“No Brasil como nos outros países do Cone Sul, como me disse uma entrevistada uruguaia, “ao sair da prisão, os homens foram dar entrevista coletiva à imprensa e as mulheres foram correndo para suas casas e suas famílias”, narra a historiadora. “Durante muito tempo, no Brasil como nos outros países do Cone Sul, como me disse uma entrevistada uruguaia, ‘ao sair da prisão, os homens foram dar entrevista coletiva à imprensa, e as mulheres foram correndo para suas casas e suas famílias’. A memória coletiva destacou heróis da resistência que quase sempre foram homens. Os ex-militantes que sobreviveram tiveram vidas filmadas, escreveram autobiografias, seus nomes são lembrados nos livros, documentários, nas imagens que passam nas retrospectivas dos noticiários nestes dias de rememoração do golpe”, frisa a historiadora Cristina Wolff. “Aos poucos, geralmente por iniciativa de mulheres, começam a aparecer algumas figuras femininas de militantes, seus depoimentos são ouvidos nas comissões da verdade, aparece um ou outro filme, como agora esse sobre Iara Iavelberg. Mas é preciso continuar — como coloca a incansável militante Amelinha Teles, junto com Rosalinda Santa Cruz Leite, em seu livro recém-lançado Da guerrilha à imprensa feminista, a construção do feminismo pós-luta armada no Brasil (1975-1980) (São Paulo: Intermeios, 2013) —, pois a participação das mulheres foi quase sempre invisibilizada”, destaca ela, nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Durante a 2ª Guerra Mundial, as mulheres ocuparam novos espaços na vida social, desempenhando funções que antes eram restritas ao universo masculino. Ao término do conflito, não era mais possível imaginar que elas simplesmente voltariam para suas residências e reassumiriam as antigas funções de dona de casa. Elas já tinham experimentado a condição de protagonistas das suas próprias histórias. E, nas décadas seguintes, manteriam este movimento de conquista de novos lugares, incluindo-se o mundo político. Foi o que ocorreu no Brasil nos anos 1960 e 1970 e continua ocorrendo, ainda que esta luta seja silenciada para a maior parte da sociedade. “Certamente o fato de elas participarem desses movimentos [de resistência à ditadura militar], seja os da esquerda armada e/ou clandestina, seja os movimentos de denúncia e de direitos humanos, fez com que as mulheres pudessem se ver como protagonistas na cena política e de forma coletiva, e isso, junto com o que estava acontecendo no resto do mundo, fez com que elas começassem a questionar seus papéis tradicionais e seu lugar na política brasileira”, enfatiza a historiadora. Cristina Scheibe Wolff possui graduação em História pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. Realizou pós-doutorado na Université Rennes 2, na França, e no Latin American Studies Center da University of Maryland, nos Estados Unidos. Atualmente é professora associada do Departamento de História da UFSC, participa do Instituto de Estudos de Gênero dessa mesma instituição e é uma das coordenadoras editoriais da Revista Estudos Feministas. Confira a entrevista. IHU On-Line – À época do Golpe de 1964, que papel a mulher deveria desempenhar para ser aceita socialmente? Cristina Wolff – Na época do Golpe de 1964, as mulheres estavam vivendo um momento de grandes transformações com relação ao que se esperava delas na sociedade e às suas possibilidades de atuação profissional e política. No mundo ocidental, a Segunda Guerra Mundial tornou necessário o trabalho de muitas mulheres em campos de atuação até então tidos como masculinos e, com a volta dos soldados nos países atingidos pela guerra, muitas delas foram mandadas “de volta para casa”. Mas essa volta não foi assim tão fácil. Então, apesar de se esperar que as mulheres, nesse período, se limitassem às tarefas domésticas e tivessem participação pequena nos eventos públicos, na década de 1960 já havia muitas mulheres exercendo profissões antes reservadas aos homens, frequentando universidades e fazendo política. Um dado importante que sempre gosto de lembrar como historiadora é que no Brasil as mulheres sempre trabalharam — na agricultura, por exemplo, o trabalho de escravas, colonas e mesmo fazendeiras sempre foi importante; na indústria elas foram a grande maioria do operariado do setor têxtil e também muito importantes nos setores de alimento, sem falar nos serviços: empregadas domésticas, professoras, enfermeiras. Portanto, considero uma forma de mistificação dizer que foi a partir dos anos 1960 que as mulheres começaram a trabalhar. O que aconteceu foi um progressivo reconhecimento de seu trabalho, que ainda não é completo, pois a renda das mulheres ainda é inferior à dos homens que trabalham nas mesmas funções, como mostram os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. Do ponto de vista político, apesar de terem conquistado o voto em 1932 no Brasil, com grande mobilização, e de terem sido eleitas algumas deputadas e até prefeitas, as mulheres eram — como são ainda hoje — minoritárias na cena política. IHU On-Line – No que as mulheres que participaram dos movimentos de resistência ao golpe modificaram estas identidades sociais? Cristina Wolff – Neste momento dos anos 1960 e 1970, as mulheres estavam chegando às universidades massivamente, pela primeira vez na história. E muitos dos movimentos de resistência à ditadura se desenvolveram e recrutaram seus militantes, em grande parte, justamente no movimento estudantil. Assim, nestas organizações clandestinas, geralmente com orientação ideológica de esquerda, as mulheres tiveram espaço. Elas assumiam tarefas diversas, como a comunicação, esconder pessoas, a manutenção das células ou aparelhos (que eram casas ou apartamentos em que um grupo de militantes morava, fazia reuniões, imprimia folhetos e jornais, etc.). Além disso, nos grupos armados, algumas delas chegaram a ter treinamento militar, participar ativamente de ações armadas e assumir papéis de liderança. Elas também tiveram papel preponderante nas organizações que, já nos anos 1970, passaram a denunciar as atrocidades que estavam sendo cometidas pelos militares, policiais e alguns civis contra os e as militantes das organizações e partidos de esquerda, como sequestro, tortura, assassinato e sequestro de filhos. Um desses movimentos no Brasil foi o Movimento Feminino pela Anistia. Certamente, o fato de elas participarem desses movimentos, seja os da esquerda armada e/ou clandestina, seja os movimentos de denúncia e de direitos humanos, fez com que as mulheres pudessem se ver como protagonistas na cena política e de forma coletiva, e isso, junto com o que estava acontecendo no resto do mundo, fez com que elas começassem a questionar seus papéis tradicionais e seu lugar na política brasileira. IHU On-Line – Quem eram as mulheres inseridas na luta por liberdade política e igualdade entre os gêneros? Prevalecia alguma classe social ou formação específica (profissional, teórica, etc.) entre elas? Cristina Wolff – Os movimentos feministas propriamente ditos desse período só começaram a aparecer no Brasil lá por meados dos anos 1970, recebendo certo impulso quando a Organização das Nações Unidas declarou o ano de 1975 como o ano internacional da mulher e como abertura de uma década da mulher. Foi assim que, mesmo sob o regime ditatorial, foram permitidos alguns encontros e reuniões de grupos de mulheres. Naquela época ainda não se falava em gênero, uma categoria que só começou a ser utilizada por aqui no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Mas as mulheres começaram a se organizar com associações e jornais. O Brasil Mulher (1975-1980) e o Nós Mulheres (1976-1978) são dessa época. Nesse momento, as integrantes desses movimentos eram principalmente mulheres com formação universitária, mulheres de uma classe média que tinha recentemente ascendido socialmente, muitas por meio dos estudos. Acho que existe um mito, tanto com relação ao feminismo quanto com relação à esquerda, de que seriam todos “burguesinhos” e “dondocas” que, por não terem que se preocupar com a sobrevivência, podiam se dedicar à militância. Mas esses dados precisam ser elaborados com maior cuidado, pois muitos dos e das militantes eram trabalhadores urbanos, estudantes secundaristas, e vinham de famílias de operários, professores, pequenos comerciantes, que dificilmente poderiam ser considerados como parte da burguesia. IHU On-Line – Fale um pouco mais sobre a participação das mulheres nos movimentos de resistência. Em que circunstâncias elas exerciam papéis de liderança? Cristina Wolff – Considero que podemos falar de dois tipos de resistência. Um tipo foi a resistência empreendida pelos partidos e organizações de esquerda, armados ou não, que foi muito importante, especialmente no período que vai até mais ou menos 1975. Nestes grupos, a presença de mulheres foi significativa, especialmente nos da nova esquerda inspirada pelas revoluções cubana e chinesa. Segundo Marcelo Ridenti, a participação de mulheres nestes grupos era de 15 a 30% dos militantes. Mas poucas mulheres chegaram a ter cargos de efetiva liderança. O outro tipo de resistência a que me refiro foi aquela que se utilizou da ideia de Direitos Humanos para se contrapor às práticas repressivas da ditadura brasileira. Foram familiares — especialmente mães, irmãs, esposas — de homens e mulheres presos e assassinados, que foram aos poucos se encontrando e criando organizações; grupos ligados às igrejas que davam apoio a estes familiares, ajudavam a esconder pessoas e mandá-las para o exterior; alguns sindicatos e ordens profissionais; e alguns movimentos que juntavam essas pessoas, como o Movimento Feminino pela Anistia e o Movimento Brasileiro pela Anistia. Nesses movimentos, as mulheres tiveram grande protagonismo e liderança. Foi o caso, por exemplo, de Therezinha Zerbini, criadora e líder do Movimento Feminino pela Anistia, iniciado em 1975 e que teve núcleos em muitos estados, com grande atuação na denúncia e na luta pela anistia, finalmente conseguida — apesar de restrita e com todos os seus problemas que até hoje implicam na impunidade de torturadores e assassinos que agiam em nome do Estado Brasileiro — com a Lei de 1979. IHU On-Line – Ainda hoje se fala sobre o machismo na militância de esquerda. O que há de diferente entre o machismo atual e o daquela época neste contexto? Cristina Wolff – O machismo que havia e que ainda há nos partidos e organizações de esquerda não é maior nem menor em relação ao machismo que impera na sociedade em geral. A questão é que, por serem de esquerda, por divulgarem ideais de igualdade entre as pessoas, de justiça social e liberdade, as mulheres, os homossexuais e outros sujeitos a quem o machismo exclui, violenta e dificulta a vida, esperam, quando se engajam na luta social, que haja respeito e solidariedade nas suas lutas específicas. Um olho roxo, um estupro, uma cantada grosseira, uma piada homofóbica incomodam da mesma forma, seja o agressor de direita, de esquerda ou de centro. Mas é preciso dizer que, na época da ditadura e atualmente, os partidos e organizações de esquerda foram mais permeáveis à participação das mulheres e também às suas reivindicações, certamente porque as militantes enfrentaram grandes debates, o questionamento constante sobre a importância “dessas coisas de mulher”, e estiveram sempre presentes. A diferença foi que, hoje, muitos espaços foram conquistados, mas ainda há muito a fazer. IHU On-Line – A violência praticada pelas ditaduras do Uruguai e da Argentina atingiu de modo direto também as mulheres que não estavam diretamente ligadas à militância política — mães, esposas e filhas de exilados desaparecidos. Ocorreu algo semelhante no Brasil? Cristina Wolff – Tanto lá como aqui a ditadura atingiu a sociedade como um todo. Seja na forma de medo e silêncio, seja fazendo com que pessoas conhecidas ou parentes desaparecessem. Não podemos pensar que a ditadura tenha atingido somente aquelas famílias que tiveram seus membros presos, torturados e assassinados. A ditadura fez com que toda uma geração tenha perdido a experiência da democracia, da participação política, de direitos fundamentais e cidadania. Nossa cultura, nossa educação, nossa economia foram atingidas durante vinte anos por uma política econômica que favorecia os interesses de multinacionais e de grandes empresas, pela censura, pelo medo, pelas aulas de Educação Moral e Cívica. Mas, voltando à pergunta, sim, muitas pessoas que não tinham envolvimento direto com as organizações de esquerda foram presas e torturadas, ou tiveram que ir ao exílio para acompanhar maridos e pais. Os casos mais escabrosos são os de crianças que foram torturadas física e psicologicamente junto com suas mães ou pais, como mostraram os depoimentos da Comissão da Verdade de São Paulo, denominados de Infância Roubada. IHU On-Line – A ditadura influenciou a construção do feminismo no Brasil? Cristina Wolff – Costumamos falar em dois momentos importantes na construção do feminismo no Brasil. Um primeiro momento, chamado também de Primeira Onda Feminista, ocorreu a partir do final do século XIX e culminou com a conquista do voto para as mulheres em 1932. O segundo momento, ou Segunda Onda, aconteceu justamente no período da ditadura, como expliquei antes. Dessa forma, é claro que houve influência do regime ditatorial na formação do feminismo daquela época. O regime dificultou as reuniões e manifestações, a chegada de livros e revistas, a informação. E, ainda, do ponto de vista da esquerda, as feministas eram vistas como se estivessem lutando por uma causa considerada secundária, se comparada com a causa da redemocratização, embora, se analisarmos as publicações da época, veremos que elas sempre colocaram a questão da anistia e da democracia como muito destacadas em suas reivindicações, superando mesmo aquelas consideradas como mais específicas. IHU On-Line – Como se caracterizava o movimento feminista antes do Golpe de 1964? Cristina Wolff – Desde inícios do século XX até 1932, o movimento feminista mais reconhecido foi aquele que reivindicava o voto para as mulheres, como mencionei antes. Também se podem mencionar outros movimentos de mulheres, como as operárias que, por vezes, se reuniam e publicavam na imprensa anarquista, em São Paulo, e algumas mulheres excepcionais que escreveram jornais, livros e tinham comportamentos considerados desviantes, como foi o caso de Maria Lacerda de Moura, por exemplo. Depois de 1932, algumas das associações formadas continuaram a atuar. Bertha Lutz, que foi uma grande liderança para a conquista do voto, militou para que o Brasil assinasse convenções internacionais que reconheciam direitos às mulheres. A questão da educação para as meninas e mudanças no código civil e nas leis trabalhistas que favorecessem as mulheres eram também reivindicações, e algumas foram conquistadas. Aos poucos o mercado de trabalho foi se abrindo com mais opções para as mulheres, embora sempre com salários menores aos dos homens, e elas foram ocupando espaços nas universidades. Mas foi somente nos anos 1970 que, junto com o que acontecia em outras partes do mundo, já a partir de 1968, começa a se organizar (apesar da ditadura) isso que atualmente chamamos de feminismos. IHU On-Line – O que o fato de uma ex-guerrilheira ter se tornado presidenta da República diz sobre o estágio atual dos movimentos feministas no Brasil? O desempenho desta mulher no cargo condiz com sua trajetória pessoal de luta? Cristina Wolff – O fato de uma mulher ocupar a Presidência da República no Brasil, independente de ela ter atuado em sua juventude numa organização de esquerda armada, mostra que o longo caminho percorrido pelo feminismo em busca da participação política e do reconhecimento das mulheres como cidadãs não se deu em vão. Considero que ter uma mulher como presidenta é uma enorme diferença nas expectativas das mulheres, jovens, meninas brasileiras, que agora podem pensar em ser também políticas, deputadas, governadoras e presidentas, ou qualquer outra coisa que queiram ser. O fato de ela ter pertencido a uma organização clandestina de esquerda mostra o quanto essas organizações foram importantes por abrirem espaço para as mulheres em seus quadros. Apesar de todas as piadas e comentários machistas enfrentados por esta presidenta desde que ousou com extrema coragem se colocar como candidata, e, também, apesar das várias medidas políticas que gostaríamos que ela tomasse, é preciso ressaltar importantes avanços tanto no combate à pobreza e às desigualdades no Brasil, quanto no que se refere às questões relativas especificamente às mulheres que têm sido levadas a efeito nesta gestão e que condizem com a sua plataforma e trajetória políticas. IHU On-Line – Como você vê a memória da ditadura no Brasil em relação às mulheres que participaram dos movimentos de resistência? Cristina Wolff – Durante muito tempo, no Brasil como nos outros países do Cone Sul, como me disse uma entrevistada uruguaia, “ao sair da prisão, os homens foram dar entrevista coletiva à imprensa e as mulheres foram correndo para suas casas e suas famílias”. A memória coletiva destacou heróis da resistência que quase sempre foram homens, os ex-militantes que sobreviveram tiveram vidas filmadas, escreveram autobiografias, seus nomes são lembrados nos livros, documentários, nas imagens que passam nas retrospectivas dos noticiários nestes dias de rememoração do golpe. Aos poucos, geralmente por iniciativa de mulheres, começam a aparecer algumas figuras femininas de militantes, seus depoimentos são ouvidos nas comissões da verdade, aparece um ou outro filme, como agora este sobre Iara Iavelberg. Mas é preciso continuar, como coloca a incansável militante Amelinha Teles, junto com Rosalinda Santa Cruz Leite, em seu livro recém-lançado Da guerrilha à imprensa feminista, a construção do feminismo pós-luta armada no Brasil (1975-1980) (São Paulo: Intermeios, 2013), pois a participação das mulheres foi quase sempre invisibilizada. IHU On-Line – Gostaria de fazer algum comentário adicional? Cristina Wolff – Gostaria de convidar a todas e todos para o II Colóquio Internacional Gênero, Feminismos e Ditadura no Cone Sul, que vai ocorrer na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC entre 11 e 14 de agosto de 2014, junto ao Encontro Estadual de História, no qual esse tema será discutido em mesas redondas e simpósios temáticos. As inscrições de trabalho estão abertas até 10 de abril pelo sítio http://www.encontro2014.sc.anpuh.org/site/capa. Também gostaria de convidá-los a acessar o livro Gênero, Feminismos e Ditaduras, resultado do I Colóquio de mesmo nome, no link http://www.ieg.ufsc.br/livros_eletronicos.php. Nota: As imagens que ilustram a entrevista são de, respectivamente, www.diarioliberdade.org e Ricardo Machado.
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Fonte: IHU
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