Liderança da Apib, Sônia Guajajara se elegeu deputada federal em outubro pelo PSOL de SP e está licenciada do cargo para atuar como ministra
Ministra destaca que projeto se tornou mais preocupante após receber enxertos que vão além do reconhecimento das terras
Envolvida atualmente em articulações que buscam frear um maior avanço da proposta do marco temporal no Senado, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, tem demonstrado grande preocupação com os acréscimos que o projeto de lei (PL) nº 2903/2023 ganhou em seu conteúdo ao longo da tramitação. Além de instituir a tese de que as comunidades tradicionais só têm direito a terras que já ocupavam ou disputavam desde antes da Constituição Federal de 1988, o PL abre outras possibilidades temidas pelos povos indígenas.
Entre elas estão a autorização para que o Estado e a sociedade civil possam estabelecer contato com comunidades isoladas para “prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública” e a permissão para o cultivo de alimentos transgênicos em áreas tradicionais. Guajajara vê um amplo potencial negativo na proposta, que é defendida pela bancada ruralista, o braço político-legislativo do agronegócio.
“Eu espero que eles revejam isso antes que seja tarde, inclusive para pensarem seus próprios projetos. Há ali um ponto de preocupação e análise em relação a mudanças climáticas e estudos e pesquisas que mostram também o impacto desse PL na própria agricultura”, afirma a mandatária, que diz que o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) passou a se abrir para uma tentativa de diálogo com lideranças partidárias a partir de quarta-feira (23), quando a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) votou e aprovou o PL.
“A gente chegou à posição de que é possível se construir uma proposta alternativa, mas, se essa proposta for construída, ela não será em torno desse PL. Seria uma nova. Se a gente disser que é para tirar [do texto] o que é ruim, não sobra nada”, observa a ministra.
Sônia Guajajara conversou com o Brasil de Fato sobre o tema momentos antes de o colegiado conceder sinal verde ao relatório da senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS). A ministra comentou ainda outros assuntos, como eventuais impactos do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) sobre as comunidades tradicionais e o orçamento anual do MPI. Confira a seguir a entrevista completa.
Brasil de Fato: O MPI soltou na terça (22) uma nota técnica relacionada ao PL do marco temporal que traz um posicionamento crítico ao projeto. O texto fala em “grave violação aos direitos humanos”, por exemplo. Queria começar pedindo para a senhora destacar o que parece mais preocupante para o ministério na proposta que está em discussão no Senado.
Sônia Guajajara: Este projeto ganhou uma grande repercussão por conta do tema do marco temporal, que é o objeto principal desse PL e é como ficou conhecido, mas ele traz vários outros pontos bem críticos e todo mundo está olhando como se fosse só em relação à temporalidade [das demarcações]. Mas, na verdade, ele traz mais 15 projetos apensados a ele. Alguns já foram arquivados anteriormente, já foram contestados, e agora voltam com força. Ficou um projeto bem robusto.
Então, o ponto principal é essa questão da flexibilização do acesso aos territórios de povos isolados, o que facilita essa entrada. Área isolada é uma área que precisa ser protegida. Isso está no artigo 28 desse projeto. Tem também essa questão da heteroidentificação, que fala claramente que, quando for comprovada a alteração dos traços [indígenas], eles podem ser removidos do seu território, em nome de interesse da União. Ele fala da expropriação de terras indígenas por alteração de traços culturais. É o artigo 16.
Então, ele pode retomá-las dando-lhes nova destinação social ou destiná-las ao Programa Nacional de Reforma Agrária. Bom, ele tem vários pontos preocupantes, tem a questão dos transgênicos, do arrendamento de terras. Em relação aos transgênicos, ele fala na possibilidade de plantio de transgênicos em terras indígenas.
A senhora teve uma série de encontros com nomes do Congresso Nacional, especialmente senadores, como é o caso da relatora do PL na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado, com os quais tratou sobre a proposta. A Secretaria de Acesso à Justiça do Ministério da Justiça tem dito que há disposição do governo em abrir um diálogo para discutir pontos do texto com as lideranças partidárias. Esse também tem sido o posicionamento político do MPI?
Exatamente hoje [quarta-feira, dia 23] a gente chegou à posição de que é possível se construir uma proposta alternativa, mas, se essa proposta for construída, ela não será em torno desse PL. Seria uma proposta nova porque, da forma como está ali no Senado, não são mais permitidas praticamente as mesas [de diálogo], a supressão [de trechos do PL] porque ela voltaria a tramitar na Câmara. Não houve até ontem a disposição [do MPI] de se construir nada porque, se a gente for dizer que é para tirar [do texto] o que é ruim, não sobra nada.
E agora vocês estão se abrindo para um diálogo mais amplo.
Isso. E hoje estamos fazendo essa discussão de tentar construir outra proposta.
Há uma leitura por parte de integrantes da sociedade civil organizada que acompanham a pauta ambiental de que a cúpula da articulação política do governo Lula não tem feito esforços no sentido de barrar o PL do marco temporal no Congresso. Segundo essa visão, o projeto teria avançado rapidamente este ano no Legislativo por conta dessa postura da gestão. A senhora concorda com essa leitura?
Eu acho que o que não há é uma disposição da bancada ruralista em ceder. É isso que está dado. Eles não querem ceder a esse ponto e principalmente no que se refere ao marco temporal. Eles estão temendo o julgamento [da tese] no Supremo Tribunal Federal (STF) e por isso querem agilizar a votação no Congresso. É isso que está dado.
A Comissão de Agricultura do Senado deve votar nesta quarta o texto do PL. Há tendência de aprovação porque os ruralistas têm maioria no colegiado e maioria no próprio plenário, com 50 dos 81 votos da Casa integrando a FPA. Se esse projeto for definitivamente aprovado, o que o governo pretende fazer? As demarcações vão continuar? Vocês têm dialogado sobre isso, por exemplo?
Não estamos dando isso como ponto encerrado, não. A gente continua as articulações para tentar alguma reversão. Então, não vou nem colocar aqui o que seria feito após a aprovação porque, no momento, estamos trabalhando para não se aprovar como está.
Gostaria de saber o que a senhora espera dos senadores neste momento, já que a bancada ruralista está tentando agilizar a votação final do PL do marco temporal até 7 de setembro, quando o STF pode voltar a julgar a tese do marco temporal.
Eu espero que eles revejam isso antes que seja tarde, inclusive para eles pensarem seus próprios projetos. Há um ponto ali de preocupação e análise em relação a mudanças climáticas e estudos e pesquisas que mostram também o impacto desse PL na própria agricultura. O que nós fazemos neste momento é isso, e eu vou continuar fazendo isso.
Falando sobre outras pautas, o texto do Novo PAC tem um trecho que preocupa lideranças indígenas por falar em “Aperfeiçoamento do Marco Regulatório do Licenciamento Ambiental”. O MPI tem dialogado com as outras frentes políticas do governo Lula a esse respeito? Existe preocupação do ministério com essa questão do PAC?
Sempre tem, não é? Sempre tem, porque tudo que é obra, empreendimento, por menor que seja, se vai passar por terra indígena, traz impacto. O que tem que haver é esse diálogo com as comunidades. Deve-se respeitar o processo de consulta para que não seja feito de forma totalmente atropelada e equivocada. O que nós estamos orientando aqui é sobre essa questão do respeito ao processo de consulta.
O governo atual é um governo em franca e permanente disputa interna. Há uma frente ampla compondo o esqueleto da gestão. O MPI tem autonomia diante dos interesses das outras pastas? Como tem sido isso para vocês?
Olha, é isto: é um governo de composição. Estamos aqui cada um defendendo o governo, mas defendendo suas pautas, e a pauta indígena não é simples. É uma pauta complexa e que tem interfaces com vários outros ministérios. De fato, é um trabalho que temos que fazer no dia a dia. É conversar quando precisar conversar, recuar quando precisar recuar, mas o que está colocado neste momento é essa necessidade dessa união para reconstrução. Estamos nos expondo a isso, a tentar fazer os diálogos necessários para que a gente consiga proteger os direitos dos povos indígenas, afinal de contas, o ministério foi criado para isso.
O Portal da Transparência indica que o orçamento previsto para o MPI em 2023 é de pouco mais de R$ 645 milhões. Isso equivale a 0,01% dos gastos públicos da União. Que tipo de limitações esse baixo orçamento tem trazido pra vocês?
Isso daí, na verdade, inclui o orçamento do MPI e da Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas]. Estamos trabalhando para melhorar o orçamento ainda. Está colocado isso ali, mas estamos na queda de braço para melhorar o orçamento no próximo ano. Tivemos um aumento muito pequeno em relação ao que tinha ano passado, que já era insuficiente. Estamos na batalha para ver se a gente consegue aumentar.