por Washington Castilhos Depois de mais um caso de estupro que tomou os noticiários nacionais e internacionais nos últimos dias – o caso do assaltante menor de idade que apontou uma arma para a cabeça de uma mulher enquanto a estuprava em um ônibus em frente aos outros passageiros, um mês depois de uma turista norte-americana ser violentada dentro de uma van na zona sul carioca – tem-se ouvido constantemente o comentário de que o Brasil estaria se transformando na Índia. A comparação se deve ao caso de estupro coletivo ocorrido em dezembro, em Nova Delhi, quando uma estudante de 23 anos morreu após ser violentada por vários homens no interior de um ônibus. De certo modo, pode-se ver uma mesma raiz nesses casos de estupro ocorridos aqui e lá. Embora haja especificidades sociais e culturais que diferenciem Brasil e Índia, ambos os países têm sociedades marcadas por uma forte hierarquia de gênero, que faz com que a violação de mulheres seja uma possibilidade. No entanto, como aponta a filósofa norte-americana Ann J. Cahill em Rethinking rape(Cornell University Press, 2001), “qualquer experiência individual de estupro está profundamente ancorada no meio social e político circundante, que é também afetado pelos modos como a vítima, o agressor, suas famílias, e várias instituições reagem e representam o acontecido”. “Quanto mais tradicional um país, mais fortes são os valores. Mas, embora o Brasil não seja tão tradicional quanto a Índia, também temos nossos valores que desenham uma ordem social com percepções e abordagens desiguais para homens e mulheres. O status legal da mulher na Índia, como no Brasil, reconhece a igualdade. No entanto, as desigualdades estão inscritas culturalmente. As tradições, os costumes, as práticas do cotidiano colidem com as previsões legais. Na Índia, nos dias de hoje, é comum o uso do argumento da defesa da honra em casos de violência de gênero”, observa a advogada brasileira Leila Linhares, diretora da organização feminista Cepia. Para ela, o caso recente da moça estuprada em uma van no Rio de Janeiro permite traçar, sim, um paralelo entre Brasil e Índia. “Um paralelo no sentido de que o estupro, assim como outras formas de violência contra a mulher, não é uma realidade dos outros. É também um problema nosso. A barbárie não é exclusividade dos outros”, sustenta. E não é mesmo. Os recentes casos de estupro acontecidos em transportes públicos na cidade do Rio de Janeiro – alardeados pela imprensa internacional pelo fato de o Rio ser a sede de importantes eventos esportivos até 2016 – trouxeram à tona e a conhecimento público a realidade de um fenômeno que já vinha crescendo de forma silenciosa: de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), o estado do Rio de Janeiro, com uma população de 16,3 milhões de pessoas, reportou 6.029 casos de estupro em 2012 (o que significa um aumento de 24% em relação a 2011, quando foram reportados 4.917 casos). São 17 casos por dia. Por sua vez, em Nova Delhi, que tem uma população de 16,7 milhões de pessoas, foram reportados 572 casos em 2011. Por ser um crime brutal, que reduz, inclusive, o direito de ir e vir das mulheres, o estupro, aponta Ann J. Cahill, afeta não apenas as mulheres que são violentadas, mas todas as outras, que percebem seus corpos como “estupráveis” e acabam por ajustar suas rotinas e imagens próprias de acordo com essa percepção. Durante a preparação deste texto, algumas mulheres com quem conversei, usuárias do transporte público, afirmaram que não entram em ônibus quando percebem a presença de homens sentados no fundo do veículo. As que são vítimas do crime sentem-se envergonhadas, culpadas e, por isso, não denunciam, não procuram o atendimento policial, o que torna possível falar que, na Índia ou no Brasil, a sub-notificação seja uma realidade. “É um quadro de gravidade. Há uma série de fatores, seja de ordem simbólica ou prática. Não podemos precisar se lá ou aqui há mais ou menos casos de estupro, comparativamente. Mas as condições culturais muitas vezes tolhem as mulheres a procurar ajuda, apesar de termos, no Brasil, instrumentos de punição, ferramentas de sistematização dos casos e campanhas de prevenção ao estupro e a violência contra a mulher como um todo”, avalia Leila Linhares. As recentes notícias de casos de estupro no Rio de Janeiro lançam luz sobre as contradições e paradoxos do Brasil, país que já na década de 1980, de forma pioneira, inaugurou delegacias especiais de atendimento às mulheres, em 2006 teve sancionada uma legislação específica para tratar da violência contra a mulher e em 2010 elegeu uma mulher como presidente. Porém, apesar dos instrumentos de proteção e promoção dos direitos das mulheres, acredita-se que os casos sejam ainda maiores do que os denunciados. “Não tenho dúvidas de que tanto em Nova Delhi como no Rio a subnotificação exista. O Rio de Janeiro, certamente, teve mais que 6 mil casos em 2012. O aumento relatado em relação a 2011 não permite dizer se o número real de estupros aumentou ou se as mulheres é que estão passando a denunciar mais, quebrando a barreira do silêncio. É um caso a ser melhor aprofundado, até porque há, no Brasil, um problema no texto penal quanto ao estupro: é um crime caracterizado como sendo de ação privada, ou seja, a vítima precisa denunciar. Parte-se do princípio que é uma questão íntima, o que é um dado desestimulante por causa dos aspectos culturais que penalizam a figura da mulher”, completa Leila Linhares. O estupro é um fenômeno global, define a socióloga indiana Manjima Bhattacharjya, do centro de recursos feminista Jagori, de Nova Delhi. “Existem algumas similaridades alarmantes entre os casos ocorridos em Delhi e no Rio – um estupro coletivo perpetrado em um veículo em movimento contra uma mulher (não oriunda de uma classe socioeconômica baixa), acompanhada de um homem em uma cidade grande. Mas as semelhanças param por aí: por exemplo, no Rio a vítima era uma turista, o que pode ter sido uma das razões pelas quais o caso atraiu tanta atenção da mídia”. A pesquisadora indiana se refere ao fato de, no Rio, os homens que atacaram a turista norte-americana no interior de uma van já terem sido denunciados por outras vítimas antes dela, e a polícia não ter prestado a devida atenção ao ocorrido. “Infelizmente, teve que acontecer com a turista até que alguém me ajudasse. O estupro dela não poderia ter sido evitado se eles tivessem prestado atenção ao meu caso?”, indagou ao NY Times uma das mulheres brasileiras vítimas do bando. “Para mim, os dois incidentes legitimam o estupro como um fenômeno global. Mas embora as estatísticas em todo o mundo nos mostrem isto, os governos muitas vezes preferem não enxergar”, avalia Manjima. O caso de Nova Delhi, que teve grande repercussão mundial e provocou uma onda de protestos na Índia, foi mais um entre muitos ocorridos no país: dados do Escritório Nacional de Registros de Crime mostram que 97% das indianas já sofreram algum tipo de abuso, e que uma mulher é estuprada a cada 22 minutos. No Rio de Janeiro, de acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP), somente nos três primeiros meses de 2013, já foram relatados 1500 casos. Delhi em particular teve mais de 500 reclamações de estupro este ano, mas apenas uma condenação até agora. “Isto nos mostra que não depende do quanto uma cultura ou uma cidade seja sexualizada ou aberta, ou do que uma mulher esteja vestindo para que ela seja estuprada. Índia e Brasil, por exemplo, são muito diferentes no que diz respeito ao que uma mulher veste em espaços públicos ou como se comporta. Pelo que sei, o Brasil é um país muito mais aberto do que a Índia, mas em ambos os lugares as mulheres podem ser estupradas ou sexualmente violentadas impunemente. As similaridades nos casos de violência sexual ocorridos nos dois países validam o estupro como um ato de poder e profunda misoginia que existe em todas as culturas e países”, declara Manjima Bhattacharjya. Um exemplo da cultura universal do estupro, que tende a justificar e legitimar a violência sexual contra mulheres, é o caso acontecido em Steubenville, cidade do estado norte-americano de Ohio, onde dois jogadores da equipe de futebol americano de uma escola local violentaram uma colega de classe de 16 anos em uma festa, em agosto de 2012. Os violadores divulgaram pelas redes sociais todos os detalhes do estupro, com fotos, vídeos, comentários e até mesmo e-mails enquanto cometiam o crime. Foi a indiscrição dos dois jovens – então com 16 e 17 anos cada – que fez com que estes fossem culpados, uma vez que foram eles mesmos que colocaram a evidência na internet. O caso mostra que quem comete o crime de estupro ou quem o divulga nas redes sociais muitas vezes nem sabe que está cometendo um crime, dada a naturalização da misoginia e da violência de gênero. “Infelizmente, o senso comum ocidental tem a tendência a usar o Sul Global (lugares como a Índia e até mesmo o Oriente Médio) para ilustrar a misoginia, mas casos como o de Ohio trazem à luz o fato de que a misoginia está em todos os lugares”, afirma a socióloga indiana. No que diz respeito à violência sexual, a situação nos Estados Unidos e na Europa não difere muito do resto do mundo e de países localizados no sul global: no estudo Prevalence, Incidence, and Consequences of Violence Against Women, conduzido pelo Departamento de Justiça e pelos Centros de Controle de Doenças e de Prevenção norte-americanos em 1998, pesquisadores entrevistaram 8 mil mulheres e 8 mil homens. Usando uma definição de estupro que incluía a penetração vaginal, oral e anal forçadas, o estudo detectou que uma em cada 6 mulheres já fora estuprada ou sofrera uma tentativa de estupro (22% quando tinham menos de 12 anos, 54% quando eram menores de 18 e 83% com menos de 25 anos). Já o estudo Rape in America: a report to the Nation, realizado pelo National Victim Center em 1992, mostra que 60% das mulheres que reportaram terem sido estupradas tinham menos de 18 anos na ocasião do estupro, 80% das quais violentadas por conhecidos. Por sua vez, o National Crime Victimization Survey, feito em 2000, relata que os jovens americanos de idades entre 12 e 17 anos são mais propensos a serem sexualmente violentados do que os adultos. Em janeiro de 2013, o Ministério da Justiça britânico divulgou seu primeiro boletim de estatísticas de violência sexual, que mostra que aproximadamente 400 mil mulheres são sexualmente violentadas na Inglaterra e no País de Gales anualmente, e que uma em cada 5 mulheres (de idades entre 16-59 anos) já sofreu alguma forma de violência sexual. A África do Sul e o “estupro corretivo” Segundo um estudo da Universidade da África do Sul (UNISA), um milhão de mulheres, meninas e meninos são violentados todos os anos no país. Uma parcela deste número refere-se ao chamado “estupro corretivo” de mulheres homossexualmente orientadas, modalidade de violência sexual que potencializa ainda mais a situação de vulnerabilidade da vítima. Sendo lésbica, a mulher não se sente segura de que possa ter acesso aos serviços oferecidos pelos estabelecimentos de saúde pública do governo. “Estes casos mostram o grau de vulnerabilidade destas mulheres, tanto individualmente quanto como um grupo social, por sua orientação sexual e porque o acesso a serviços que estão à disposição de ‘mulheres em geral’ não lhes garante que suas necessidades como mulheres que fazem sexo com outras mulheres sejam satisfeitas. Essas duas dimensões se interrelacionam de tal modo que torna impossível analisar a primeira sem se referir à segunda”, analisam a antropóloga Maria Luiza Heilborn (CLAM/IMS/UERJ) e a médica Regina Maria Barbosa (Unicamp) em artigo do livro Aprendiendo a bailar: como impulsar La salud y El bienestar reproductivo de las mujeres desde perspectivas de salud pública y de derechos humanos(Harvard University Press/CLADEM, 2007). Desde 2002, o governo sul africano tem permitido que os serviços públicos de saúde disponibilizem medicamentos antirretrovirais às sobreviventes da violência sexual, dada a prevalência da Aids no país. Embora ocorra com bastante frequência na África do Sul, o estupro corretivo – tipo de agressão praticada por um ou mais homens contra mulheres lésbicas, supostamente como forma de “corrigir” ou reverter sua orientação sexual – não é exclusividade daquele país. No Brasil tem crescido o número de denúncias deste tipo de violência. O último caso notório ocorreu no dia 11 de maio em uma festa de calouros na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A vítima, que teria beijado outra moça durante a festa, foi abordada no estacionamento da universidade por um aluno do curso de Engenharia que lhe disse que iria “ensiná-la a gostar de homem”. “Convite à violação” Na análise da advogada brasileira Leila Linhares, antes de tudo é preciso mudar a mentalidade que circula nas famílias e na sociedade como um todo. “A mulher permanece sendo desvalorizada socialmente e o estupro é uma das manifestações extremas que espelham essa desvalorização. Especialmente porque o estupro, para além da crueldade, carrega forte simbologia: a humilhação da vítima e o triunfo do agressor. Não basta ficar apenas na repressão, que é importante. É preciso refletir sobre os valores que criam as condições para tais atos”, diz. Para a socióloga indiana Manjima Bhattacharjya, o problema é que o estupro continua a ser tratado como um tipo comum de crime, não como um crime sério. “O caso de Nova Delhi pelo menos nos ajudou a ir além desta barreira e a conquistar apoio popular para mudar leis e trazer reformas judiciais referentes à violência sexual contra mulheres. O movimento feminista indiano tem debatido o uso do termo ‘estupro’. Por décadas, temos tentado mudar para ‘agressão sexual’, uma vez que o termo ‘estupro’ é associado a muitas outras coisas – como a vergonha e o estigma. O estupro é construído como um incidente social vergonhoso para a vítima, por isso as mulheres preferem manter o silêncio”. Segundo ela, na Índia os casos são sub-notificados por várias razões. Uma delas é que o número de condenações é baixo. “As mulheres não veem sentido em denunciar o caso, já que acreditam que nada vai ser feito”, diz. Outra razão para a sub-notificação diz respeito às posturas da polícia e do judiciário. “A polícia frequentemente se nega a registrar a denúncia, por não acreditar na mulher. Por sua vez, os juízes são, em sua maioria, sexistas. Já houve até casos em que o juiz sugeriu à vítima que se casasse com o acusado para que o caso se resolvesse da melhor maneira”, lembra Manjima. Em pesquisa conduzida por conta da morte da estudante de 23 anos após ter sido violentada por 6 homens em um ônibus, 68% dos juízes opinaram que um “vestido provocativo de uma mulher” é “um convite à violação”. Há aí uma questão importante a ser discutida: a ideia de que as mulheres são culpadas pela violência sexual sofrida por elas, e de que ‘homens são homens’. No Egito, assim como está acontecendo no Brasil, o aumento no número de casos de assédio sexual contra mulheres em locais públicos fez com que o tema do estupro passasse a merecer cada vez mais atenção da mídia e dos círculos acadêmicos. Um estudo conduzido pelo Egyptian Center for Women’s Rights (ECWR) nos estados do Cairo, Gizé e Qalubiya com mulheres e homens, mostrou que não existe um grupo específico de mulheres que esteja mais sujeito à violência sexual e que o agressor não faz distinção entre categorias de vítimas ou se limita a um tipo de mulher. Todas as mulheres podem se tornar vítimas da violência sexual. A pesquisa revela que 48,4% das egípcias e 51,4% das turistas estrangeiras entrevistadas (em todas as faixas de idade) estão sujeitas ao assédio sexual. Em relação à aparência física da vítima, 62,5% das egípcias e 65,3% dos homens envolvidos no estudo declararam que roupas que expõem mais o corpo tornam a mulher mais vulnerável; por sua vez, 44% das mulheres estrangeiras ouvidas rejeitaram esta ideia. Para elas, a aparência de uma mulher não é determinante para que o assédio ocorra. Arma de guerra Em Balkan as metaphor: between globalization and fragmentation (MIT Press, 2002), a feminista croata Vesna Kesi? lembra que todas as mulheres sentem medo e vergonha do que lhes aconteceu, sejam estupros ocorridos em uma viagem à praia, sejam no contexto da guerra, onde é frequente o uso da violência sexual por parte de atores armados (legais e ilegais), não apenas como arma de guerra contra o inimigo, mas também como mecanismo para impor ou reforçar hierarquias sociais e políticas. Estes tipos de situações têm sido observados em países como Colômbia e México, onde a luta contra os grupos armados e o narcotráfico tem ocasionado em graves agressões contra as mulheres. Apesar de a violência sexual ser considerada crime de guerra pela Corte Penal Internacional, estes delitos continuam a ser julgados como crimes ordinários. Na Colômbia, 30% dos casos de abuso sexual denunciados acontecem em áreas rurais, e têm a ver com o conflito armado, ocorrendo sob distintas modalidades. A mais recorrente é o recrutamento de mulheres e crianças pelos grupos armados ilegais com fins de escravidão sexual, o controle da vida sexual e afetiva das mulheres mediante a imposição de normas de comportamento, o assédio e o abuso sexual de mulheres que se negam a ter relações com integrantes destes grupos, assim como a troca forçada de alimentos e objetos de luxo por favores sexuais com menores de idade. Em outros casos têm-se registrado agressões sexuais como resposta intimidatória de atores armados legais e ilegais contra mulheres defensoras dos direitos humanos. No México, por exemplo, as mulheres camponesas e indígenas do estado de Guerrero têm confrontado o exército por sua responsabilidade em vários casos de abuso sexual, assassinatos seletivos e torturas contra a população. Em represália, membros das forças armadas têm torturado, violado e assassinado estas líderes, numa forma de castigar a toda a comunidade por seu trabalho de defesa dos direitos humanos. Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu duas sentenças a respeito, condenando o Estado mexicano. Em países onde a ação do governo é fraca e onde companhias multinacionais exploram seus recursos naturais – muitas vezes em detrimento da população –, grupos armados ilegais contratados por estas empresas cometem crimes do tipo para evitar que as comunidades ameacem seus interesses econômicos. Isto se observa na Guatemala, onde as líderes indígenas que denunciam a expropriação de terras e recursos naturais por agentes privados são vítimas de múltiplas formas de violência, especialmente de agressões sexuais. A resposta dos Estados frente a esta situação ainda é inconsistente. Na Colômbia, a Corte Constitucional se pronunciou a esse respeito. Em 2008, expediu o Auto 092 a fim de proteger os direitos fundamentais de mulheres vitimizadas pelo conflito armado. Atualmente tramita no Congresso colombiano um projeto de lei para reduzir a impunidade de casos de violência sexual no marco do conflito armado e outorgar-lhe status de crime contra a humanidade. Se aprovada na Câmara de Representantes, a iniciativa será debatida no Senado. O estupro tem sido usado como arma para desonrar indivíduos, grupos e nações, vulnerar o inimigo e controlar a descendência na disputa inclusive por território. Foi o que aconteceu na guerra da Bósnia. Nas palavras da antropóloga Andréa Carolina Schvartz Peres, que em artigo publicado nos Cadernos Pagu analisa os estupros em série, em campos ou com intuito de engravidar a mulher, o estupro na guerra seria uma mensagem entre os homens, em que o lado derrotado perde todas as ilusões de poder e propriedade. “O estupro foi em si um instrumento de propagação do medo, mas seu uso – em números, notícias etc. – fez com que a mensagem ‘entre homens’ fosse passada: a mulher enquanto um corpo étnico, símbolo da família, mãe da nação, quando violentado, encerrava a vitimização de toda a nação e a necessidade de proteção por seus homens, ou apontava para seu fracasso, espécie de castração simbólica dos seus defensores”, ressalta. Segundo a autora, o estupro enquanto arma de guerra foi, contudo, eficaz: infringiu o medo, facilitando a limpeza étnica, consumou a partilha e objetificou suas vítimas, definindo-as de acordo com sua etnia/nacionalidade. “Em suma, a limpeza étnica dos habitantes bosniacs desenrolou-se de acordo com um cenário planejado de antemão. Aqueles que planejaram a agressão à Bósnia-Herzegóvina sabiam bem que a partir de estupros brutais em massa e do abuso das bosniaquinhas atingiriam o cume da pirâmide étnica da nação bosniac, e deste modo, com o objetivo da limpeza étnica, impeliriam as pessoas ao êxodo, especialmente daqueles lugares onde formavam a maioria da população, como foi o caso no leste da Bósnia”, analisa a antropóloga. Meldijana Arnaut, jornalista e pesquisadora do Centro de Pesquisa em Crimes contra a Humanidade e contra o Direito Internacional, de Sarajevo, destaca: “O papel da mulher é sempre relacionado ao papel da mãe e, em muitas culturas, é o símbolo do espírito da coletividade. As mulheres, na consciência coletiva, estão ligadas às crianças, às famílias às quais dão continuidade, e à coletividade à qual pertencem (…) Os planejadores da agressão conheciam bem a mentalidade do habitante daqui. Seus objetivos eram ferir e humilhar a mulher enquanto membro de uma nação, de um povo”. “Numa sociedade como a bósnia – e mesmo a nossa – casar e ter filhos são valores fundamentais. Podemos ler isso como sociedade patriarcal, ou como fez Meldijana, afirmando que as mulheres exercem papel fundamental na sociedade, na medida em que são a fonte biológica e cultural da nação. Essa nação, ou sociedade patriarcal, foi de fato ameaçada pelos estupros em massa: tanto pelo fato em si, como pelas consequências do estupro para a mulher”, completa Andréa Schvartz Peres. De acordo com a antropóloga, é difícil dizer o número exato de mulheres estupradas e vítimas de abuso durante a agressão à Bósnia-Herzegóvina (BiH). Sabe-se que não é pequeno o número de mulheres que preferiram o silêncio, tamanha a dor. A Comissão da Comunidade Europeia aponta para 20.000 casos, mas outras fontes apontam para estatísticas bem maiores (entre 60 e 100 mil). Em seu artigo, a jornalista Meldijana Arnaut explica que os números da comissão de pesquisa da Comunidade Europeia contabilizam as estupradas até dezembro de 1992. O centro médico de tratamento de vítimas de estupro e violência sexual “Medica Zenica”, segundo a autora, tratou em torno de 28 mil mulheres de 1993 a 1997. A associação “Mulheres – vítimas da guerra”, de Sarajevo, possui dados de 25 mil pessoas estupradas ou vítimas de violência sexual. Sobre os filhos nascidos do estupro não há números aproximados. Homens e crianças também foram estuprados ou sofreram violência sexual na Bósnia, assim como acontece atualmente em países africanos em conflito, como a Somália e o Congo, onde rebeldes estupram bebês. No entanto, a violência sexual contra homens e crianças é invisibilizada devido a uma perigosa hierarquia de plausibilidades, segundo a autora. “A violência sexual contra a mulher é vista como algo mais normal, mais dizível, mais compreensível, do que a violência sexual contra homens, crianças e idosas. Essa hierarquização invisibiliza as consideradas formas ‘menores’ ou ‘menos atrozes’ de estupro na guerra”, finaliza. Essa economia do dizível e o indizível parece aplicar-se à volência sexual como um fenômeno universal. * Contribuíram Fábio Grotz, do Rio de Janeiro, e Manuel Rodriguez, de Bogotá |
Fonte: Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos – www.clam.org.br
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