*Por Jarid Arraes
* Este conteúdo é de responsabilidade do autor, não necessariamente expressa a opinião do PSB.
O roteiro é recorrente: sempre que uma mulher é espancada, mutilada ou morta por um parceiro, principalmente quando algum tipo de agressão já havia ocorrido, muitas pessoas questionam as atitudes que não foram tomadas pela vítima. “Por que não se separou?” e “por que não fez a denúncia?” são algumas das indagações mais frequentes. Afinal, por que alguém permaneceria em um relacionamento em que se é surrada e humilhada?
Mas na vida real e na hora fatídica de tomar uma decisão, muitos fatores estão presentes para dificultar a libertação da mulher agredida. Os efeitos da violência psicológica são obstáculos muito duros; para uma mulher que escuta o tempo inteiro que não tem valor, que é xingada, que tem sua aparência física debochada e suas capacidades intelectuais menosprezadas, pode ser muito difícil compreender que a situação da violência não é parte da vida e não deve ser aceita. Muitas vítimas acabam acreditando que devem suportar as agressões, pois – como o seu agressor lhes diz – nenhuma outra pessoa atribuirá a elas qualquer valor. “Estou te fazendo um favor”, diz quem violenta. E as feridas criadas por esse tipo de violência são difíceis de cicatrizar.
Por isso, não é incomum nos depararmos com mulheres que apanham de seus parceiros com frequência, mas não se sentem capazes de sair daquele relacionamento e nem conseguem enxergar uma vida possível a partir da separação, por mais que terceiros apontem as alternativas. No entanto, em uma cultura que desvaloriza o conhecimento sobre a mente e os sentimentos humanos, é muito mais comum que se critique as vítimas que possuem a autoestima destruída do que tentar compreender as consequências terríveis dos abusos.
Além do fator psicológico, muitas mulheres não possuem alternativas concretas e nem conseguem receber auxílio para deixarem o contexto em que sofrem agressões. Desde a falta de suporte da família, até a falta de recursos financeiros, muitos elementos se juntam e criam um verdadeiro muro de isolamento. Como a vítima poderia fugir da situação de violência se os familiares “não se metem” na situação? Ou se ela não conta com suporte psicológico e nem tem meios imediatos para viver uma vida independente? Em incontáveis casos, permanecer na relação sofrendo violência é a única alternativa para que aquela mulher continue comendo, vestindo e morando sob um teto – ainda que tudo isso seja controlado com crueldade.
Para aquela mulher que tem filhos com o agressor, a situação é ainda mais difícil, pois dificilmente a justiça funciona com rapidez para garantir a proteção e o afastamento do indivíduo que violenta a mulher. Muitos abusadores usam os filhos como brecha para se aproximarem da vítima e muitas vezes essa única oportunidade acaba com a morte da mulher e até mesmo das crianças.
Se os fatores pessoais das vítimas já causam obstáculos muito difíceis de transpor, ainda vale lembrar que nem mesmo as delegacias da mulher estão totalmente aptas para receber, acolher e orientar as vítimas. Na cidade do Crato (CE), por exemplo, a própria delegada já praticou abusos verbais contra as mulheres que procuravam ajuda. De fato, mesmo as vítimas que procuram ajuda acabam sem informações, sem ajuda e sem qualquer segurança de que serão protegidas, sem contar com o medo de despertar a ira do agressor.
Com tantos elementos hostis pesando contra as mulheres, muitos deles embasados em uma cultura naturalizada de machismo, não é difícil entender os motivos das vítimas que continuam com seus agressores. Por trás de cada mulher que “perdoa” o homem que a violenta e insiste no relacionamento, há toda uma sociedade ensinando que mulheres devem tolerar o comportamento agressivo dos homens e que se elas se dedicarem, esses mesmos homens podem mudar. Há negligência, falta de informações e falta de suporte real por parte de amigos e familiares. Por trás de cada vítima que continua com seu agressor, há uma mente destroçada e falta de autonomia.
O papel daqueles que estão ao redor e que acompanham as notícias trágicas sobre mulheres vítimas de violência doméstica deve ser um compromisso com a conscientização e o esforço para a eliminação do machismo das práticas cotidianas. Não adianta apontar o dedo na cara da vítima, mas continuar a se calar diante do machismo no dia-a-dia; afinal, é ele que está por trás de todo esse quadro de violência contra mulheres.
*Jarid Arraes é colunista na Revista Forum, feminista e ativista pelos Direitos Humanos.
Fonte: Portal Fórum