Um ano depois da morte do filho Eduardo Campos, ministra do TCU tenta voltar á vida e retomar a rotina. “Superando, não estou. Estou sobrevivendo.”
A “verrine aux fruits” do Café Daniel Briand é uma sobremesa feita em camadas de frutas frescas batidas com açúcar e gelatina, massa crocante à base de amêndoa, “creme patissière” (de confeiteiro) e pedaços de frutas. Com a colher, Ana Lúcia Arraes de Alencar faz túneis verticais até o fundo da taça, para levar à boca todos os sabores juntos. “Um espetáculo”, define. Após uma tarde de trabalho no Tribunal de Contas da União (TCU), a ministra chegou com apetite ao charmoso café ao estilo parisiense, mas admitiu estar mesmo de olho na vitrine de doces. Ana Arraes é doida por açúcar e estava de dieta havia mais de 20 dias. Naquela noite de 2 de setembro, não resistiu à tentação. “Eu quero pecar. Você vai ter a confissão de que eu quero pecar”, afirma. Ana Arraes engordou muito depois da morte do filho Eduardo Campos, ex-governador de Pernambuco, em acidente aéreo no dia 13 de agosto de 2014, quando ele disputava a Presidência da República pelo PSB. A dor é insuperável. “Pensava em nada”, tinha “uns brancos” e se esquecia de tudo. “Superando, não estou. Estou sobrevivendo. O tempo passa, mas não passa a saudade. A gente tem que continuar vivendo. Sou uma pessoa de muita fé, o que me ajudou muito. Tem uma música na igreja que diz assim: ‘Pai, ó Pai, eu quase que me esqueci que seu amor vela por mim'”, diz, lágrimas correndo pelo rosto. Pede licença para pegar um lenço de papel e retoma o desabafo. “Você fica sem chão. A ordem natural das coisas foi rompida. Não é justo.” Pouco mais de um ano depois da morte do filho e parceiro político, essa pernambucana de 68 anos tenta voltar à vida. Suspendeu os calmantes dos primeiros meses e agora recorre apenas a um fitoterápico para dormir. Na agonia, comeu muito doce. Precisa perder 5 kg para voltar aos 63 kg que tinha antes. Seu cardiologista deu seis meses para ela recuperar a forma. “Eu fazia Pilates e caminhada, em Brasília e no Recife. Parei geral. Agora, retomei a caminhada. De uma hora a uma hora e dez minutos. Limpo o juízo, rezo e fabrico endorfinas. De vez em quando, fraquejo. Aí dá aquela paúra, como diz o povo da minha terra.” A conversa com “dona Ana”-como ela era chamada pelo filho Eduardo – para este “À Mesa com o Valor” foi feita em duas etapas. Houve lágrimas, mas também risadas, recordações e muita história, boa parte sobre o pai, Miguel Arraes (1916-2005), três vezes governador de Pernambuco, deposto do cargo e preso pelos militares no golpe de 64. O primeiro encontro se deu em tomo da mesa de seu gabinete no TCU. Uma ministra discreta, elegante e simpática nos recebeu. Contida nos gestos, falou de sua dor, da política e do papel que Eduardo Campos poderia ter na crise atual. Contou que o outro filho, Antônio Campos, escritor e advogado, deve se candidatar a prefeito de Olinda (PE) em 2016, em sua primeira disputa eletiva. Revelou admiração por Renata Campos, viúva de Eduardo – “uma mulher forte, muito bem formada, e uma grande mãe”-, e amor por todos os netos. Miguel, o caçula de Eduardo e Renata, que nasceu em janeiro de 2014 com síndrome de Down, mereceu destaque. “Ele é muito lindo, muito feliz, carinhoso. É muito amado. Os irmãos mais velhos o estimulam muito. Ele é louco pelos irmãos. Graças a Deus, já está andando. Renata é especial. Digo que ela vai ter que escrever um livro. Ela dá um linguajar diferente a muita coisa, anima, não deixa a fisioterapia ser uma coisa chata. Não se cansa. Eduardo dizia o seguinte: ‘Mamãe, a dedicação de Renata vai levar Miguel a Harvard'”, conta a avó. A ministra preparou sua casa em Brasília para hospedar o neto, para evitar hotéis, quando a família estiver na capital. Dois dias depois da entrevista no TCU, Ana Arraes nos encontrou no Daniel Briand. “Nunca mais eu tinha vindo aqui. Mais de ano faz”, diz, olhando em volta, para as pequenas mesas ao ar livre, cercadas por um jardim e iluminadas por velas. “Já vim com ele [Eduardo], com Renata, com Tati [a assessora Tatiana, que nos acompanha no jantar], outras amigas, minha irmã. Nunca mais eu saí…”, fala baixinho, parecendo pensativa. À vontade no charmoso café, relembrou em detalhes episódios da infância e da juventude e bastidores domésticos de momentos históricos vividos pelo pai, que morreu também em um 13 de agosto, em 2005, exatamente nove anos antes do neto. Miguel Arraes completaria 100 anos em 2016. A preparação das comemorações do centenário já começou. Ana é a segunda dos oito filhos que Miguel Arraes teve com a primeira mulher, Célia de Souza Leão Arraes de Alencar, que morreu em 1961, aos 36 anos. Ana tinha 13 anos de idade. “Já tenho um exercício grande de perda.” A avó materna e as tias ajudaram o pai a criar os filhos pequenos, assim como a segunda mulher de Arraes, Maria Magdalena Fiúza Arraes de Alencar, com quem ele teve outros dois. Ao chegar ao café, Ana Arraes foi recebida pelo francês Daniel Briand, chef da casa. Após quase pedir desculpas por não tomar bebida alcoólica – “tenho esse defeito”-, Ana pede um chã. Diante das opções, escolhe um de maçã, capim e limão francês. Prometeu ser disciplinada e resistir à tentação dos doces, “uma das coisas melhores da vida”. Mas o compromisso durou pouco. A ministra quis escolher logo o prato salgado. Recebeu explicações de Briand e, conversando em francês com o chef, optou por “galette” de sarraceno (farinha de trigo escura, com pouco glúten), metade de camembert e metade de salmão. Aprendeu a língua francesa com um professor particular, monsieur Michel, aos 9 anos de idade, e continuou a estudá-la. O inglês é somente o da escola. Diz que, “tímida”, entende mais do que fala. Entre um gole e outro de chã, Ana relembra o golpe de 64, do ponto de vista familiar. “Na madrugada do dia 31 de março para 1º de abril, papai me acordou. Estava uma movimentação imensa no palácio. Papai me acordou e disse: ‘Está tudo bem, minha filha. Mas quero que você vá ajudar a Magda [sua madrasta] a juntar as coisas dos seus irmãos, porque vou mandar vocês pra casa da sua avó. Não se preocupe, porque está tudo bem'”, conta. Foram todos para a casa da avó materna de Ana, “que era louca” pelo genro. “De tarde, quando esquentou, papai mandou todos os empregados do palácio irem embora. Ficaram dois. Papai me ligou e disse: ‘Minha filha, aconteça o que acontecer, seu pai só tem uma coisa pra deixar pra vocês, a dignidade. Quero que você transmita a seus irmãos. E faço questão de que eles honrem isso.” Foi a última conversa com o pai até visitá-lo na prisão, em Fernando de Noronha. Dias depois do golpe, com o pai preso, Ana levou “metralhadora no peito”, quando soldados invadiram sua casa em busca de documentos. “Você pensa que a gente teve a vida fácil?”, pergunta a ministra, entre risos e bocados do “galette”. Miguel Arraes ficou preso durante um ano e dois meses. Segundo a filha, desaparecia da cadeia às vezes e a família ficava sem notícias do seu paradeiro. “Você não sabe o que é novela”, continuou Ana, acrescentando um drama pessoal ao enredo histórico. Seu casamento com o escritor e poeta Maximiano Accioly Campos (1941-1998), pai de Eduardo e Antônio, estava marcado para 9 de agosto. Com o noivo – que foi oficial de gabinete do sogro no governo estadual – foi ao quarto Exército pedir que o pai pudesse assistir à cerimônia. “Não tenho nada a pedir aqui. Como filha, tenho direito que meu pai assista a meu casamento”, lembra de ter dito. Um dos coronéis, linha-dura, disse que tinha uma filha da mesma idade e autorizou. Para contar com a presença de Arraes, no entanto, o casamento teve que ser realizado na capela da Base Aérea do Recife. “Casei sob a mira de metralhadoras”, diz. Era Dia dos Pais e as crianças levaram desenhos e presentes. Exceto o capelão, todo mundo chorou, inclusive o militar que acompanhava o preso. O pai obteve habeas corpus em 1965, foi solto, mas, convencido de que seria novamente preso, ficou escondido. Após algumas tentativas frustradas, foi acolhido pela então recém-criada embaixada da Argélia, país onde viveu exilado por 14 anos. A Filha levou os netos Eduardo e Antônio para conhecê-lo. Miguel Arraes voltou ao Brasil em 1979, com a Anistia. Foi eleito outras duas vezes governador de Pernambuco e deputado federal por três mandatos. Briand acompanha com curiosidade os relatos de Ana e demonstra especial interesse pela fase da Argélia, país que conheceu em suas viagens pelo mundo. Com um pai padeiro e confeiteiro, o francês dava aulas de confeitaria em Paris quando conheceu a fotógrafa brasileira Luiza Venturelli, então cursando doutorado na França. Casaram-se e vieram para Brasília, onde moram há 21 anos. Após analisar o mercado, abriu o café com ares da França e receitas do próprio Briand. Nessas duas décadas, o negócio cresceu. O café da manhã é concorrido, com croissant, “pain au chocolate”, queijos e geleias. A casa também serve bons vinhos, sopas, quiches, saladas, “galettes” e “vol-au-vents”. As vitrines exibem doces finos, tortas e chocolates. Sorvetes artesanais são vendidos em um carrinho. Os garçons usam boina e avental. O café era um dos locais frequentados por Eduardo Campos em Brasília. Parte da conversa gira em tomo de receitas francesas. Ana, que tem nove irmãos, revela que cozinha “de um tudo”. O prato que mais faz sucesso na família é o lombo paulista ao molho ferrugem. “Faz o lombo numa panela, põe todos os temperos e deixa uma chaleira de água quente, botando aos ‘pouquitos’. Faz um molho espesso, marrom. Meus irmãos adoram. O segredo é temperar e cuidar da água. Se encharcar, perde o gosto. Esse é um clássico lá em casa porque todos adoram e ninguém sabe fazer”, diverte-se. Gosta de preparar galinha de capoeira (ou caipira), capão (um galo grande) e “uns bons bacalhaus”. Antes mesmo de terminar o “galette”, a ministra admitiu que não resistiria à tentação da sobremesa e escolhe a “verrine aux fruits”. “É um bom pecado. Se há de pecar, tem que ser grande. Pecado miúdo, Deus não vê. Assim, Deus vê e chama a gente à ordem.” O açúcar faz parte da história familiar da ministra. É da família da mãe a receita de um famoso bolo pernambucano, que leva o sobrenome matemo: o bolo Souza Leão. Só perde em popularidade no gosto do Estado para o bolo de rolo. Ao atento chef francês, a ministra explica que o bolo Souza Leão é feito de massa da mandioca, açúcar, gema e manteiga. Por causa da dieta, Ana Arraes não tem doces em casa. Mora sozinha, em Brasília. Tem uma empregada “ótima”, que lhe faz companhia, além de assessores, com quem geralmente almoça. Todos a ajudaram muito no período mais difícil. Ficou afastada do TCU e os processos sob sua responsabilidade se acumularam. Agora, já estão em dia. “Zerei meu passivo. Tem muito processo. Não é brincadeira, não. Eu gosto de ler tudinho.” O trabalho ajuda a ministra a seguir em frente. “O trabalho organiza, tira você do seu assunto. Quando chega em casa, é outra coisa. Mas aí já passou um pedaço do tempo.” A ida para o tribunal, em 2011, foi objeto de polêmica, porque Eduardo Campos, então governador, fez intensa campanha por sua eleição pela Câmara dos Deputados. A então deputada federal pelo PSB derrotou o colega Aldo Rebelo (PCdoB-SP), tomando-se a segunda ministra da história do TCU. O assunto não era estranho. Formada em direito, trabalhou no Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco de 1990 a 1996. Ana Arraes elogia o trabalho do tribunal por contribuir ao avanço da execução dos projetos e prestação de contas dos governos. Não comenta o julgamento das contas de 2014 da gestão de Dilma Rousseff, pelo TCU, que pode ocorrer neste mês. O TCU aguarda explicações do governo. “Vamos aguardar o que é que vem de resposta”, limita-se a dizer. Também evita falar do momento político, mas concorda com a necessidade de uma “nova política” para o país, como pregava o filho Eduardo Campos. “Precisamos de uma política com objetivos claros, que sejam unificadores. O Brasil precisa de união. Precisamos criar novos marcos do desenvolvimento brasileiro. O primeiro, no meu entender, é a educação, que melhorou muito no Estado de Pernambuco.” A última conversa de Ana Arraes com seu filho foi na véspera do acidente, após a entrevista ao “Jomal Nacional”. Falou com ele por telefone e depois mandou uma mensagem, com uma oração de proteção. “Por que, né? Tava tão bonito. Lindo que ele tava. Um espetáculo. Inteligente, né?” Apesar de ter “um bocado de motivo para ter trauma”, não perdeu interesse pela política, com a qual convive desde que nasceu. Como prefeito do Recife e governador de Pernambuco, Miguel Arraes gostava de levá-la “pra todo canto”. Ana participava como voluntária das audiências públicas concedidas às sextas-feiras, para ouvir demandas da população. Lembra com orgulho do acordo obtido pelo pai entre líderes das ligas camponesas e usineiros da cana-de-açúcar para a concessão de direitos trabalhistas aos camponeses. Com o mesmo orgulho, diz que Eduardo Campos alterou Pernambuco. “Mudou a economia e a vida das pessoas.” Cita a qualificação da mão de obra, dando exemplo da fábrica da Fiat em Goiana, que contrata principalmente pernambucanos, muitos deles ex-cortadores de cana. Elogia a escola de tempo integral e o programa Chapéu de Palha, criado por Arraes e reeditado pelo neto, para que os empregados na colheita estudem ou façam outro trabalho na entressafra. “Eduardo daria uma contribuição importante para o país… Ele era uma pessoa que ia influir na República hoje”, diz. Pensa um pouco e continua. “Ele sempre teve a consciência de que ninguém faz nada só. Tinha sempre a virtude de juntar. E é juntando que a gente constrói.” Eduardo Campos interessou-se pela política desde pequeno, antes mesmo de o avô retomar do exílio. Em 1982, participou ativamente da campanha de Miguel Arraes a governador. Tinha 16 anos. Não era eleitor, mas já cursava faculdade de economia. Para participar da campanha de reeleição do avô em 1986, a mãe exigiu que se formasse primeiro. Com a reeleição de Arraes, foi nomeado chefe de gabinete do governador. Em 1991, foi eleito deputado estadual e, em 1994, federal. Foi ministro da Ciência e Tecnologia do governo Luiz Inácio Lula da Silva. “Nunca mais vi o presidente. Conheço o presidente Lula porque ele foi à minha casa para a chegada do meu pai do exílio. Quando o presidente Lula estava na caravana da cidadania, passando por Pernambuco, jantou na casa de papai e fui eu quem arrumei o jantar”, diz. Ao ser lembrada de que Lula esteve no Recife para o velório de Eduardo Campos, diz: “Eu não estava acordada”. Com Dilma Rousseff, os contatos foram menos frequentes. Eduardo Campos assumiu a presidência do PSB em 2005, sucedendo o avô no comando partidário. Em 2006, foi eleito governador e, em 2010, reeleito. Embora filiada ao PSB e militante, segundo ela, Ana Arraes não havia disputado mandato eletivo até a morte do pai. Em 2006, quando o filho decidiu disputar o governo, ela concordou em concorrer à Câmara dos Deputados, considerando importante “ganhar os espaços políticos” após um “hiatozinho de 1999 a 2006”, em que a família ficou fora do governo estadual. “Eduardo era muito novo. A gente tinha levado um pau grande em Pernambuco na eleição anterior. A gente precisava do elo entre papai e Eduardo. Quem era o elo? Era eu, porque uma história tem sequência.” Quando era deputada e o filho, governador, Ana Arraes fazia sugestões. Uma delas foi para o Estado pagar merenda escolar aos estudantes do ensino médio nas escolas públicas. O interesse surgiu quando, em uma inauguração de escola estadual em Caetés, foi cercada de “meninos”, que pediram merenda. “A vontade que tive foi de chorar. Fui falar com Eduardo que ele tinha que pagar. Ele me disse: ‘Mamãe, eu já fiz a conta. São RS 50 milhões’. Eu disse, pois gaste, que é bem gasto”, lembra Ana, rindo ao contar o diálogo. Com a morte de Eduardo Campos, a família ficou de novo afastada da política estadual. O filho mais velho do ex-governador, João, de 24 anos, estudante de engenharia civil, deve disputara Câmara dos Deputados em 2018 e Antônio deve tentar a Prefeitura de Olinda. Como ministra do TCU, Ana Arraes não pode ter filiação partidária. O cargo é vitalício, mas, quando perguntada, não descarta, de pronto, voltar a disputar mandato eletivo – nem mesmo para o Executivo. “A cigana haverá de saber do meu destino”, diz, rindo solto. Termina o jantar pedindo café descafeinado. Com adoçante. “O tempo passa, mas não passa a saudade. A gente tem que continuar vivendo. Sou uma pessoa de muita fé, o que me ajudou muito” Por Raquel Ulhôa
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Fonte: Valor Econômico
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