Prefeitura deve criar agência reguladora para fiscalizar repasse de verba às empresas de ônibus e impedir desvios, escreve Tabata Amaral
O despertador toca às 5h30. Em pouco tempo, minha mãe está na rua, em direção ao trabalho. Duas horas na ida; duas horas e meia na volta, esse é o tempo médio que minha mãe passa em ônibus todos os dias. Não é à toa que ela chega em casa tão cansada.
Essa é a realidade de milhões de paulistanos que moram nas periferias de São Paulo e fazem o seu deslocamento diário ao trabalho. Os números antes da pandemia apontavam cerca de 10 milhões de passageiros diários transportados em ônibus, enquanto os trilhos levavam 8 milhões de pessoas.
Essas viagens, para além de longas e cansativas, custam caro no bolso e comprometem grande parte do orçamento dos trabalhadores. No caso do trabalhador informal ou do desempregado, o que foi verdade para os meus pais na maior parte do tempo, o peso é ainda maior, já que esses não são alcançados pelo vale transporte. A discussão da tarifa do transporte público é, sobretudo, uma questão de justiça social e distribuição de renda.
Por décadas, as cidades brasileiras financiaram o transporte público rateando os custos de produção do serviço entre os usuários pagantes. A imensa maioria das cidades ainda adota esse modelo. São Paulo, a partir de 2003, passou a adotar a tarifa integrada, concedendo gratuidade ao embarque em até outros 2 ônibus, depois do pagamento da primeira tarifa. Com isso, o orçamento municipal passou a subsidiar parte dos custos do serviço, reduzindo o comprometimento do orçamento do trabalhador com o pagamento de seus deslocamentos.
Ao longo desses 20 anos, a participação da cidade aumentou significativamente, chegando hoje a patamares próximos dos R$5 bilhões, subsídio que representa quase metade dos custos para a oferta das viagens.
E, agora, a cidade debate a tarifa zero, ou seja, a assunção, pelo orçamento público, de todos os custos de produção das viagens. A medida eleva o transporte público ao nível de importância da saúde e da educação. É socialmente desejável, já que, para efetivamente acessar esses e outros direitos, o pobre precisa ter o seu deslocamento assegurado.
Contudo, é preciso encarar esse desafio com seriedade, para além de discursos e promessas fáceis e eleitoreiras. Em primeiro lugar, a sociedade precisa cobrar transparência, governança e sustentabilidade na gestão do sistema de transporte municipal, o que não vemos atualmente na Prefeitura de São Paulo.
A criação de uma agência reguladora, com a presença de dirigentes técnicos e com a participação direta da sociedade civil, do poder legislativo e de representantes dos órgãos de controle é essencial para que cada centavo pago às empresas de ônibus seja integralmente destinado, sem desvios, ao pagamento pelos serviços prestados.
Além do mais, a cobrança por qualidade do serviço e atendimento dos melhores padrões existentes deverá ocorrer de forma muito mais robusta, algo que é praticamente inexistente atualmente. Essa qualidade do serviço se traduz em ônibus confortáveis, limpos e seguros, com pontualidade nas partidas e nas chegadas, um número baixo de passageiros em pé e com acessibilidade às pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida.
É preciso uma gestão municipal realmente independente das empresas de ônibus e com autonomia e vontade política para abrir os dados à população e exigir qualidade na prestação do serviço. Além disso, a cidade deverá verdadeiramente priorizar o transporte público. Isso significa investir em corredores de ônibus que, usando as palavras do urbanista paranaense Jaime Lerner, “metronize” os ônibus, atribuindo-lhes conforto, rapidez e confiabilidade. Ampliar as faixas exclusivas e cuidar da plena manutenção do pavimento deverá ser a maior prioridade.
Será necessário também pensar em uma transição gradual para os 14.000 cobradores de São Paulo –com a Prefeitura os apoiando nas suas recolocações profissionais. Meu pai trabalhou como cobrador de ônibus por muitos anos e eu sei das inúmeras dificuldades que esses profissionais enfrentam diariamente.
Não se pode deixar de registrar a necessidade de articulação com o governo do Estado para que as mesmas isenções tarifárias concedidas no sistema de ônibus se reflitam nos trilhos geridos pelo Metrô, CPTM e concessionárias privadas. Caso contrário, com só os ônibus gratuitos, veremos explodir a sua demanda, o que com absoluta certeza faria com que o nosso atual sistema viário colapsasse.
Por último, mas não menos importante, será necessário que a Prefeitura discuta com a sociedade e apresente as fontes de financiamento que viabilizariam uma tarifa zero, demonstrando que outras despesas sociais relevantes, como saúde, educação, assistência social e zeladoria, não serão comprometidas.
A questão é complexa, mas isso não quer dizer que ela não possa e não deva ser enfrentada. Entendo que a tarifa zero é um objetivo pelo qual devemos trabalhar. No entanto, para que ela se concretize de forma sustentável, precisaremos de muito mais do que discursos e promessas.