Os casos de estupros coletivos ocorridos recentemente no Piauí e no Ceará são, segundo a juíza Adriana Ramos de Mello, apenas a ponta do iceberg frente a uma cultura arraigada no país que estimula a violência contra a mulher. Em média, uma mulher é estuprada no Brasil a cada quatro minutos, de acordo com dados do 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Para a juíza, titular do 1º Juizado de Violência Doméstica contra a Mulher, no Rio, não basta apenas punir os agressores e não pensar em mecanismos para reverter este quadro. Ela aponta como principal medida a inclusão do estudo de gênero, direitos humanos e combate à discriminação nos currículos escolares. “Quando vejo que foram adolescentes que participaram do estupro coletivo no Piauí, penso que alguma coisa falhou nessa educação”, afirma. “Estamos só cuidando de quem já morreu, vai morrer ou já sofreu a violência. E essa mulher que não foi agredida mas vai ser?”, questiona.
Foto: Brunno Dantas/TJRJ
UOL – Há silêncio em torno dos casos de estupro?
Adriana Ramos de Mello – Existe uma dificuldade por parte das vítimas de denunciar, de se identificarem como vítimas do estupro. E ainda há o medo e a vergonha de se exporem perante as autoridades e reviver aquela experiência. A violência sexual é uma das formas de violência mais graves. Envolve o sentimento de poder que o homem tem sobre a mulher. É cultural.
Podemos falar em uma cultura de estupro?
A cultura patriarcal, de desigualdade de poder nas relações entre homens e mulheres, incita a violência. Além da violência física, há um estímulo simbólico à violência muito forte, principalmente na imprensa e na publicidade. A erotização da mulher, com frequência colocada como se fosse um produto, por exemplo, é uma forma de incitar a violência.
Recentemente, ocorreram vários casos de estupros coletivos no país. Esses casos são comuns ou têm sido mais noticiados?
O estupro é um crime que tem uma subnotificação [ausência de notificação às autoridades] muito grande. É difícil dizer se estupros coletivos sempre existiram ou só não eram denunciados. Normalmente, estamos habituados a ver notícias sobre isso em outros países, como na Índia, em que casos assim são recorrentes. Nesse caso do Piauí talvez estejamos acompanhando uma mudança cultural ao ver a sociedade se posicionar, perceber isso como crime um grave, que também acontece no Brasil.
Há uma evolução na luta contra a violência contra a mulher?
Sempre tivemos punido no Código Penal o homicídio, que inclui homens e mulheres. Ao criar o conceito de feminicídio, você politiza, torna público algo que não era visível, que é o assassinato de mulheres apenas pelo fato de serem mulheres. E a morte de mulheres no Brasil tem uma peculiaridade. Enquanto os homens costumam morrer em decorrência da violência urbana, troca de tiros, tráfico etc., grande parte das nossas mulheres morrem no ambiente doméstico. A maioria delas quando decide romper com essa relação violenta — o fim do relacionamento é o momento de maior vulnerabilidade. Muitas têm medo de se separar porque tem medo de morrer.
A Lei Maria da Penha é suficiente?
A Maria da Penha não é suficiente. A Lei do Feminicídio também não será. Associadas a estas leis é preciso criar políticas de prevenção e proteção, fornecer a essa mulher toda uma rede de proteção para que ela sai daquela relação violenta. A lei é importante pelo seu valor simbólico, mas é preocupante colocar todas as nossas esperanças no combate à violência de gênero apenas nisso. Sozinha a legislação não é suficiente para romper com toda uma cultura arraigada na sociedade de machismo, dominação. Precisamos trabalhar outras questões, principalmente a educação. Alterar currículos escolares para acrescentar o estudo da igualde de gênero, direitos humanos, o combate à discriminação. Não adianta só punir o agressor se não criarmos uma política de prevenção dizendo desde cedo às crianças que homens e mulheres são iguais e merecem as mesmas oportunidades.
O que é preciso mudar na Maria da Penha?
A Lei Maria da Penha é quase um estatuto. O que pegou foi a parte da punição, mas ela traz consigo muitos outros mecanismos de prevenção à violência, entre eles a orientação sobre a necessidade de se ensinar gênero nas escolas. Com o Violeta [protocolo criado pelo 1º Juizado de Violência Doméstica contra a Mulher] procuramos dar rapidez à [lei] Maria da Penha. Segundo a medida, o juiz tem até 48 horas para decidir quais serão as medidas protetivas aplicadas. Antes, a autoridade policial tem outras 48 horas para remeter esse pedido à Justiça. O que uma mulher que é vítima de violência faz nesses quatro dias? É um prazo grande demais para alguém em risco de vida, que precisa de proteção imediata. Daí entra o Violeta. Nos casos em que a mulher está realmente em situação de perigo ela é enviada diretamente à Justiça e atendida no mesmo dia. Temos que alterar a lei para que esse prazo seja diminuído.
Qual o papel das redes sociais na violência contra a mulher?
A internet ajuda muito. As redes sociais são muito importantes, tanto como espaço de disseminação de informação para essas mulheres que estão em situação de risco, como de denúncia. Há um ditado que diz que em briga de marido e mulher ninguém mete a colher e isso tem que acabar. A pessoa hoje pode denunciar sem se identificar e assim salvar uma vida. Em briga de marido e mulher metemos a colher, sim. Com a Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio.
Como podemos mudar esse quadro de violência?
Essa notícia do estupro coletivo no Piauí assustou todas as meninas do Brasil. Isso tem um efeito simbólico muito forte. Tenho uma filha de 15 anos que não quer sair de casa sozinha, tem medo de ser estuprada. Quando vejo que foram adolescentes que participaram do estupro coletivo no Piauí penso que alguma coisa falhou nessa educação. Não só a deles e dos pais, mas de toda a sociedade. Lido diariamente com a violência já consumada e não vejo nada ser feito para diminuir isso, pelo contrário. A cada ano aumentam em 20% os números de assassinatos contra mulheres, sinal de que somente a legislação não está funcionando. Estamos só cuidando de quem já morreu, vai morrer ou já sofreu a violência. E essa mulher que não foi agredida mas vai ser? O problema é justamente este. Não trabalhamos com o primordial: a educação.
Paula Bianchi