Planos de saúde têm exigido o consentimento de maridos para autorizarem o procedimento de inserção de DIU (dispositivo intrauterino), um método contraceptivo, em mulheres casadas.
É o caso das cooperativas da Unimed João Monlevade e Divinópolis, em Minas Gerais, e Ourinhos, no interior de São Paulo. Ao todo, as cooperativas atendem mais de 50 municípios nos dois estados.
Sem se identificar, a Folha entrou em contato por telefone com as três cooperativas da seguradora para confirmar a informação, que consta nos Termo de Consentimento para inserção do contraceptivo.
A informação de que não era possível realizar o procedimento sem o consentimento do cônjuge foi confirmada pela central de atendimento ao cliente das três unidades.
Via assessoria de imprensa, as unidades de Divinópolis e Ourinhos informaram que abandonaram a exigência após o contato da Folha.
Já a cooperativa de João Monlevade nega exigir o consentimento, mesmo diante da confirmação da central de atendimento. A cooperativa afirma que apenas recomenda que o termo seja compartilhado, por isso o espaço para a assinatura do companheiro.
Outras cooperativas da Unimed chegaram a exigir a assinatura do cônjuge no passado, mas atualizaram o seu modo de operação, caso da Sul Capixaba, que atende 30 municípios no Espírito Santo.
O DIU é um contraceptivo no formato de “T” que é introduzido no útero da mulher através do colo do útero e tem como principal objetivo impedir a grávidez. A médica ginecologista Graciela Morgado explica que há dois tipos de dispositivos: os não hormonais e os hormonais.
Os não hormonais, que são aqueles que possuem cobre ou cobre e prata em sua composição, são utilizados para a contracepção. O hormonal, porém, também é amplamente usado no tratamento dos sintomas de doenças crônicas como a endometriose.
A ginecologista afirma que a exigência do consentimento do cônjuge pode diminuir a qualidade de vida de mulheres com doenças para as quais o DIU é uma alternativa, uma vez que os homens passam a participar da decisão.
“Há um prejuízo na independência dessa mulher que vai realizar um tratamento que vai promover qualidade de vida, pois ela passa a depender de um parceiro que talvez não entenda sua dor”, diz. “O DIU não causa uma infertilidade como a laqueadura, então não precisaria do parceiro para colocar como método contraceptivo.”
Para exigir a assinatura do marido, as seguradoras se amparam na lei 9.263 de 1996, que dispõe sobre o planejamento familiar. Ela estabelece que a realização de laqueadura tubária ou vasectomia deve ser feita somente com “consentimento expresso de ambos os cônjuges”, em homens e mulheres capazes e maiores de 25 anos ou com pelo menos dois filhos vivos.
A legislação é alvo constante de críticas por exigir o consentimento do parceiro nos casos de esterilização cirúrgica de pessoas casadas. A exigência da lei, porém, não contempla métodos contraceptivos como o DIU.
Heidi Florêncio Neves, professora de direito penal da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), afirma que este é um uso indevido da lei, que viola a autonomia da paciente.
“Estão fazendo uma interpretação extensiva da lei e não é isso que a lei diz. A lei diz que, em casos de esterilização voluntária, é preciso consentimento do cônjuge. Não é o caso do DIU, então não se aplica. É uma interpretação extensiva para não cobrir o procedimento”, afirma.
A professora diz que as mulheres lesadas pela exigência podem entrar na Justiça para fazer com que a seguradora cubra o procedimento.
“Se é um procedimento coberto pelo convênio, o convênio não pode obrigar a pessoa a ter a assinatura do cônjuge. Ela vai ter que ir à Justiça e com certeza essa demanda vai ser julgada procedente pelo poder Judiciário, porque não está na lei, não está previsto em lugar nenhum”, diz.
Em maio de 2018, o então marido de Karina Diniz, 34, teve que assinar o termo de consentimento do seguro saúde Cemeru, no Rio de Janeiro, para que a estudante de enfermagem pudesse colocar o DIU. Além da assinatura, era necessário que ambos reconhecessem o documento em cartório para comprovar que não haveria fraude.
“Voltei com o pedido médico na administração [do convênio] e a menina falou: ‘Você precisa da autorização do seu marido para poder fazer esse procedimento’. Eu até tomei um susto. Falei: ‘Ué, se eu estou decidindo, ele precisa autorizar?’. E ela disse ‘Tem que ter autorização dele. Você precisa ir a um cartório e reconhecer firma. Você e ele’”, conta.
Diniz e o companheiro já haviam conversado sobre o assunto, então não houve constrangimento. Ela conta que ele apenas estranhou a necessidade da autorização. Entre sua primeira ida ao médico e o procedimento, foram cerca de dois meses.
“Quem sabe sou eu se eu quero ter filho ou não. Eu era casada e a gente tinha que entrar num consenso. Mas quem sabe disso sou eu. Quem tem que saber se eu quero engravidar ou não, sou eu. Então achei meio que invasão no meu querer.”
A seguradora Cemeru foi procurada via email, mas não se manifestou até a publicação deste texto.
A antropóloga e professora da UnB (Universidade de Brasília) Débora Diniz afirma que a participação dos homens nesse processo decisório representa a alienação da autonomia reprodutiva das mulheres.
Diniz também vê uma infantilização da mulher sobre quais são as melhores decisões para sua saúde, além da possibilidade de agravar a condição de mulheres que vivem em contexto de violência.
“Há uma falsa presunção de que os corpos das mulheres, no que toca o seu aspecto reprodutivo, sempre digam respeito aos homens aos quais elas são vinculadas”, afirma. “Isso pode não só agravar a situação de mulheres que vivem em violência como agravar uma visão de que as mulheres são propriedade dos homens.”
Outro fator agravante, segundo a antropóloga, é a quebra da confidencialidade médica.
“Não é só uma quebra de confidencialidade médica, de dever de sigilo médico. Aqui, na verdade, há um equívoco que os planos de saúde estão fazendo de algo fundamental para saúde das mulheres. Pode gerar toda sorte de problemas como qualquer outro do campo da saúde em que confidencialidade, privacidade e sigilo são determinantes”, afirma.
A Unimed do Brasil, representante nacional do Sistema Unimed, afirma que não adota qualquer orientação ou diretriz nacional que exija o consentimento do cônjuge para inserção do DIU.
Segundo a seguradora, o padrão estabelecido no Sistema é a orientação do preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual a paciente reconhece que foi suficientemente orientada sobre o procedimento e que apenas ela e o médico responsável assinam.
A Folha perguntou se a partir desses casos novas orientações seriam fornecidas, uma vez que poderiam existir outras instâncias de exigência equivocada entre as 342 cooperativas pelo Brasil, mas não obteve resposta.
Fonte: Folha de São Paulo