Por : Isabela Leite
Mulher entrevistada pela GloboNews teve o procedimento negado por três hospitais públicos da capital paulista e só conseguiu realizá-lo com ajuda da Defensoria Pública de São Paulo em outro estado. Mesmo com decisão judicial nas mãos, ela passou pelo Hospital da Mulher, Hospital do Campo Limpo e o Tide Setúbal e teve o pedido negado.
A defensora pública do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, Paula Sant’Anna, afirma que a cidade de São Paulo deixou de ser um serviço de referência em aborto legal às mulheres vítimas de violência sexual.
Segundo ela, a decisão de gestão Ricardo Nunes (MDB) de suspender o serviço de aborto legal no Hospital Municipal de Vila Nova Cachoeirinha, em dezembro de 2023, deixou diversas mulheres vítimas de violência à mercê da própria sorte.
“O Vila Nova Cachoeirinha ele era considerado um serviço de referência para interrupção de gestação principalmente nos casos de gestação mais avançada decorrente de violência sexual. Havia uma equipe que estudou, se aperfeiçoou para atender esses casos e sempre a devolutiva era a de que meninas e mulheres eram muito bem acolhidas nesse serviço”, declarou.
“Com a suspensão o que nós vemos? Que hoje não temos mais um serviço de referência para esses casos aqui no município. Esse é um pouco da atualidade do município de São Paulo que torna tudo mais oneroso para as mulheres”, disse Paula Sant’Anna.
A Prefeitura diz, em nota, que oferece o serviço de aborto em quatro hospitais (leia abaixo).
A Defensoria Pública de SP recebe semanalmente diversos casos de mulheres que foram vítimas de violência sexual e que precisam realizar um aborto com urgência, previsto em lei.
Mas Paula Sant’Anna afirma que o atendimento público na rede municipal de saúde da cidade de São Paulo tem negligenciado o acesso das mulheres ao serviço, especialmente quando a gestação já superou as 22 semanas.
“Quando a gente verifica, os agendamentos demoram ou já recebemos casos de mulheres e meninas que não conseguiram fazer o teste de gravidez. Há uma tendência de culpabilizar que aquela menina mulher demorou para procurar aquele sistema. Mas na verdade muitas vezes elas procuraram, mas recebem informações equivocadas, agendamentos longínquos onde elas precisam de ajuda para chegar até o serviço de referência e não conseguem. Então, é sobre isso que a gente está falando quando a gente fala de barreiras para acesso a esse abortamento”, declarou.
A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP) afirmou, por meio de nota que “segue todas as previsões legais para interrupção de gravidez, visando garantir a segurança, o acolhimento e o atendimento humanizado às mulheres vítimas de estupro, além das demais situações previstas em lei. Atualmente, o estado de São Paulo conta com 13 serviços de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS) para a realização dos procedimentos de interrupção da gravidez. Os locais estão disponíveis no link, basta clicar na opção “Aborto Legal” do link.
Atualmente, o aborto é permitido em três situações no Brasil: se o feto for anencéfalo, se a gravidez impuser risco de vida para a mãe ou se a gravidez for fruto de estupro – que é o caso de Maria Clara.
Porém, um projeto de lei está em tramitação na Câmara para equiparar o aborto após 22 semanas ao crime de homicídio simples, colocando em risco o direito das mulheres.
Três tentativas de realizar o aborto
Um dos casos que teve apoio da Sant’Anna na Defensoria é da Maria Clara – nome fictício de uma mulher vítima de estupro – que teve o aborto legal negado por três hospitais na capital paulista e só conseguiu realizar o procedimento com ajuda dos defensores em outro estado.
A primeira barreira que a vítima encontrou foi no Hospital da Mulher, referência da rede estadual em casos de violência sexual. À reportagem, a vítima contou que descobriu a gravidez somente quando completou 24 semanas.
“Não tive nada de diferente, não tive barriga, não tive sintoma, não tive nada”, relata.
“Eu fiz o exame de sangue, fiz o ultrassom e passei na médica. Ela me falou que como a gestação estava muito avançada, eu teria que procurar outra unidade e ajuda na Defensoria. A médica só falou que não poderia fazer e pronto. Depois ela me encaminhou para assistente, e a assistente me disse que eu teria que procurar ajuda. Só me passaram o endereço da defensoria e eu fui por conta própria”, relembra.
Com ajuda da Defensoria Pública, ela conseguiu um encaminhamento para realizar a interrupção da gravidez no Hospital Municipal do Campo Limpo, na Zona Sul de São Paulo e mais uma vez teve o procedimento – que é garantido por lei – negado.
“Fiz a triagem e ele [médico] relatou a mesma coisa: que não poderia fazer no hospital [o aborto] porque estava muito avançada a gestação. Eu já estava perdendo as esperanças. Já não estava muito bem psicologicamente e saí de lá mais abalada. Até então, eu estava achando que eu estava errada em tudo”.
Em dezembro de 2023, a Prefeitura de São Paulo suspendeu o serviço de aborto legal do Hospital Municipal e Maternidade da Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte da capital. A unidade era a única do estado que realizava o procedimento em casos em que a gestação ultrapassa as 22 semanas – como o caso de Maria Clara.
Em fevereiro deste ano, foi proferida uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que obriga a prefeitura a realizar o aborto legal em outras unidades municipais de referência.
Para agravar a situação, em 3 de abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou uma resolução que proíbe a assistolia fetal – um procedimento recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para casos de aborto legal acima de 22 semanas de gestação.
Com essa resolução, a Justiça suspendeu o encaminhamento da vítima. Entretanto, seguindo a orientação da Defensoria Pública, Maria Clara seguiu para a terceira e última tentativa: o Hospital Municipal Tide Setubal, na Zona Leste da capital.
Na peregrinação para conseguir o aborto legal, Maria Clara conta que recebeu o pior atendimento no Hospital Municipal Tide Setubal, onde ela foi obrigada a ouvir os batimentos cardíacos do feto.
“Como o atendimento estava agendado, achei que eu ia chegar e iam estar me esperando. O atendimento foi péssimo, tive que falar perto de pessoas e o pior de tudo foi precisar ouvir o coração do feto. Eu pedi para ele [profissional de saúde] parar e tirar, levantei e saí da sala”, desabafa.
A equipe médica ainda tentou convencê-la a não realizar o aborto. “Me falaram para tentar segurar o neném até nove meses, que eles me dariam laqueadura, que iam cuidar de mim e me buscar para fazer a cirurgia e tudo mais. Eu fui embora para casa acabada, não sei nem explicar. Eu já estava pensando como fazer em casa sozinha porque eu não tinha condições”.
A vítima só conseguiu realizar o procedimento em outro estado. “A defensoria me falou sobre um projeto que entrou em contato comigo e explicou como seria feito em outro estado. Foi tudo muito rápido e muito bem explicado. Nossa parecia que eu estava fora do Brasil. Foi ótimo. Desde a abordagem do começo, os exames… Foi super respeitoso”, conta.
A resolução do CFM contra a assistolia fetal foi suspensa na Justiça em 17 de maio, por decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Caso de tortura
Para a defensora pública Paula Sant’Anna, o atendimento médico que Maria Clara recebeu no hospital pode ser equiparado a tortura.
“Há uma tendência de culpabilizar que aquela menina ou mulher demorou para procurar o sistema de saúde. Na verdade, muitas vezes elas procuram, mas recebem informações equivocadas, agendamentos longínquos, precisam de ajuda para chegar até o serviço de referência e não conseguem. Então, é sobre isso que a gente tá falando quando a gente fala de barreiras para acesso a esse abortamento”, explica a defensora.
A diretora-executiva da ONG Vivas, Rebeca Mendes, aponta que os serviços de saúde não estão preparados para atender vítimas de violência sexual.
“O que a gente tem encontrado são mulheres passando situações de violência. Elas chegam em serviços que estão totalmente despreparados para atendê-las em várias situações, entendimento do que é violência sexual, entendimento do que a lei pede. Então a gente tem serviços onde o boletim de ocorrência que não é necessário é pedido”, afirma.
O que diz a Secretaria Municipal da Saúde
“A Secretaria Municipal da Saúde (SMS), da Prefeitura de São Paulo, informa que atende às demandas de procedimentos com determinação legal em observância à legislação. A SMS reforça seu compromisso com o acolhimento da população sem discriminação e com responsabilidade humanitária.
A SMS pontua ainda que o Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha segue em pleno funcionamento, realizando outros serviços voltados à saúde da mulher. Atualmente, em São Paulo, o programa segue disponível em quatro hospitais municipais da capital. São eles: Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio (Tatuapé); Hospital Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha (Campo Limpo); Hospital Municipal Tide Setúbal e Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mário Degni (Jardim Sarah)”.
O que diz a Secretaria Estadual da Saúde
“A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP) informa que segue todas as previsões legais para interrupção de gravidez, visando garantir a segurança, o acolhimento e o atendimento humanizado às mulheres vítimas de estupro, além das demais situações previstas em lei. Atualmente, o estado de São Paulo conta com 13 serviços de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS) para a realização dos procedimentos de interrupção da gravidez. Os locais estão disponíveis no link, basta clicar na opção “Aborto Legal” do link.
Neste portal estão listadas as orientações e documentos necessários para acesso a estes serviços. Neste ano, até março, foram realizados 122 procedimentos de interrupção de gestação no estado de São Paulo.
Em todo o ano de 2023, foram realizados 602 procedimentos de interrupção de gestação. As equipes que atuam nos serviços sob gestão estadual são altamente qualificadas e especializadas. Neste momento, a SES prepara o lançamento de um curso EAD para reforçar a capacitação das equipe.”
PL do aborto
O projeto de lei, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), da bancada evangélica, altera o Código Penal e estabelece a aplicação de pena de homicídio simples nos casos de aborto de fetos com mais de 22 semanas nas situações em que a gestante:
- provoque o aborto em si mesma ou consente que outra pessoa lhe provoque; pena passa de prisão de 1 a 3 anos para 6 a 20 anos;
- tenha o aborto provocado por terceiro com ou sem o seu consentimento; pena para quem realizar o procedimento com o consentimento da gestante passa de 1 a 4 anos para 6 a 20 anos, mesma pena para quem realizar o aborto sem consentimentos, hoje fixada de 3 a 10 anos.
A proposta também altera o artigo que estabelece casos em que o aborto é legal, para restringir a prática em casos de gestação resultantes de estupro.
Conforme o texto, só poderão realizar o procedimento mulheres com gestação até a 22ª semana. Após esse período, mesmo em caso de estupro, a prática será criminalizada.
A proposta é assinada por 32 deputados, incluindo o segundo vice-presidente da Casa, Sóstenes Cavalcante, e o presidente da bancada evangélica, Eli Borges (PL-TO).
Fonte: G1