Um cartaz amplamente divulgado no Uruguai – país reconhecido por sua educação universal, laica e gratuita – e afixado em um ônibus em Montevidéu, como parte de uma campanha promovida pela ONU Mulheres em função do Dia das Crianças, comemorado por lá no dia 18 de agosto, mostra a imagem de um menino ajudando uma menina a trocar a fralda de uma boneca, representando a figura de um casal dividindo a tarefa do cuidado com um/a filho/a. Abaixo da imagem, os dizeres: “Os papéis de gênero também se aprendem brincando. Se as crianças brincam livres [de qualquer tipo de preconceito], os papéis sociais se reconstroem”. No Brasil, a masculinidade no contexto de papéis sociais de gênero tradicionalmente associados à figura feminina – como a noção do cuidado – também esteve em destaque neste mês de agosto: foi um dos temas abordados no 1º Seminário Nacional Paternidade e Cuidado na Rede SUS, organizado pelo Ministério da Saúde. Jorge Lyra, psicólogo e professor da Universidade Federal de Pernambuco, destacou, no painel “Por que envolver os homens nas ações de cuidado?”, suas primeiras pesquisas no campo da paternidade. Ao investigar gravidez na adolescência nos anos 1990, era comum a figura do pai adolescente não fazer sentido. “Era como se não existisse, de acordo com o desenvolvimento exploratório das pesquisas. Ao buscar o Exército como fonte de pesquisa sobre paternidade, descobri que ter filho era associado à dispensa ou a arrimo salarial. Ou seja, a figura do pai está associada de maneira negativa ao que se espera tradicionalmente de homens”, afirmou. Destacando como as dimensões do afeto e do carinho são mal vistas quando manifestadas por homens, o psicólogo afirmou que as relações e assimetrias de gênero afetam homens e mulheres. “As diferenças se manifestam institucionalmente: nas escolas, nos serviços de saúde, nas forças armadas, no campo jurídico, na demografia. Por exemplo, não temos ideia precisa sobre a fecundidade masculina, embora nós homens sejamos também pais. Certamente, tais dados dariam mais conteúdo para se pensar ações e políticas públicas em benefício da sociedade”, criticou. O processo sociocultural de concentrar o cuidado na figura feminina não significa, de acordo com Jorge Lyra, que isso seja imutável. “É preciso levar e trabalhar a questão do cuidado com os filhos para o campo da masculinidade. Gravidez não é sinônimo de maternidade. Por isso, é importante que ações políticas, educativas e de pesquisa sejam desenvolvidas para quebrar o muro de silêncio que bloqueia a inserção do homem nas representações de cuidado. É importante, sobretudo, intervir no Sistema Único de Saúde, alterando determinadas concepções no âmbito institucional”, afirmou Jorge Lyra. Marco Aurélio Martins, do Instituto Promundo, apontou que os homens não são criados para aprender a cuidar. A conduta socialmente valorizada envolve risco, agressividade. “Não é à toa que nosso sistema carcerário está superlotado, majoritariamente ocupado por homens”, afirmou, acrescentando que o modelo de masculinidade predominante prejudica uma inserção apropriada dos homens no campo da saúde. “Os homens entram pela emergência, não pela prevenção”, afirmou. De acordo com Marco Aurélio Martins, é preciso que o vínculo entre homem e criança também seja promovido. Uma das saídas, apontou, é usar o setor de saúde como catalisador dessa aproximação, sensibilizando profissionais e forjando uma cultura em que o envolvimento do homem com os filhos seja consistente. Essa tem sido a aposta do obstetra e professor da USP/Ribeirão Preto Geraldo Duarte. Há alguns anos ele vem desenvolvendo o projeto “Pré-Natal Masculino” na cidade onde ensina. A estratégia tem sido fazer do pré-natal o canal de inserção do homem na lógica preventiva. A paternagem, assim, é utilizada como porta de entrada. “São vários os benefícios que a participação do homem traz. É importante acompanhar a saúde do parceiro, pois determinadas doenças sexualmente transmissíveis devem ser identificadas em benefício de uma gestação sem problemas”, afirmou. “Por exemplo, é fundamental fazer a testagem de sífilis, pois o contágio pode afetar a saúde fetal. Nesse sentido, ao incluir o homem no pré-natal, estamos visando a saúde do casal”, destacou o obstreta. Ainda de acordo com Geraldo Duarte, a participação do homem no pré-natal tem efeitos que vão além do período gestacional. “Vemos através de pesquisas que a chance de alcoolismo por parte dos homens é maior no puerpério. Por causa da necessidade de atenção maior ao bebê, o homem pode acabar se sentindo excluído, gerando depressão, ansiedade. Um pré-natal em que o casal esteja comprometido ajuda a conscientizar e também a envolver mais o pai nos cuidados. Isso se reflete também no momento do parto: com o envolvimento do pai, há mais segurança no procedimento”, explicou o obstetra. A representação de masculinidade não aparece desacompanhada apenas da responsabilidade com os filhos. Destaca-se também pela centralidade do desempenho sexual como atalho para a saúde do homem. Nesse sentido, conforme o pesquisador Romeu Gomes (Instituto Fernandes Figueira) argumenta no livro “Saúde do Homem em debate”, há uma genitalização da masculinidade, com discursos predominantemente atravessados por ideais como o da virilidade – ameaçados pela disfunção erétil. É possível, então, pensar de forma mais integral e ampla uma outra concepção de saúde do homem? Para o coordenador da área técnica de saúde do homem do Ministério da Saúde, Eduardo Chakora, a saúde sexual não pode ficar restrita à fisiologia dos órgãos sexuais. “É preciso estar atento à construção social do gênero masculino. Em uma sociedade em que a concepção de masculinidade está associada à virilidade, potência sexual e função erétil, quaisquer problemas nesse campo são vivenciados com enorme angústia, podendo levar a outros agravos de saúde decorrentes da tensão vivida e a sofrimentos que poderiam ser evitados caso houvesse uma reflexão adequada sobre estes sintomas. Há homens que evitam os serviços de saúde, por constrangimento ou medo do que podem ouvir sobre. Precisamos reverter esta situação”, afirma Eduardo Chakora. Pesquisa recente (http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-07-05/maioria-dos-homens-so-procura-medico-por-influencia-da-mulher-ou-de-filhos-revela-pesquisa) do Centro de Referência em Saúde do Homem de São Paulo mostrou que mais da metade dos entrevistados adiam a ida ao médico, chegando já com doenças em estágio avançado. O preconceito e sensação de invulnerabilidade estão entre as justificativas. Para Eduardo Chakora, é preciso olhar não apenas para a enfermidade, mas para o sujeito que se apresenta. “Muitas vezes, uma maior compreensão da origem dos sintomas, por exemplo, situações de estresse emocional intenso, fadiga decorrente do ritmo de vida, questões de cunho psíquico, problemas recorrentes de relacionamento com sua parceira ou seu parceiro, alterações no funcionamento sexual naturais da idade ou decorrentes de outros agravos, conflitos acerca de sua orientação sexual, entre outras questões, podem se somar à pressão de ter que funcionar sexualmente conforme é esperado de um homem. Com este repertório de problemas, frequentemente, se observa abalos na saúde sexual. Para tratar destas demandas, é preciso considerar o que o usuário pensa, como sente e como vivencia a sexualidade, abordando, de alguma forma, a representação social que ele tem do gênero masculino”, observa. Nesse sentido, afirma o coordenador da área técnica do homem, “temos buscado diálogo com os movimentos e segmentos sociais que enriqueçam a gestão. Defendemos uma visão mais ampla dos processos de saúde e adoecimento, que observe bem os aspectos socioculturais e econômicos, comportamentais e psíquicos do usuário, aliando a perspectiva biomédica à antropológica, buscando conhecer quem é o usuário antes de encaminhá-lo ou medicá-lo, para que estes procedimentos sejam mais pertinentes. Entendemos que seja importante oferecer ao usuário subsídios para que ele possa ter mais autonomia sobre sua saúde, possa conhecer melhor seu corpo, relacionar seus problemas de saúde à sua maneira de viver, a seus valores e crenças, ajudando-o a promover, em seu cotidiano, mais qualidade de vida neste e em outros campos”. Para além das representações culturais de gênero, há um fator que dificulta uma abordagem mais integral da saúde dos homens: a predominância de uma visão que projeta a ciência como a única forma legítima de conhecimento. “É muito arraigada em nossa cultura a dicotomia entre o corpo e a mente, entre as ciências naturais e as sociais. A saúde integral, que pressupõe uma abordagem biopsicossocial do homem, de uma análise do discurso que sustentamos sobre a saúde, é reduzida a uma questão estritamente bio-orgânica, sem nenhuma relação com as demais dimensões da vida. Um corte é feito isolando aspectos fundamentais da vida do usuário, apagando o processo que o levou a ser quem é e a adoecer deste ou daquele modo. O maior obstáculo à ideia de uma saúde integral é a raiz positivista do pensamento científico que, se de um lado, favoreceu tantos avanços nas tecnologias de que dispomos em saúde, de outro lado, seccionou o nosso entendimento integrado da vida e do ser humano”, afirma Eduardo Chakora. Não é um caminho fácil pensar a saúde do homem em bases amplas. Exige articulações interdisciplinares. Exige ainda refletir sobre a predominância da figura da mulher nas discussões sobre saúde e cuidado. “Há muito que pensar e fazer sobre os determinantes socioculturais dos adoecimentos. A perspectiva relacional de gênero é um eixo fundamental nesta discussão. A concepção hegemônica de masculinidade cria um paradoxo que o campo da saúde vem evidenciando: apesar das grandes conquistas feministas das últimas décadas, há muito ainda o que se alcançar, e os homens, ao mesmo tempo que d têm maior poder na vida social do que as mulheres, apresentam a atenção à sua saúde historicamente relegada pelas políticas públicas, com graves consequências em todos os níveis de complexidade da saúde e maiores índices de morbimortalidade”, afirma Eduardo Chakora. “Ao avanço da perspectiva crítica de gênero se associam outros referenciais de análise como raça/cor, etnia, orientação sexual, classe, geração, religião etc., ampliando a compreensão dos processos de saúde e doença entre homens em suas diferentes realidades”, conclui o coordenador da área técnica de saúde do homem. |
Fonte: Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos – www.clam.org.br
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