O Brasil ocupa a 7ª posição no mundo em número de assassinatos de mulheres entre 84 paÍses. Nos Últimos 30 anos, 92 mil mulheres foram mortas em decorrência da violência doméstica. O relatório final da CPMI da Violência contra a Mulher foi entregue, na semana passada, para a presidente Dilma Rousseff. O documento, com mais de mil páginas, traz um diagnóstico do problema em todo o país e apresenta 73 recomendações às diferentes esferas do governo. A violência contra a mulher é o tema da série especial desta semana. A reportagem é de Ana Raquel Macedo. A violência contra a mulher – 02/09Os avanços e os desafios da Lei Maria da Penha – 03/09Os instrumentos de assistência e proteção à mulher – 04/09As dificuldades no acolhimento das mulheres vítimas de violência – 05/09Especialistas defendem mudança cultural para combater violência contra mulher – 06/09
A violência contra a mulherEm 1989, um crime chocou Pernambuco. Em Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana de Recife, José Ramos Lopes Neto, inconformado com a separação, atira na ex-mulher, Maristela Just; no filho caçula, Zaldo, então com dois anos; na filha mais velha, Natália, à época com quatro anos; e no ex-cunhado, Ulisses Just. Maristela morreu na hora. As outras vítimas sobreviveram. José Ramos foi preso em flagrante, mas, beneficiado por um habeas corpus, permaneceu recluso por apenas um ano. O processo, então, se arrastou por 21 anos na Justiça, quando, em 2010, o réu foi condenado a 79 anos de prisão. José Ramos, no entanto, fugiu e, somente em 2012, 23 anos após o crime, foi encontrado a partir de uma denúncia anônima. Natália Just, hoje com 28 anos, conta as angústias pelas quais ela e o irmão passaram durante todos esses anos. “A gente infelizmente cresceu com ele solto, com impunidade em cima das costas da gente. Tendo que inventar história quando perguntavam sobre isso. Cadê seus pais? Ah, morreu num acidente. A gente tinha vergonha de contar o que realmente aconteceu. Não pelo ponto de vista de ser vítima de violência. Mas do ponto de vista da vergonha pela Justiça, por não ter tido uma resposta. Ele fez isso, tirou a mãe da gente, deixou a gente com sequelas físicas e ficou por isso mesmo. (…) O que mais assustava a gente por ter ficado 21 anos impune foi porque foi um caso tão explícito e foi tratado como se fosse um furto de galinha.” O caso de Maristela Just, infelizmente, não é isolado. O assassinato de mulheres em decorrência da violência doméstica, familiar, sexual ou pelo simples fato de ser mulher continua envergonhando o país. Entre 84 nações, o Brasil ocupa a sétima posição com uma taxa de 4,4 homicídios em 100 mil mulheres, atrás apenas de países como El Salvador, Colômbia e Rússia. Segundo o Instituto Sangari, nos últimos 30 anos, perto de 91 mil mulheres foram assassinadas em território nacional. Mais de 43 mil apenas na última década. Espírito Santo e Alagoas lideram o ranking de homicídios femininos. O Congresso investigou o tema por mais de um ano em uma comissão de inquérito de senadores e deputados. E uma das principais conclusões da chamada CPMI da Violência contra a Mulher é de que as políticas públicas de enfrentamento do problema ainda não dão conta de frear as agressões. Por isso, no relatório final, a comissão propõe uma série de mudanças na lei. Entre elas, a defesa de que o feminicídio seja considerado um agravante do homicídio, com pena de prisão de 12 a 30 anos. A presidente da CPMI, deputada Jô Moraes, do PCdoB mineiro, explica. “Na maioria dos assassinatos de mulheres que são apresentados à sociedade, o criminoso é obviamente apresentado. A materialidade do crime é imediata e os procedimentos têm que levar em conta essa questão. Por isso, sem dúvida nenhuma, a tipificação do feminicídio ajudará a agilizar o julgamento dos processos e a punir criminosos.” Estudiosos do assunto no Brasil e no mundo concordam que o assassinato de mulheres em razão de gênero deve ser punido como um crime específico. Segundo a advogada Luana Natielle, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, Cfemea, a complexidade do tema exige a tipificação do feminicídio. “A tipificação não é apenas simbólica. Mas ela é importante porque a previsão de crime de violência de gênero não existe no Código Penal brasileiro. (…) Violência doméstica e familiar é violência de gênero. A violência, por exemplo, da menina que vai a um baile funk e usa determinado tipo de roupa e alguma pessoa que não tem relação com ela a mata porque mulher não pode se vestir assim. Isso é violência de gênero. Feminicídio serve para proteger mulheres que passam por diversas atrocidades.” No governo, o assunto ainda está em análise, segundo a diretora do Departamento de Políticas, Programas e Projetos do Ministério da Justiça, Cristina Villanova. “Ainda não tiramos um posição do governo federal. Existem algumas nuances e, por isso, precisamos fazer avaliação adequada para isso. Depois, de que forma a gente vai dar tratamento para informação no sentido de caracterização? Por exemplo, se uma mulher é assassinada, de que forma o órgão que faz o registro dessa ocorrência vai poder entender e qualificar a motivação, se é um crime em razão de gênero ou em razão de outras circunstâncias.” Apesar dos dados alarmantes, o relatório final da comissão de inquérito da Violência contra Mulher reconhece que houve avanços nos últimos anos. A CPMI cita a Lei Maria da Penha (11.340/06), em vigor há sete anos, como um instrumento importante de prevenção e punição mais rigorosa dos agressores. Outra iniciativa positiva foi a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres pelo Executivo federal como um órgão de articulação e cobrança de medidas entre as diferentes esferas de governo e de poder. E, mais recentemente, o anúncio do programa federal Casa da Mulher Brasileira, que deverá motivar a instalação de centros de atendimento multidisciplinar às vítimas de violência nas 27 capitais. Entre os estados, segundo a comissão, o Espírito Santo se destaca pelo programa piloto “Botão do Pânico”, uma experiência em teste pelo Tribunal de Justiça que consiste na distribuição de dispositivos equipados com GPS a 100 mulheres em grave risco. A ideia é que, no caso da aproximação do agressor, a mulher possa acionar o botão e, em tempo real, informar sua localização à guarda municipal de Vitória. O sistema, uma vez acionado, também grava o áudio ambiente. De Brasília, Ana Raquel Macedo Os avanços e os desafios da Lei Maria da PenhaConsiderada pela ONU a terceira melhor lei do mundo de enfrentamento à violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha ainda esbarra em alguns entraves para ser cumprida integralmente. Os problemas vão desde um comportamento machista de alguns juízes e delegados até o número insuficiente de delegacias e varas especializadas. No segundo capítulo da série especial sobre a violência contra a mulher, entenda as dificuldades enfrentadas pelas vÍtimas na hora de procurar a justiça. E confira as recomendações e propostas da comissão que investigou o assunto no Congresso. A reportagem é de Ana Raquel Macedo. 240 relatos de violência contra a mulher foram registrados por dia pela Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180, em 2012. Dos mais de 88 mil atendimentos, quase 57% referiam-se a casos de violência física, seguidos de denúncias de violência psicológica, moral, sexual e patrimonial. Entre os relatos, 89% tinham como agressor o companheiro, cônjuge, namorado, ex-marido ou ex-namorado da vítima. No total, o Ligue 180 realizou mais de 700 mil atendimentos no ano passado, entre denúncias e pedidos de informação. Um aumento de 11% em comparação a 2011. O serviço foi criado em 2005 pela Secretaria de Políticas para as Mulheres para escutar e orientar mulheres em situação de violência. Desde a sanção da Lei Maria de Penha, em 2006 (11.340/06), essa tem sido uma das principais causas de ligação à central. Apesar de não haver um sistema nacional unificado de informações sobre violência contra a mulher, dados registrados pelos sistemas de saúde e levantamentos feitos pelo IBGE sobre o tema também indicam a prevalência de casos envolvendo companheiros e ex-companheiros das vítimas, bem como as ocorrências em residências dos envolvidos. É difícil afirmar se os registros têm se mantido altos porque mais mulheres se sentem motivadas a denunciar ou se a violência, em si, continua aumentando. Uma constatação preocupante, no entanto, é que muitos dos casos relatados não chegam às delegacias e, consequentemente, não são encaminhados à Justiça. Pesquisa da Fundação Perseu Abramo, de 2010, indica que apenas um terço é levado às autoridades. Para a comissão de inquérito que investigou no Congresso a violência contra a mulher entre 2012 e 2013, o quadro é grave e demonstra a insuficiência de equipamentos públicos adequados para receber as vítimas. Segundo o relatório final do grupo, o país conta com 408 Delegacias da Mulher e 103 núcleos especializados em delegacias comuns. A maioria está concentrada nas capitais e regiões metropolitanas. Mesmo onde há as delegacias, a comissão constatou a situação de abandono de muitas delas, dificultando o registro de boletins de ocorrência e tomada de depoimentos das vítimas ou testemunhas. Uma das poucas exceções é a Delegacia da Mulher do Distrito Federal, que, apesar de localizada no Plano Piloto – longe das regiões com mais concentração feminina na capital – conta com uma estrutura adequada para atendimento às mulheres. A Delegada-chefe da delegacia do DF, Ana Cristina Melo Santiago, concorda que é fundamental um acolhimento adequado às mulheres vítimas de violência. “Nós precisamos que tenha esse conhecimento muito específico dessas questões, para que essa mulher, quando venha a uma delegacia, a gente sabe que ela rompeu vários obstáculos, internos, emocionais, sociais, culturais, até ela decidir pelo registro da ocorrência. Então, quando ela chega no balcão, ela, de forma alguma, pode ser revitimizada. Ela tem que encontrar profissionais capacitados e conhecedores dessa dinâmica da violência, para que ela seja acolhida e não tratada como uma espécie de co-responsável pela violência que ela sofreu.” Não é só nas delegacias que as vítimas podem encontrar problema. A comissão de inquérito também constatou que os Tribunais de Justiça do país não dão a devida atenção à Lei Maria da Penha. Apesar das recomendações do Conselho Nacional de Justiça, falta orçamento para a instalação de juizados e varas especializadas. Segundo a comissão, são 66 Juizados Especializados de Violência Doméstica no Brasil. Para a relatora da investigação, senadora Ana Rita, do PT do Espírito Santo, o machismo também continua forte nas instituições. “Eu diria que esta questão do machismo é muito presente nas instituições também, o que dificulta a aplicação da nossa legislação, em particular da Lei Maria da Penha. Falta capacitação dos profissionais. Precisamos investir muito na capacitação, não só de quem atende lá na ponta, como são os policiais na delegacias, que precisam de capacitação intensa. Mas também de promotores, de juízes, de todos aqueles que têm papel no andamento do processo.” A CPI constatou, por exemplo, que juízes em diferentes estados continuam aplicando a Lei Maria da Penha como lhes convém, usando, inclusive, instrumentos já proibidos pelo Supremo Tribunal Federal, como a suspensão do processo pela admissão de que lesões decorrentes de violência doméstica e familiar podem ser de menor potencial ofensivo. A comissão criticou, ainda, decisão recente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em não considerar como passível de análise pelo juizado especializado o caso de agressão envolvendo o ator Dado Dolabella e sua ex-namorada, a atriz Luana Piovani. O argumento é de que eles não eram casados e de que não havia relação de vulnerabilidade entre a atriz e o namorado à época da agressão. O caso está agora no Superior Tribunal de Justiça e, na avaliação do advogado de Piovani, Marcelo Salomão, pode se tornar um divisor de águas na aplicação da Lei Maria da Penha. “Se prevalecer esse entedimento desta Câmara do Tribunal de Justiça do RJ, praticamente, em todos os casos envolvendo violência doméstica, será exigida a produção de uma prova inicial quanto a essa vulnerabilidade, dependência quanto à situação de opressão da mulher. Não havendo a caracterização de opressão da mulher – e isso é um conceito até subjetivo- , a lei não é aplicada. Acho que a decisão do tribunal contraria o espírito da lei e interpreta de uma maneira praticamente espúria a aplicação da lei em relação à maioria dos casos. (…) A pessoa famosa e autônoma, como essa vítima de quem estamos falando, ela não pode ser vítima de violência doméstica? E outra coisa: violência doméstica só pode acontecer em casa?” O juiz Álvaro Kálix Ferro, conselheiro do CNJ, reconhece que há problemas na aplicação da Lei Maria da Penha, mas diz que, em sete anos, a norma tem motivado aos poucos uma mudança na cultura de tolerância à violência. “Essa questão da violência contra a mulher é de uma complexidade ímpar. Além da penalização, existe todo um trabalho que é preciso fazer, seja com a mulher, seus familiares e até com o agressor, como a própria lei diz no seu art. 30, que pode ser encaminhado para cursos, compreensão da questão de gênero, para a questão da violência. Há necessidade dessa interdisciplinaridade e ela só ocorrerá se cada um dos órgãos, incluído o Poder Judiciário, atue bem com equipes multidisciplinares.” Para a comissão que investigou a violência contra a mulher no Congresso, é possível aperfeiçoar a legislação. Entre as mudanças propostas à Lei Maria da Penha, está a a obrigação de o juiz, ao encaminhar mulheres para abrigamento, analisar necessariamente os requisitos da prisão preventiva do agressor, para evitar que o réu permaneça solto enquanto a vítima se mantenha com a liberdade restringida em uma casa-abrigo. Outra proposta é para que esteja explícita na lei a impossibilidade de se perguntar à vítima o interesse em desistir do processo penal. Na luta pelo rompimento do ciclo de agressões, não pode haver brecha para a impunidade, segundo Lourdes Maria Bandeira, da Secretaria de Políticas para as Mulheres. “Quando uma mulher denuncia que foi agredida, ela tem que ser encaminhada ao sistema de Saúde, ao IML, ao Ministério Público. Isso tem que ser investigado, se tornar um processo. Há uma complexidade grande, que muitas vezes, dada ausência e condição de recursos, muitas vezes pela própria falta de equipamento desses órgãos, acaba que processo se perde no meio do caminho. E, sem contar também, que nem sempre a sensibilidade de todos os agentes públicos está voltada para este problema.” Na tentativa de tornar mais eficaz o atendimento às vítimas, o governo federal lançou recentemente o programa “Mulher, Viver sem Violência”, com previsão de verba de R$ 265 milhões. Entre as medidas, está a construção das chamadas Casas da Mulher Brasileira nas 27 capitais, com serviços integrados de delegacia, juizado especializado, ministério público, defensoria, abrigamento temporário, espaço de convivência, sala de capacitação e brinquedoteca. De Brasília, Ana Raquel Macedo Os instrumentos de assistência e proteção à mulherComo funcionam os instrumentos de proteção e assistência às mulheres que precisam deixar casa e emprego para fugir das agressões? A Rádio Câmara apresenta nesta semana série especial sobre a violência contra a mulher. Ouça agora o terceiro capítulo, com Ana Raquel Macedo. Joana, nome fictício, fugiu para a única casa-abrigo do Distrito Federal com o filho de cinco anos após inúmeras ameaças e agressões físicas e psicológicas do marido. O local, mantido em sigilo, tem capacidade para até sessenta pessoas, entre mulheres e dependentes, e oferece atendimento psicológico, jurídico e social a vítimas de violência doméstica e familiar. A decisão de se esconder e abandonar tudo, segundo Joana, veio num momento em que não via outra forma de proteção. “Quando foi em dezembro, que fiquei sabendo que ele estava envolvido com outro problema envolvendo Lei Maria da Penha, outra mulher. Ele tinha uma amante antes de mim. Ele a coagiu. Só que eu casei, sob coação dele. Não queria casar. E ele: você vai casar, sim, no papel. E acabei passando o papel. Aconteceu que, na época, morava em Águas Claras, mudei para Asa Sul e minha vizinha era da Aeronáutica. Ela, vendo tudo aquilo, me deu reportagem da casa-abrigo e ela falou: pega teu filho e some com esse menino, antes que ele faça alguma coisa, porque ela escutava tudo. E uma outra vizinha. Foram essas duas vizinhas que me ajudaram. Daí, fugi para cá.” O isolamento da vítima em uma casa-abrigo pode ser uma alternativa quando outras medidas protetivas não surtem resultado. No caso de Joana, no entanto, o abrigamento foi a primeira opção, já que, quando tentou na Justiça impedir o marido de se aproximar dela, não conseguiu reunir provas e testemunhas para obter êxito no pedido. Segundo a comissão de inquérito que investigou no Congresso por um ano a violência contra a mulher no país, as casas-abrigo precisam ser repensadas como principal alternativa de abrigamento e proteção às vítimas em risco grave. Para a CPI mista, o confinamento e rompimento temporário de vínculos com o mundo lá fora, muitas vezes, desestimulam as vítimas a procurar ajuda. Os desafios, na avaliação da senadora Vanessa Grazziotin, do PCdoB do Amazonas, são mundiais. “Isso acontece em vários lugares do mundo. Eu mesma e a senadora Lídice da Mata, enquanto estávamos trabalhando em uma outra CPI, que era a CPI do Tráfico de Pessoas, cuja maior parte das vítimas são mulheres também, nós, numa viagem que fizemos aos Estados Unidos a convite do governo americano, visitamos várias casas, com endereços que não são conhecidos, de abrigo para essas pessoas e lá elas conseguem ter uma qualidade de vida um pouco melhor. Mas também são detidas num espaço muito bem delimitado porque sofrem risco de morte. Então, têm sua vida ameaçada, delas e dos filhos. Então, é óbvio que a gente precisa avançar numa mudança de visão para que o homem que ameaça a mulher seja preso e ela possa ficar levando uma vida um pouco mais normal.” No relatório final, a comissão propõe que a Lei Maria da Penha (11.340/06) mude para que, uma vez determinado pela Justiça o abrigamento da vítima, o juiz e o Ministério Público se manifestem necessariamente sobre a prisão preventiva do agressor. Além da casa-abrigo, a Lei Maria da Penha prevê que o juiz, constatada a violência contra a mulher, pode proibir o agressor de se aproximar da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, estabelecendo um limite mínimo de distância entre eles. Pode, além disso, obrigar o agressor a se afastar do convívio com a vítima e a não frequentar determinados lugares de maneira a preservar a integridade física e psicológica da ofendida. Para o cumprimento das medidas, pode ser usada a força policial. Mas nem sempre a polícia chega a tempo de impedir uma tragédia. E, por isso, alguns estados estão testando alternativas, como destaca o juiz Álvaro Kálix Ferro, do Conselho Nacional de Justiça. “Algumas experiências que são importante para efetivação para essas medidas protetivas, a exemplo do “Botão do Pânico”, que está em andamento no Espírito Santo, em Vitória. E que é um dispositivo que a mulher aciona toda vez que se sente ameaçada novamente pelo agressor. Esse dispositivo grava o áudio, informa a central que a mulher está na iminência de sofrer nova violência. Há outros. Como a tornozeleira eletrônica, que é um dispositivo que fica junto à mulher, e que está sendo utilizado em Minas Gerais. Então, quando o agressor eventualmente se aproxima da mulher, há um sinal do dispositivo dessa tornozeleira que fica nele. O dispositivo com a mulher e a própria central entra em contato com a Polícia Militar para evitar violência. A patrulha de Porto Alegre, por exemplo, que faz ronda e essa ronda atende aqueles locais em que há determinação de medida protetiva pelo juizado.” A ONU considera a Lei Maria da Penha uma das três melhores legislações do mundo em proteção e prevenção à violência contra a mulher. Em sete anos de vigência, a norma ainda enfrenta desafios para ser integralmente cumprida, segundo a comissão que investigou o tema no Congresso. Entre eles, a necessidade de estruturação mais eficiente da rede de equipamentos públicos disponíveis para atendimento às vítimas, como delegacias, juizados e centros de referência especializados. Um dos pontos de apoio às vítimas nas cidades com mais de 20 mil habitantes são os Centros de Referência Especializado de Assistência Social, os Creas. Até o fim do ano, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social, haverá Creas em todas as cidades com esse perfil, totalizando cerca de 2.500 centros. O trabalho é voltado ao atendimento de famílias e indivíduos em situação de violência, em uma parceria entre governo federal e municípios. De acordo com a secretária de Assistência Social do ministério, Denise Colin, as agressões físicas e psicológicas contra mulheres adultas são os mais frequentes entre os diferentes casos de violência atendidos pelos Creas no país. Ela explica que os centros buscam conquistar a confiança das vítimas para romper o ciclo de violência que, às vezes, atravessa gerações. “Fortalecimento da rede de proteção para garantir essa segurança de que a mulher procure o serviço, sinta apoio nesses espaços, tenha uma retaguarda. Isso ainda é uma grande desafio, porque, na maioria dos casos, não só elas têm uma dependência financeira, mas psicológica também. Se preocupam muito com demais membros da sua família. Têm receio de fazer denúncia, têm receio de procurar esses espaços, da própria reação. Precisamos também de uma intervenção maior em relação ao próprio agressor. Os estudos mostram que ele acaba reproduzindo violações e violências que eles também sofreram quando da sua fase de desenvolvimento. Conseguir intervir e quebrar esse ciclo de reprodução de violência com as própria famílias. É uma coisa muito difícil, muito subjetiva, peculiar de cada um dos grupos.” Além dos centros especializados no atendimento a vítimas de violência, existem no país quase 8 mil Centros de Referência em Assistência Social, os Cras. Também mantidos em parceria entre o governo federal e gestores locais, os Cras buscam melhorar a qualidade de vida de famílias em áreas de vulnerabilidade social. Em 87% desses centros, grupos de mulheres são convidados a participar de oficinas sobre direitos e importância de uma convivência familiar harmoniosa. Para a comissão do Congresso que investigou o tema, o rompimento do ciclo de violência passa também pela garantia de que as mulheres mais vulneráveis socialmente tenham condições de sobrevivência caso decidam se afastar do agressor. No relatório final, a CPI propõe a criação de um novo benefício assistencial, no valor de um salário mínimo, às vítimas de violência doméstica que não tenham condições de se manter financeiramente. O pagamento seria feito enquanto durasse a causa da agressão. Questionado sobre a viabilidade do benefício, o Ministério do Desenvolvimento Social alegou não ter recebido da comissão informações para se manifestar. Amanhã, no quarto capítulo da série especial sobre violência contra a mulher, saiba como a rede de saúde atua em casos de agressão doméstica, familiar ou sexual. Confira, ainda, as dificuldades e inseguranças das vÍtimas ao procurar a ajuda de um profissional da área. De Brasília, Ana Raquel Macedo As dificuldades no acolhimento das mulheres vítimas de violênciaMais de 70 mil vítimas de violência física, psicológica ou sexual foram atendidas pelos serviços de saúde em 2011 em todo o país. Hoje, no quarto capítulo da série especial sobre violência contra a mulher, acompanhe as dificuldades e inseguranças das vítimas ao procurar a ajuda de um profissional de saúde e o que ainda precisa melhorar no acolhimento a essas mulheres. Ouça agora o quarto capítulo, com Ana Raquel Macedo. A cearense Helena Damasceno sofreu durante anos, na infância e adolescência, abusos sexuais por parte do tio. A situação causava dor, vergonha, culpa. Uma confusão de sentimentos difícil de ser resolvida em silêncio por uma menina. Mas assim foi feito. Somente há poucos anos, já adulta, Helena começou a se questionar sobre os abusos. Incentivada pela psicóloga, criou um blog na internet. A experiência deu tão certo que virou um livro, “Pele de Cristal”, no qual a autora conta as várias facetas de quem passa por violência sexual. “Eu nunca pensei em denunciá-lo, enfrentar. Quando eu começo a ressignificar o meu processo e aí compreendo que é necesária a denúncia, inclusive para que ele seja responsabilizado, para que coisas se ajustem, eu não posso mais. O crime caducou. (…) Hoje, com minha atuação política, social, de contribuir para desconstrução dessa violência sexual de forma geral, eu acho que minha melhor vingança é ser feliz. Acreditem: é possível viver sem os fantasmas, sem o medo, sem a culpa. Existe vida fora da violência sexual.” O silêncio que, muitas vezes, envolve os casos de violência de gênero, especialmente a sexual, obriga um olhar atento dos profissionais de saúde, educação e assistência social em contato com as vítimas. No Brasil, desde 2003, uma lei obriga, por exemplo, que a rede pública e privada de saúde reporte ao Ministério da Saúde os casos de violência contra a mulher (Lei 10.778/03). Em 2011, mais de 70 mil casos foram registrados no Sistema Nacional de Informação de Agravos de Notificações. Em Brasília, os dados são centralizados no Núcleo de Estudos e Programas na Atenção e Vigilância em Violência, da Secretaria de Saúde do DF. Segundo a chefe do núcleo, Lucy Mary Stroher, as equipes das unidades de saúde passam por constante capacitação para reconhecer os casos e preencher corretamente as fichas de notificação, mesmo quando a vítima não confirma a violência. “Uma notificação não é muito fácil pela questão da mulher não querer se colocar na situação de violência. (…) Como a gente tem também veiculado na mídia muita informação em relação às violências contra a mulher e os direitos da mulher, ela tem procurado se posicionar diferente e os profissionais também estão mais capacitados para perceber. (…) Pode ser a situação física, de algum machucado, de algum hematoma que ela não tenha a justificativa daquilo. Ela faz um rodeio muito grande para explicar, ela entra em contradição. Como pode ser também um sofrimento psíquico, mental, onde vem com depressão, algum outro transtorno associado. Aí, a gente vai conversando como é o dia a dia, a organização dela, como é a história de vida familiar, com os pais. Geralmente, são pessoas que vêm de geração com situações de violência.” No Congresso, uma comissão de inquérito de deputados e senadores investigou, entre 2012 e 2013, a violência contra a mulher. Apesar dos avanços da legislação e de algumas políticas de atendimento às vítimas, o grupo concluiu que ainda há muitas falhas no acolhimento a essas mulheres. O deputado Dr. Rosinha, do PT do Paraná, que integrou as investigações, conta que os problemas são comuns a vários estados. “A CPMI teve esse papel importante, de despertar na sociedade o debate, de mostrar aos estados que eles não estavam preparados para receber as mulheres vítimas de violência, nem nas delegacias, nem nos tribunais, nem no Ministério Público, nem no serviço de saúde, em lugar nenhum. Mesmo nas capitais. Às vezes, a pessoa pobre – apesar de que a violência contra a mulher está em todos os níveis da sociedade – vai de ônibus para a delegacia. Chega na delegacia é atendida, pedem para ela um corpo de delito. Ela sai dali e tem que pegar outro ônibus para ir ao Instituto Médico Legal. E, nesse próprio trajeto, às vezes, sozinha, de ônibus, sem companhia, é vítima de quem já está a ameaçando.” Na cidade de São Paulo, uma das saídas encontradas para humanizar o atendimento às vítimas de estupro foi a criação de um centro de referência. Com atuação desde 1994, o Hospital Pérola Byington é citado como exemplo pela comissão de inquérito, pela qualificação técnica da equipe multidisciplinar e o correto apoio dado às mulheres. O hospital já atua nos moldes da lei que recentemente passou a obrigar o atendimento prioritário das vítimas de estupro na rede SUS (Lei 12.845/13). A responsável pelo núcleo de violência sexual da instituição, Daniela Pedroso, fala da importância de as mulheres serem incentivadas a buscar ajuda o mais rapidamente possível após um estupro. “É uma mulher que chega bastante fragilizada, com muito medo. Medo das ameaças que sofreu. Medo do que pode acontecer a ela e à família dela. É uma mulher em fase aguda de estresse pós-tramáutico, que precisa recuperar sua autoestima para poder retomar sua vida com certa qualidade. Fisicamente falando, se ela não procurar um serviço de emergência, ela pode deixar de evitar uma gravidez e deixar de evitar uma doença sexualmente transmissível.” O Hospital Pérola Byington também realiza abortamento legal, permitido em caso de estupro. Segundo Daniela Pedroso, não é exigido das vítimas o registro da ocorrência. Pela nova lei de atendimento às vítimas de violência sexual, as unidades de saúde devem orientar os pacientes e facilitar a denúncia, reunindo informações que possam ser úteis à identificação do agressor pela polícia e a Justiça. Amanhã, no último capítulo da série especial sobre violência contra a mulher, entenda por que apenas a mudança na lei e a criação de políticas específicas de atendimento às vítimas não são suficientes para barrar as ofensas e abusos. A transformação deve ser também cultural. De Brasília, Ana Raquel Macedo
Especialistas defendem mudança cultural para combater violência contra mulherNo Brasil, uma mulher é agredida a cada cinco minutos. Por ano, mais de quatro mil são assassinadas. Além de leis mais duras e punição rigorosa dos agressores, especialistas recomendam que o problema seja combatido também a partir de uma mudança cultural e educacional. É o que você confere no último capítulo da série especial sobre violência contra a mulher. A reportagem é de Ana Raquel Macedo. Os dados são alarmantes. Seis a cada dez casos de violência contra as mulheres repetem-se diariamente. A cada cinco minutos, uma mulher é agredida no país. E, por ano, mais de quatro mil são assassinadas. Entre 84 nações, o Brasil ocupa a sétima posição com uma taxa de 4,4 homicídios em 100 mil mulheres. As estatísticas não são números frios. Mais da metade dos entrevistados em uma pesquisa recente do Data Popular e do Instituto Patrícia Galvão disse conhecer uma mulher já agredida pelo parceiro. Para 70% das pessoas ouvidas, a casa é o local onde ocorre a maioria das ofensas e agressões. Para 89%, a violência cresceu nos últimos cinco anos. Na avaliação da professora da Universidade de Brasília Débora Diniz, pesquisadora do Anis-Instituto de Bioética, a violência doméstica contra as mulheres persiste apesar dos avanços trazidos pela Lei Maria da Penha (11.340/06). “A Lei Maria da Penha é, sim, um avanço. Ela nomeia a violência doméstica, de gênero, como uma questão prioritária do Estado, uma questão de direitos humanos e que o combate a ela é o que vai garantir a igualdade de gênero. Estamos melhor do que já estivemos. Agora, precisamos analisar duas outras dimensões. O que acontece na sociedade brasileira para a persistência da violência contra a mulher? E a segunda: como se dá a implementação desta lei? Temos dezenas de desafios na implementação da lei, das medidas protetivas, dos tribunais especiais de aplicação da Lei Maria da Penha ou mesmo o reconhecimento de que a violência doméstica contra as mulheres é algo que precisa ser enfrentado, combatido, e garantida a Justiça.” Pela pesquisa do Data Popular e do Instituto Patrícia Galvão, 98% dos entrevistados conhecem a lei. A popularização da norma e o aumento de campanhas incentivando a denúncia fazem com que mais mulheres passem a questionar a violência. Por outro lado, enquanto 57% da população acreditam que um número maior de homens começou a ser punido por agressões a mulheres, 85% entendem que a Justiça demora demais para condenar aqueles que matam as companheiras. O resultado do levantamento corrobora as conclusões da comissão que investigou no Congresso a violência contra a mulher. O relatório final das investigações aponta falhas na implementação da Lei Maria da Penha, na punição aos agressores e no acolhimento às vítimas. A lógica machista também precisa ser quebrada nas instituições públicas e relações sociais. A comissão sugere incluir, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9.394/96), a necessidade de os currículos da educação básica enfatizarem o respeito à igualdade de gênero e a prevenção e combate à violência doméstica e familiar. O deputado Dr. Rosinha, do PT do Paraná, participou das investigações. Para ele, esse é um tema que deve estar em toda sala de aula. “Estando no currículo, serve também para prevenção. Eu tenho que dizer para as crianças que a violência é nociva para a sociedade e, para prevenir, eu tenho que criar um processo educacional.” A violência de gênero atinge todas as faixas etárias e sociais no Brasil. Apesar das dificuldades, muitos são os exemplos de mulheres que conseguem denunciar o ciclo de agressões. É o caso de Kátia Robles, gerente de negócios em São Paulo. Casada por quase 20 anos, ela passou a sofrer ameaças do ex-marido no momento da separação, quando discordou da partilha de bens. Kátia chegou a ser internada pelo ex-companheiro compulsoriamente por um dia em uma clínica psiquiátrica, sem qualquer problema psíquico. Com respaldo da família, a gerente de negócios buscou ajuda na polícia e na Justiça. A separação foi concluída e o ex-marido hoje responde a processo com base na Lei Maria da Penha. Kátia conta que ainda sente medo, mas, aos poucos, consegue retomar a vida. “Hoje já vivo em união estável. Estou há nove meses com outra pessoa. E, inclusive, ele andou intimidando essa outra pessoa que está comigo. Por isso que falo que as medidas protetivas são importantes por causa disso, porque você quer retomar sua vida. Você está com um relacionamento novo e não pode? Tem que continuar intimidando até a pessoa que está com você? Mas estou tentando retomar minha vida. Não é fácil, viu? Quem está de fora não imagina o estrago que uma violência faz.” A Secretaria de Políticas para as Mulheres quer incentivar mais vítimas a denunciarem agressões e ofensas, pelo Ligue 180 ou em delegacias. Até o próximo ano, estão previstas cinco campanhas na TV sobre o tema, dentro do programa “Mulher, Viver sem Violência”. Além disso, devem ser construídas nas 27 capitais as chamadas Casas da Mulher Brasileira, onde estarão integrados serviços de delegacia, juizado especializado, defensoria, ministério público e assistência social. A luta de especialistas e militantes na área é para que o combate à violência seja assumido como dever de todos: governos, sociedade, Judiciário e Legislativo. Uma vida sem violência é um direito de mulheres e famílias de agora e do futuro. De Brasília, Ana Raquel Macedo
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Fonte: Rádio Câmara
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