Teoricamente, significaria um avanço a existência de uma lei que reservasse para as mulheres participação mínima entre os parlamentares eleitos para Câmara dos Deputados, câmaras de vereadores e assembleias legislativas do país. Já que muitas cidades brasileiras têm um índice baixo — em algumas não há uma vereadora sequer — essa alteração, proposta pela reforma política em discussão no Congresso, deveria aumentar a representação feminina.
Não, segundo afirmam especialistas em gênero e política. Para eles, a proposta, que é de 15%, deve manter a porcentagem no mesmo patamar, que, no geral, já atinge esse índice. Além disso, haverá uma queda em números absolutos, já que em diversos lugares esse percentual é hoje maior, como explica a pesquisadora e professora da Escola de Direito do Rio de Janeiro, da FGV (Fundação Getúlio Vargas) Ligia Fabris.
“Principalmente nas cidades que têm a partir de 1,5 milhão de habitantes, a porcentagem de eleitas já é maior do que essa”, afirma Fabris.
Para ela, essa mudança também fará partidos investirem menos em candidaturas femininas. Hoje, eles são obrigados a preencher 30% de suas candidaturas com mulheres e investirem verba proporcional a esse índice. Com a mudança, o próximo passo é que eles consigam fazer esse número cair para 15%, para se adequar à possível nova regra.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), feita pelo IBGE em 2019, a proporção de mulheres na população é maior, 51,8%, que a de homens, 48,2%.
“Essa proposta vem justo agora, quando as mulheres teriam condições de avançar na sua presença na política, os partidos seriam obrigados a lançar candidaturas, a dar mais dinheiro, porque se não cumprirem as cotas de 30% a chapa inteira é cassada”, pontua Fabris. “Na minha visão, querem desamarrar essa obrigação dos partidos a qualquer custo.”
Diversos movimentos de mulheres que trabalham pelo aumento do número de eleitas têm se mobilizado para criticar a reforma. Porém, a possibilidade de que a regra comece a valer nas próximas eleições é grande.
Se não for aprovado por meio da reforma política, pode ser chancelado pelo Congresso via projeto de lei: um PL com o mesmo objetivo foi aprovado pelo Senado na quarta-feira (14) e, agora, segue para votação na Câmara dos Deputados, onde deve ganhar a maioria dos votos, inclusive da bancada feminina.
O PL foi criado pelo senador Angelo Coronel (PSD-BA), também autor de um projeto de 2019 que visava acabar com as cotas de 30% para candidatas mulheres nas eleições. Na época, foi rejeitado por 16 dos 18 senadores votantes na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça).
A previsão para as próximas eleições é de que a participação feminina na política, conquistada a duras penas nos últimos anos, diminua consideravelmente.
Líder da bancada feminina na Câmara: “Considero um avanço, mas queremos chegar a 30%”
Para a deputada federal Celina Leão (PP-DF), líder da bancada feminina na Câmara, a reserva de 15% das vagas é “um avanço”. “Mas não é normal olhar para um parlamento e ter só 15% de mulheres. A meta é que tenhamos no texto principal que esse número chegue a 30%, crescendo progressivamente a cada eleição”, afirma.
Segundo ela, a bancada feminina não vai aceitar nenhuma proposta que não abarque esse aumento gradativo, até que seja atingida a meta. “Mesmo que de forma escalonada, começando com 15%, mas chegando, no mínimo, em 30%”, explica.
Se a Câmara aprovar o projeto do Senado da forma como está, significa que em 2022 será exigido um mínimo de 18% de mulheres eleitas, chegando a 30% somente em 2038.
Para Ligia Fabris, da FGV, não é possível chamar isso de avanço. “Se não for para aumentar o índice e os números absolutos, se não auxiliar no aumento da participação feminina, seria melhor que essa proposta não fosse aprovada.”
Voto distrital também fará número de eleitas cair
Se para aprovar a reserva de cadeiras a bancada feminina está unida, o mesmo não acontece em relação a outro ponto polêmico trazido pela reforma política: a mudança da eleição proporcional para distrital.
No esquema proporcional, os votos vão para o candidato mas são contabilizados para o partido e, quanto mais votos uma sigla tiver, mais candidatos elegerá. Caso mude para o distrital, serão eleitos unicamente os mais votados. E o que isso tem a ver com as mulheres?
“Se a eleição for majoritária, ou seja, elege quem diretamente ganhar mais votos, será eleito quem já tem visibilidade, quem tem dinheiro para investir na campanha ou está concorrendo a uma reeleição. As candidaturas de mulheres e, principalmente, de mulheres negras, são subfinanciadas, ganham menos verba. Serão as mais prejudicadas”, afirma a cientista política Hannah Maruci Aflalo, doutoranda da USP (Universidade de São Paulo) com pesquisa na área de representatividade feminina.
“É um projeto que vai contra a renovação política. Fiz um levantamento pra mostrar como teria sido a eleição de 2018 se fosse distrital, e concluí que teríamos eleito quatro mulheres e nove pessoas negras a menos. Além disso, a única indígena não teria sido eleita”, aponta Marucci, que também é cofundadora do movimento A Tenda, projeto de cursos e orientações a mulheres que desejam entrar para a política.
Brasil vai na contramão de outros países
Ligia Fabris é taxativa ao dizer que em “nenhum lugar do mundo” onde a representação feminina aumentou foram tomadas medidas similares às que estão sendo discutidas no Brasil. “Chile e México, vizinhos que são exemplo, nunca saíram de uma porcentagem de cotas para outra menor”, diz.
No primeiro caso, foi aprovada em outubro de 2020 uma norma exigindo a paridade de eleitos, ou seja, 50% de cada gênero. O número foi alcançado nas eleições de 2021 e, agora, o Chile começa a discutir uma nova Constituição, a primeira do mundo a ser escrita igualmente por homens e mulheres.
Já no México, a paridade de gênero é uma luta desde 2014, quando a reforma política do país exigisse que 50% das candidaturas dos partidos fossem para mulheres. A representação feminina no país chega hoje a 49%. O país ocupa o primeiro lugar em um ranking da ONU (Organização das Nações Unidas) que avalia paridade política na América Latina. O Brasil ocupa o nono lugar, entre 11 países analisados.
Mulheres se mobilizam para refutar propostas
Em junho, 135 organizações políticas, associações, ONGS, grupos de pesquisa e movimentos sociais, criaram a Frente pelo Avanço dos Direitos Políticos das Mulheres. Na ocasião, foi lançado um manifesto com o objetivo de defender os direitos femininos, que, segundo a coalizão, estão ameaçados pelo projeto de reforma política.
O documento também é assinado por secretarias da mulher de partidos em diferentes espectros políticos, entre eles PSDB, Cidadania, Solidariedade, Rede, PDT, PT e PSOL.
Coordenadora-geral do Observatório de Candidaturas Femininas da OAB-SP (Ordem dos Advogados dos Brasil de São Paulo), a advogada Maíra Recchia vê com bastante receio às possíveis mudanças que estão prestes a ser aprovadas. Recentemente, formulou uma nota técnica a pedido do PT para que avaliasse a proposta da reserva dos 15% de cadeiras, concluindo que se trata de “machismo institucional interno dos partidos políticos”.
“Certamente a nova regra vai impedir impede o aumento ou a paridade nesses espaços. Isto porque a mera reserva de assentos sem o efetivo investimento em ferramentas de inserção de mulheres na política faz com que a corrida eleitoral não tenha pluralidade”, afirma Recchia. “É importante se manter o percentual do fundo partidário de 30%, garantir espaço nos partidos, investimentos reais em candidaturas femininas e visibilidade em funções e espaços políticos”, afirma.
“Apenas com a conjunção de esforços é que será possível aumentarmos o percentual de mulheres eleitas fazendo jus à realidade brasileira, onde as mulheres já são a maior parte da população e do próprio eleitorado. É importante se pensar que não há democracia efetiva sem a igualdade de gênero e raça e até que essa pluralidade seja alcançada cabe também à sociedade pressionar para que a mudança seja real.”
Fonte: UOL