“Racismo ambiental é as pessoas negras indo para qualquer lugar e, infelizmente, ficando às margens. São elas que sofrem quando acontecem situações como essa.” É assim que a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, lembra as diversas enchentes que ocorreram no começo do ano no Rio de Janeiro.
Planeta em transe
Na época, grupos políticos a criticaram nas redes sociais e afirmaram que o termo “racismo ambiental” havia sido inventado.
“Esse conceito não fui eu que criei. É um conceito que vem dos EUA, já está há décadas”, explica. “Racismo ambiental existe e tem um número imenso de pessoas negras que passam por isso todos os dias.”
Ela diz, por exemplo, que as pessoas em bairros nobres da capital fluminense não sofrem as consequências de uma chuva forte da mesma forma que aquelas que estão na Baixada Fluminense.
Anielle associa ainda a expressão a problemas enfrentados pelos quilombolas. Para ela, ao mesmo tempo em que eles são afetados pelo racismo ambiental, também são fundamentais contra as mudanças climáticas. “Não só quilombolas, como os povos indígenas, são agentes de conservação ambiental”, destaca.
Nesta entrevista à Folha, a ministra comenta, entre outros desafios, as dificuldades em aumentar o número de quilombos titulados e as medidas para melhorar a proteção de lideranças das comunidades.
Semanas atrás, quando ocorreram enchentes no Rio de Janeiro, a senhora falou sobre racismo ambiental e foi criticada por alguns setores. Essa situação pode ser entendida como racismo ambiental? Qual a sua avaliação sobre as críticas?
Ainda é difícil olharem para nós, pessoas negras, e reconhecerem que somos pessoas humanizadas, estudadas. Pessoas que precisam, merecem e têm condições de estarem em qualquer lugar. Não há nada que a gente fale nesse lugar e que as pessoas não tentem fazer algum uso político para desmerecer.
Assim como foi [quando falei] sobre racismo linguístico, que é uma coisa que eu estudo há muito tempo. Eu sou doutoranda em linguística aplicada.
Esse conceito [de racismo ambiental] não fui eu que criei. É um conceito que vem dos EUA, já está há décadas.
É só olhar o que acontece quando tem uma chuva torrencial no Rio de Janeiro. Copacabana, dificilmente acorda no dia seguinte inundada. As áreas nobres que têm historicamente sistemas já construídos não sofrem com aquilo.
As pessoas negras historicamente estão onde? Racismo ambiental é a falta de estrutura para que as pessoas tenham condições de sobreviver. O calor que você sente em Copacabana, não é o calor que você sente em Belford Roxo, na Baixada Fluminense.
Racismo ambiental é as pessoas negras indo para qualquer lugar e, infelizmente, ficando às margens. São elas que sofrem quando acontecem situações como essa [das chuvas].
Não só quilombolas, como os povos indígenas, são agentes de conservação ambiental. A gente faz parte disso, e o racismo ambiental está inserido. A ministra [do Meio Ambiente] Marina Silva, que é uma unanimidade do tema, falou e reiterou. Esse também foi o nosso maior debate na COP [28, conferência da ONU sobre mudanças climáticas, em Dubai, no fim de 2023].
O governo federal titulou 11 comunidades em 2023, e lideranças quilombolas dizem esperar que o processo acelere a partir de agora. O que pode ser feito para titular mais?
A gente tem o número de 16 [titulações] somando tudo o que foi feito tanto nacionalmente quanto em governos dos estados. Tivemos um avanço acima da média em algo que não foi feito nem no Lula 1 e 2, Dilma, e depois do golpe.
É um processo delicado. Titular é o último passo. Na transição [de governo], quando a gente sentou com a Conaq [Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos], o primeiro pedido deles foi: coloque como objetivo que todo o processo caminhe.
Tem oito passos, e a titulação é o nono. Acho lindo titular, mas são processos que estão há décadas parados. Primeiro que a gente tem que fazer com que todas as etapas do processo, como um todo, andem.
Existem casos de titulação que demoraram quase 20 anos e boa parte desse processo, pensando em âmbito federal, quem faz é o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Como está a interlocução com o órgão?
Não tem como falar do Incra sem falar do Paulo Teixeira, que está no MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário, pasta a que o instituto está ligado].
A gente tem trabalhado em conjunto, entendendo que [o governo] ficou seis anos sem esse olhar [para os quilombolas]. Óbvio que a gente sempre quer fazer mais, mas eu também entendo e respeito cada órgão com sua responsabilidade.
Qual a maior dificuldade apresentada pelo Incra?
Não é fácil implementar política pública para igualdade racial. Não é tão simples, somos 56% da população. Eles [Incra] têm os seus desafios.
Como encontrou a situação no ministério, em relação às políticas para quilombolas?
Quando a gente chamou para conversar o Ronaldo Santos, que hoje é o secretário para políticas quilombolas, ele falou: “Temos R$ 150 mil deixados pela última gestão e isso não dá para titular nem dois metros.”
No modo geral, não só para quilombo, recebemos R$ 4 milhões da última gestão. Quilombos foram titulados porque o último governo precisava, para seguir ordens judiciais, não porque queriam.
Os quilombolas saíram das negociações para conciliar interesses das comunidades com os da Base Espacial de Alcântara, no Maranhão, e têm reclamado da postura do governo. Como está a situação e quais medidas irá tomar?
A gente também foi pego de surpresa. Desde janeiro, fazemos uma escuta ativa. Estamos indo nos territórios, e não foi diferente em Alcântara. Esse não é um conflito de agora, já tem 40 anos.
A comunidade topou falar com a gente. Sentamos, conversamos e fizemos várias propostas. O nosso intuito principal é que as coisas sejam feitas em conjunto, respeitem o território e a liberdade das pessoas.
Ainda temos a expectativa que eles retornem [para o grupo de negociações]. Eu já estive do outro lado, sei o que é você estar batalhando por uma coisa.
Existe a possibilidade de fazer uma nova proposta?
Com certeza, eu acho que o diálogo é a melhor saída. O grande fio da meada é a gente fazer com que eles entendam que precisamos fazer esse projeto cada vez mais juntos, que a gente é um aliado e não está ali para disputar, é para auxiliar. Eu vou sentar, vou escutar e quem sabe a gente consiga ter aí um fechamento diferente.
Muitos quilombolas reclamam de falta de apoio em relação às ameaças de violência e morte. Em agosto passado, a líder quilombola Bernadete Pacífico, a Mãe Bernadete, foi assassinada na Bahia. Como o ministério tem dado apoio nesses casos?
Tivemos uma reunião, no ano passado, eu, Sílvio [Almeida, ministro dos Direitos Humanos], Paulo Teixeira, Incra e as equipes dos três ministérios. Falamos justamente sobre o programa de proteção. Eu mesma faço parte do programa desde que mataram a minha irmã [a ex-vereadora do Rio Marielle Franco]. Estamos muito atentos a isso.
É uma articulação interministerial, precisa envolver Polícia Federal, Ministério da Justiça. Quando fizemos essa reunião, o Sílvio estava no momento de reformulação do programa, parece que será até o final de março.
Sobre a Mãe Bernardete, primeiro é lamentar e sentir muito pela família, porque só quem passa por isso sabe a dor que é.
Em entrevista à Folha, em dezembro, o sociólogo Henrique Restier afirmou que os homens negros têm sido negligenciados na sua gestão. Como vê esse tipo de crítica?
Com muito respeito, eu achei uma entrevista bem rasa. É uma coisa que eu lamentei. Me coloquei à disposição para conversar e trocar. Sou fruto de um feminismo de mulheres negras que luta pelo povo negro.
Eu jamais à frente deste ministério tive apenas políticas pensando em mulheres. A gente faz e pensa em todos. O plano Juventude Negra Viva é pensado em conjunto com mais de 16 ministérios e fala da sobrevivência dos nossos jovens negros, principalmente os nossos homens negros.
Quando chamo a Nísia [Trindade, ministra da Saúde] para falar da saúde mental é porque o número de suicídios entre homens jovens negros cresceu de uma maneira desenfreada.
Pode ser até que algumas escolhas priorizem mulheres diante de dados. Mas você falar para mim que o ministério da Igualdade Racial só pensa em mulheres, eu vou dizer que é uma afirmação leviana, infundada.
A senhora vai ser candidata a vice-prefeita do Rio de Janeiro nas eleições deste ano?
Eu estou ministra. Amo fazer o que eu estou fazendo, amo meu trabalho. Eu respeito muito o presidente Lula. Quero falar literalmente do presente. Eu acho que o futuro é uma coisa que só Deus sabe o que está reservado, mas, por ora, eu estou ministra.
Raio-X
Anielle Franco, 39
Ministra da Igualdade Racial, é formada em jornalismo e inglês pela Universidade da Carolina do Norte e em inglês/literatura pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). É mestre em jornalismo e inglês pela Universidade da Flórida A&M e mestre em relações étnico‑raciais pelo Cefet/RJ. É professora e doutoranda em linguística aplicada na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Fonte: Folha de São Paulo