Segundo eles, Lei Maria da Penha não fez com que uma parcela da sociedade passe a ver as mulheres como cidadãs RIO – Reconhecida pelas Nações Unidas como uma das melhores legislações no enfrentamento à violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006, ainda não fez, de acordo com especialistas, com que uma parcela da sociedade passe a ver as mulheres como cidadãs. Ao comentar os estudos do Ipea – que apresentam dados sobre as vítimas de estupro, traçam o perfil do agressor e apontam a percepção do brasileiro em relação à tolerância da violência contra a mulher -, Samira Bueno, socióloga e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é taxativa: “mulher é vista como propriedade. Homem pode fazer o que quiser do corpo feminino”. – O que está em jogo é o que a população entende como violência. Está no senso comum que a mulher provoca e, por isso, é estuprada, que ela apanha porque o marido estava nervoso, que ela deve tolerar as agressões para manter o núcleo familiar. Mesmo com a lei, que é fundamental para que as questões sejam enfrentadas, existe tolerância. Na nossa sociedade, extremamente machista, a mulher ser tratada como propriedade é normal – diz Samira. De acordo com a socióloga, mesmo algumas políticas públicas optam por isolar a mulher, como se ela fosse responsável pela violência: – No Metrô de São Paulo, por conta dos casos de violência sexual, querem vagões especiais para mulheres. Isso já existe no Rio. Mas pergunto: o homem não pode conter seus desejos? Ele sabe que não pode simplesmente passar a mão no corpo de uma mulher. Relatora da Lei Maria da Penha, a senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO) diz que, a partir da lei, a sociedade passou a achar “politicamente incorreto” bater em mulher e que “o Estado entrou nas casas”. No entanto, a percepção sobre o estupro não mudou. – Nossa cultura reforça a supremacia masculina. A pesquisa mostra que mais de 25% concordam que mulheres devem satisfazer os maridos mesmo sem vontade. Essas pessoas não veem isso como estupro. Usar a mulher é um direito, ela não é um ser humano, existe para servir. Então, quando o estudo aponta o alto número de crianças estupradas, muitas vezes as famílias veem isso como normal – diz Lúcia. Uma das secretárias-executivas da ONG feminista Grupo Curumim, Paula Viana lembra que os números sobre estupro no Brasil são “muito subnotificados”, já que muitas vítimas – homens e mulheres – sentem-se envergonhados, acham que tiveram culpa e preferem não fazer a notificação: – Há uma culpabilização. A vítima pensa: eu estava de short, mereci. Ela não vai ao hospital, não procura a delegacia, tem medo de ser humilhada… O silêncio é grande, e muitas coisas são resolvidas no âmbito privado. No interior, por exemplo, é comum pai ter relação com a filha, irmão ter relação com irmã. Todo mundo sabe, mas fica por isso mesmo. Eles são os donos. Para a senadora, é necessário que as mulheres tenham cada vez mais informação: – Quando não sabem seus direitos, acham que têm que se submeter a tudo. Não podem ser formadas achando que têm que servir. A lei dá guarida à denúncia, mas o setor público precisa, por exemplo, aparelhar melhor as delegacias e oferecer mais abrigos. De acordo com Paula, no Brasil, as “violências sexual e doméstica são naturalizadas”. – Enquanto não tivermos uma discussão sobre gênero nas escolas, isso se perpetua. A educação ainda é machista. Essa mentalidade de que o homem é dono da mulher não está nas leis, mas está na sociedade. |
Fonte: O Globo
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