Juliana* passou os últimos quatro de seus 21 anos convivendo com a violência doméstica. O marido a agredia regularmente. Precisou largar o emprego, onde era assediada pelo agressor na frente dos colegas e contabilizava faltas por não conseguir trabalhar depois das surras. Sofre de depressão e precisa comprar remédios para dormir e fugir dos pesadelos. Está abrigada num centro de atendimento especializado mantido pelo Estado. Precisa tratar o filho de 3 anos com uma psicóloga para reeducá-lo, pois a criança reproduz o comportamento do pai.
Juliana abandonou a carreira profissional ainda no início da sua vida produtiva e pretende voltar para o Piauí, de onde veio, assim que o processo judicial que move contra o ex-companheiro tiver um desfecho e ela própria se fortalecer. “Preciso recomeçar do zero. Quero dar uma vida melhor para o meu filho”, conta. O caso de Juliana, infelizmente, é uma realidade bastante comum no Brasil e no mundo. A violência doméstica, cujas principais vítimas são mulheres e crianças, gera custo de US$ 8 trilhões por ano (R$ 20 trilhões) para a economia global e mata mais do que as guerras, aponta estudo encomendado pelo Centro de Consenso de Copenhagem aos pesquisadores Anke Hoeffler, da Universidade Oxford, e James Fearon, da Universidade Stanford. “Para cada morte civil em um campo de batalha, nove pessoas são mortas em desavenças interpessoais”, diz o relatório. O preço da violência é elevado, sobretudo, pela perda da produção econômica. Mas não só. No Brasil, as estatísticas não são precisas, mas os gastos estimados passam pelos custos com os longos processos no Judiciário, no sistema de saúde para atender as vítimas, na criação de um aparato de proteção, com procuradorias e, delegacias especializadas e centros de atendimento. Carla Valente, coordenadora do Centro Especializado de Atendimento à mulher (Ceam) do Distrito Federal, ressalta que a rede de proteção às vítimas de violência doméstica está aumentando, assim como os custos para manter o aparato. Administrado pela Secretaria da mulher, o Ceam abriu a quarta unidade no Distrito Federal, em Ceilândia, cidade que registra o maior número de agressões às mulheres, com 16% de participação de um total de 9.165 de janeiro a agosto de 2014. São mais de mil denúncias por mês. Os principais crimes, no DF, são ameaças de morte (62,9%) e lesões corporais (31,5%). Para montar o Ceam Ceilândia, o imóvel foi cedido pela Polícia Civil e os equipamentos e móveis, doados pela Secretaria de Políticas para as mulheres da Presidência da República. Os recursos vêm dos impostos pagos pelos contribuintes, que também custeiam os vários profissionais e servidores que formam a equipe de atendimento às vítimas de violência doméstica. 62,9% Percentual das ameaças de morte nas denúncias de agressão contra mulheres Os prejuízos vão desde o que elas deixam de produzir até gastos com medicamentos e atendimentos no sistema de saúde. “É muito gasto implícito. Essas mulheres sofrem de depressão. Então, o remédio da farmácia popular, subsidiado pelo governo, também está inserido”, lembra. Para a delegada-chefe da Delegacia Especial de Atendimento à mulher (Deam), Ana Cristina Santiago, é bastante comum as vítimas de violência doméstica chegarem tão machucadas a ponto de não conseguirem trabalhar. “É um efeito dominó devastador. A violência começa em casa e toma proporções enormes.” Ana Cristina acredita que a rede terá que ser, constantemente, ampliada porque as denúncias vão se multiplicar. “Os dados atuais ainda são obscuros. Os casos devem ser, pelo menos, o dobro do que mostram os números oficiais. Na Deam, há mais mulheres pedindo informações sobre como proceder, querendo conhecer a Lei Maria da Penha, do que pessoas que realmente fazem a denúncia. Isso mostra que a maior parcela não se sente fortalecida para registrar o caso”, revela. A delegada informa que, só na Deam, 57 servidores e seis delegados se ocupam só dos casos de violência doméstica. “Mas as outras delegacias também recebem ocorrências”, diz. Joana*, de 18 anos, recorreu à Deam depois de não suportar mais as ameaças de morte e agressões do marido. Mas precisou abandonar o sonho profissional. “Era assistente educacional pela manhã, trabalho que queria seguir como carreira. À noite, dava expediente em um shopping. Perdi o primeiro emprego, um estágio, e me afastei do segundo”, conta. Caixa numa loja em frente ao estabelecimento onde o marido trabalhava, Joana conta que mal podia atender os clientes, porque o companheiro reclamava com os fregueses várias vezes. “A gerente ameaçou me demitir”, afirma. Ela está respaldada pela Lei Maria da Penha, que garante o afastamento do emprego por até seis meses. * Nome fictício INSS banca agredidas A promotora de Justiça de Defesa da mulher em Situação de Violência, Mariana Fernandes Távora, avalia a Lei Maria da Penha como positiva porque assegura estabilidade, mas considera que há um problema na aplicação do ônus. “Se o custo de manter a vítima no emprego ficar a cargo do empregador, isso pode gerar o efeito inverso. Ou seja, o empresário vai deixar de contratar as mulheres potencialmente vítimas de violência doméstica”, observa. O ônus então recai para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), com prejuízo aos cofres públicos. Desde o início do ano, contudo, o INSS está ajuizando ações regressivas no intuito de reaver o pagamento de benefícios emitidos para mulheres vítimas de agressão. Os atos dolosos (praticados com intenção pelo agressor) representam enorme prejuízo ao Regime Geral da Previdência Social (RGPS) e, consequentemente, afetam o pagamento dos diversos benefícios previdenciários devidos aos trabalhadores de todo o país. Agora, o INSS tenta fazer com os culpados paguem pelo prejuízo. Em fevereiro deste ano, numa ação ajuizada no Rio Grande do Sul, a Justiça decidiu que o réu agressor ressarcisse o INSS e criou jurisprudência para vários outros casos. A proposta surgiu do Instituto Maria da Penha, e o objetivo principal, na opinião da assessora do Centro Feminista de Estudos (Cfêmea), Leila Rebouças, é uma ação pedagógica. “Doendo no bolso, talvez os agressores aprendam”, afirma. Além de reduzir o prejuízo, que é pago pelo contribuinte, a medida ajuda na prevenção e na repressão da violência doméstica. A secretária nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, Angélica Goulart, lembra que, apesar de as mulheres serem as principais vítimas de agressão, as crianças também são muito afetadas. “Quando um relatório como esse, que aponta gastos de mais de R$ 20 trilhões, surge, é um alerta para a sociedade”, finaliza. (SK) Perdas em série Violência dentro de casa eleva custos da saúde, da segurança e e da Justiça, além de prejudicar a produção No mundo » A violência doméstica, sobretudo contra mulheres e crianças, custa US$ 8 trilhões à economia global » Para cada morte civil em campo de batalha, nove pessoas são mortas em desavenças interpessoais » A violência em geral custa US$ 9,5 trilhões, 11,2% do PIB mundial, sobretudo em perdas da produção » Cerca de 290 milhões de crianças no mundo sofreram alguma forma de violência disciplinar no lar » Estimativas apontam que o abuso de crianças drena 1,9% do PIB em nações ricas e 19%, na África » Um em cada cinco dias de falta ao trabalho no mundo é causado por atos violentos domésticos » A cada cinco anos, mulheres vítimas de agressões perdem, em média, um ano de vida saudável » Na América Latina e no Caribe, a violência doméstica atinge de 25% a 50% do total das mulheres » Nos Estados Unidos, levantamento estimam gastos de US$ 5 bilhões a US$ 10 bilhões ao ano No Brasil » A Central de Atendimento à mulher (ligue 180) recebeu 532.711 registros ano passado e já são quase 3,6 milhões de denúncias desde que o serviço foi criado, em 2005 » A grande maioria das vítimas está no período produtivo da vida: 78% das mulheres estão na faixa etária de 20 a 49 anos » Em 2013, dos 106.860 encaminhamentos para a rede de atendimento, 62% foram direcionados ao sistema de segurança e Justiça » Os autores das agressões são, em 81% dos casos, pessoas que têm ou tiveram vínculo afetivo com as vítimas: 62% por companheiros e cônjuges e 19% por ex-maridos e ex-namorados » A Secretaria de Direitos Humanos (SDH) recebeu 124.079 denúncias de violência contra crianças e adolescentes em 2013, sendo 42,63% agressões físicas e 25,71% abusos sexuais. Este ano, já são 49.095 » Os homossexuais também sofrem violência doméstica. Ano passado, 1.044 casos foram denunciados. Em 2014 já são 537 ocorrências na SDH » Os números reais, contudo, são infinitamente maiores porque, na maioria dos casos, as vítimas não denunciam os agressores Fontes: Banco Mundial, Relatório do Centro de Consenso de Copenhagem, Secretaria dos Direitos Humanos e Secretaria de Políticas para as mulheres da Presidência da República |
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Fonte: Correio Braziliense
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