A discussão revela-se importante, pois, também segundo a FAO, 36% das mulheres que trabalham globalmente estão envolvidas com sistemas de produção agroalimentares. Heliani Berlato, professora da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), comenta sobre esse cenário: “Sempre há também uma precarização no modus operandi de trabalho dessa mulher. Muitas vezes relacionado aos papéis sociais. Então, esse é um ponto importante que precisa ser destacado. As melhores formas que a gente entende para promoção de igualdade de gênero partem primeiramente da consciência. A consciência que a sociedade precisa ter sobre o trabalho de homens e mulheres, é assim que a gente vai avançar na discussão de igualdade de gênero, principalmente no campo, onde a gente tem uma agricultura familiar também com forte trabalho”.
Além disso, o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar revela que a segurança alimentar é menor em lares chefiados por mulheres. Enquanto aqueles que são chefiados por homens apresentam taxa de segurança alimentar de 47,9%, o número cai para 37,05% quando as mulheres são as chefes, ou seja, mais de seis em cada dez lares chefiados por mulheres estão classificados em algum nível de insegurança alimentar. É interessante notar também que, mesmo em famílias com rendimentos mais altos, sendo a mulher a pessoa de referência, o risco de insegurança alimentar é maior.
Por fim, Heliani explica ainda que a relação entre a insegurança alimentar e o trabalho feminino na agricultura fazem referência à promoção de condições dignas ao trabalho das mulheres, fator que promoveria a produtividade do sistema e a redução da fome em uma escala mundial. Entende-se, dessa forma, que atribuir o devido protagonismo ao trabalho das mulheres pode ser um bom caminho para a solução da problemática.
Mais gente convivendo com a fome
O Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar revelou que, entre o final de novembro de 2019 e abril de 2022 (período de um ano e quatro meses), 14 milhões de pessoas passaram a conviver com a situação de fome no Brasil. A pandemia de covid-19 foi um forte agravante para a situação, contudo, é necessário entender que a fome apresenta raízes profundas na história brasileira.
Dirce Marchioni, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, explica o significado da palavra: “A insegurança alimentar significa falta de acesso a alimentos em quantidade e qualidade adequadas para a garantia da saúde. Em contraponto, a segurança alimentar representa a realização do direito de todos ao acesso regular, permanente e irrestrito a alimentos de qualidade, seja por meio de aquisições financeiras ou diretamente, alimentos que sejam seguros e em quantidade e qualidade adequadas e suficientes, sem que isso comprometa o acesso a outras necessidades essenciais como educação e saúde”.
Insegurança alimentar
“No mundo, segundo relatório que acaba de ser lançado pelas Nações Unidas e diversas organizações multilaterais, a insegurança alimentar aguda passou de 83 milhões de pessoas em 2016 para 193 milhões em 2021 e 253 milhões em 2022. Ou seja, triplicou em seis anos”, comenta o professor da Faculdade de Saúde Pública da USP Ricardo Abramovay, ao refletir sobre o aumento mundial desse cenário.
É importante mencionar que formas menos severas de insegurança alimentar também estão aumentando. Em 2021, a subalimentação chegou a atingir 9,8% da população mundial, valor que representa cerca de 800 milhões de pessoas. O professor completa que existem diferentes formas de subalimentação, as menos severas atingem 30% da população mundial, cerca de 2,3 bilhões de pessoas.
No cenário nacional, o Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar revelou que seis de cada dez brasileiros não têm acesso pleno à alimentação e que 15% da população enfrenta situação de fome, ou seja, cerca de 33 milhões de pessoas. A mesma pesquisa revelou que 8,2% das famílias relataram sensação de vergonha, tristeza ou constrangimento para garantir o que comer.
A insegurança alimentar apresenta diferentes justificativas para o seu nascimento, entre estas se encontram o aumento do desemprego e o sucateamento de políticas públicas de valorização do salário mínimo, por exemplo. Abramovay destaca ainda a importância de entendermos e lutarmos contra o desmantelamento das políticas sociais que, em situações de crise, permitem localizar os segmentos mais vulneráveis da população e ao menos garantir-lhes alimentação.
Dirce Marchioni conclui que o combate à fome e a garantia da segurança alimentar representam problemas complexos, que apresentam múltiplas causas e suas raízes fundamentadas na desigualdade social presente no território nacional, assim, soluções para a questão devem ser pensadas de forma a garantir a saúde dos indivíduos e do planeta.