma alternativa para o encarceramento na Argentina. A prisão domiciliar também é permitida na Colômbia, onde a prisão pode ser suspsensa para grávidas e as responsáveis por crianças deficientes ou com menos de cinco anos. Mas em ambos os países os juízes tendem a ignorar a lei, sob o argumento de que se as mulheres envolvidas no tráfico de drogas cumprem as penas em casa elas estão simplesmente retornando ao lugar onde previamente estavam vendendo drogas. A prática de encarcerar mães representa um claro exemplo de como os interesses das crianças são sobrepujados em uma estrutura legal derivada de convenções internacionais sobre as drogas. Analia Silva, uma ex-mula do Equador, descreveu o impacto intergeracional da prisão sobre as famílias: “Quando você sentencia uma mulher, você não pune apenas a pessoa que cometeu o crime, mas você sentencia a família e os filhos dela. Isso encoraja os filhos que são deixados sozinhos a cometerem crimes no futuro”. As mulheres são frequentemente vistas como bons alvos de recrutamento por parte de traficantes que buscam mulas. Em geral, o traficante se apoia na vulnerabilidade emocional da mulher, tornando-se seu namorado e, então, convencendo-a a transportar drogas. A pesquisadora equatoriana Andreina Torres Angarita argumenta que olhar para os relacionamentos românticos como dinâmicas de poder socialmente construídas pode ser uma perspectiva para compreender as mulheres que se tornam mulas de drogas. Estes relacionamentos “permeiam as dinâmicas do tráfico e influenciam a tomada de decisões das mulheres envolvidas”, escreve ela. Percepções estereotipadas de mulheres mais velhas como não ameaçadoras são também exploradas por traficantes para transportar as drogas. Eles costumam eventualmente enviar várias mulheres em um voo comercial e então sacrificam algumas delas informando as autoridades, de modo que outras tenham mais chances de passar. Deste modo, mulheres pobres da América Latina são triplamente discriminadas: dentro do tráfico de drogas, dentro do sistema legal e, finalmente, dentro das paredes da prisão, já que as mulheres encarceradas também enfrentam as práticas discriminatórias do próprio sistema prisional. Muitas se arrependem de seu envolvimento com o tráfico de drogas e recuam diante do impacto. “Como traficantes podem justificar seu trabalho, com tantas pessoas na prisão por culpa deles, com tantas pessoas mortas, tantas crianças órfãs ou abandonadas?”, pergunta Consuela. Mas muitas ainda têm esperança no futuro. Como Julia, presa por oito anos na Bolívia por transportar uma pequena quantidade de drogas em uma mochila, disse em entrevista publicada no livro “Evo’s Bolivia: Continuity and Change” [“A Bolívia de Evo: Continuidade e Mudança, em tradução livre”], lançado este ano nos EUA: “Se algum dia eu sair daqui, meu sonho é abrir uma pequena oficina para fabricar roupas. Sou a chefe da oficina de costura na prisão e estou ficando muito boa nisso.”
Mulheres como Lucy, Mariana, Nelsy, Analia, Julia e Consuela são invisíveis durante grande parte de suas vidas. É somente quando sua vulnerabilidade as enreda na rede do tráfico de drogas que o Estado as reconhece – não para lidar com suas necessidades, mas para encerrá-las numa prisão.
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Fonte: Revista Fórum
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