Autora: Lídice da Mata
Deputada federal pelo PSB-BA
Não há limite moral que não possa ser quebrado pelas elites econômicas e seus representantes com mandato popular
Na primeira semana de abril, o número de mortes no Sudeste do Brasil ultrapassou, pela primeira vez, o de nascimentos, de acordo com dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, disponibilizados no Portal da Transparência. Foram 13.998 novas vidas ante 15.967 registros de óbitos. Nesse mesmo período, o País superava os 13 milhões de casos confirmados de Covid-19 – até o dia 9 de abril – com mais de 4 mil mortes diárias, alcançando a terrível marca de 350 mil mortos. Os mais atingidos são os pobres e os vulneráveis, entre eles os idosos e aqueles que têm comorbidades.
Todo esse quadro dantesco é considerado por especialistas e pela opinião pública mundial como uma ameaça à saúde global. Na imprensa internacional, o Brasil é pauta pelo colapso nos hospitais, por ações incompetentes e criminosas do governo Bolsonaro, pelo esgotamento dos profissionais de saúde, a escassez de oxigênio e medicamentos para entubação, assim como pelo bombardeio diário de fake nexvs em torno de tratamentos sem eficácia, além do crescente número de variantes do vírus.
A sociedade brasileira assiste avançar a fome e a miséria com 19 milhões na linha da pobreza extrema, além do desemprego que atinge 14,1 milhões de trabalhadores. Num momento em que se exigiría ampliar as medidas de isolamento social, torna-se impossível para a população ficar totalmente em casa, com um auxílio emergencial insuficiente para garantir aos mais vulneráveis o básico para a sua subsistência. A oposição na Câmara e no Senado propôs 600 reais, mas o presidente e sua equipe econômica reduziram para 250, o que fará com que os mais pobres optem pela comida ou o botijão de gás, cujo preço também não para de subir.
Até a Confederação do Comércio e Bens e Serviços informou que o poder de compra da população será reduzido em oito vezes com este novo auxílio. Na prática, o pobre perderá duas vezes: com a inflação, que está sendo percebida a olhos nus, e com a redução no benefício, o que acaba impactando negativamente toda a economia.
Apesar de dispor de um dos maiores e mais respeitados sistemas de imunização do mundo, aqui a vacinação se arrasta, com menos de 3% da população imunizada com as duas doses. Nesse ritmo só alcançaremos os 70% mínimos necessários para a imunidade coletiva e para um resultado efetivo no fim deste ano, quiçá no início de 2022.
Com esse quadro dramático, qualquer observador esperaria uma união de esforços para ampliar as medidas sanitárias e intensificar a compra de vacinas num mercado de escassez de ofertas e intensa disputa. Mas esse bom senso não alcança as nossas elites econômicas, acostumadas aos privilégios e a que as leis só se apliquem aos pobres.
Por isso, a Câmara dos Deputados e o Senado aprovaram o projeto que criminaliza o ato de furar fila na vacinação contra a Covid-19, pois os critérios que regem a ordem de imunização são científicos e praticamente iguais em todo o mundo. Visam sempre priorizar os mais vulneráveis à epidemia. Infelizmente, fila é algo que os “senhores do dinheiro e do poder” não podem suportar. É a lógica da “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Dessa forma, mobilizaram deputados – a base governista, que atende sob a alcunha de Centrão, com o apoio público dos presidentes das duas Casas e do ministro da Saúde, e fizeram com que fosse aprovado o PL 948, que autoriza a compra de imunizantes por empresas privadas, desde que elas doem a mesma quantidade para distribuição via Sistema Único de Saúde. Ou seja, legaliza o fura-fila. O projeto está agora no Senado para votação.
Assim, uma empresa de mil funcionários poderá adquirir 4 mil doses de vacina e – como a maioria dos imunizantes tem duas doses de aplicação – terá o compromisso de repassar a metade para o SUS, ou seja, 2 mil doses. E, com isso, eles pensam em resolver, em tese, 100% dos seus problemas, entregando ao País uma quantidade de vacinas que equivale a 0,00001% dos brasileiros, o que não chega ao número de habitantes de uma determinada rua de cidades como Brasília, São Paulo e Salvador.
Para muitos analistas, a medida será ineficaz pelo fato de o mercado estar dominado pelas gigantescas compras feitas pelos governos nacionais. E isso, infelizmente, acrescenta mais um capítulo na longa história brasileira de segregação e ausência de empatia pelos que mais precisam. Trata-se de uma amarga constatação: a de que não há limite moral que não possa ser quebrado pelas elites econômicas e seus representantes com mandato popular.
E como se houvesse uma festa com um camarote com tudo incluído, onde um pequeno grupo de privilegiados tem acesso a todas as benesses do evento, enquanto a grande maioria fica apenas com uma visão distante do palco. E o povo, excluído da festa, ainda paga a conta com a vida.
* Artigo originalmente publicado na revista Carta Capital