Criadora do projeto Mulheres Inspiradoras, a educadora fala ao Correio sobre a luta contra o racismo e a violência de gênero
Idealizadora e executora do projeto Mulheres Inspiradoras, reconhecido com o 4º Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos, o 8º Prêmio Professores do Brasil e o I Prêmio Ibero-americano de Educação em Direitos Humanos, a professora Gina Vieira Ponte é uma especialista em transpor muros e construir caminhos.
“Não há um só dia em que eu não tenha que lidar com machismo e com o racismo. Quando você é uma mulher negra, em um país regido por um Racismo Estrutural, a sua existência se dará dentro de uma luta permanente pelo direito de existir, de ser reconhecida como pessoa, de poder erguer a sua voz”, conta, nesta entrevista ao Correio.
Ainda assim, ela nunca se calou. Levou seu projeto e suas ideias a escolas, governos, formadores de opiniões, instituições não-governamentais, entidades internacionais. Cumprindo o isolamento imposto pela pandemia à risca, permanece como uma voz ativa contra o racismo e o machismo e na luta pela educação de qualidade, que permita a transformação social.
“É preciso educar as meninas e os meninos para que eles tenham vidas plenas, sem as limitações dos estereótipos de gênero. É preciso educar as meninas desde cedo para sentirem-se fortes, inteligentes, capazes e em plenas condições de serem protagonistas das suas histórias”, diz.
Para isso, não basta equipar as escolas com projetos tecnológicos prontos, mas imbuídos de pensamento crítico e senso de ética e humanidade. “Precisamos de uma geração capaz de questionar os paradigmas que nos trouxeram até aqui, que são baseados na lógica da exploração de uns, em condições precárias de vida, para que outros possam acumular riqueza. Este é um modelo esgotado de sociedade.”
Outro ponto é acolher a diversidade. “Não há democracia sem respeito à diversidade. Não há existência possível fora dela. A nossa existência é um ato político que se dá dentro das contradições e dos conflitos gerados por vivermos coletivamente, como sociedade”, diz.
Sobre a pandemia, celebra a vida como um motivo de esperança e destaca a importância de um olhar para a coletividade. Acredita que muitas pessoas teriam sido salvas se estivéssemos regidos por um governo democrático, que evidenciasse respeito à vida, à ética universal da humanidade e às ciências.
“No futuro, a grande questão a responder será: vamos seguir sendo arrastados por um projeto de poder que vai nos levar à barbárie ou vamos nos unir por um projeto que esteja alinhado a tudo o que acumulamos nos últimos anos, como humanidade, em relação à civilidade, ao respeito aos direitos humanos e ao entendimento sobre democracia e ciência?”, questiona.
Como educar meninos não machistas?
Infelizmente, a base da história brasileira é patriarcal, colonial, racista, sexista. Então, o machismo está em todas as estruturas sociais. Ele está naturalizado: na família, quando só se exige das meninas que ajudem no trabalho doméstico; na escola, quando ainda se diz que existe “brinquedo de menino e brinquedo de menina”; nos jogos de vIdeogame, marcados pela hipersexualização dos corpos femininos e com a celebração da cultura da violência.
Ainda que não tenhamos consciência disso, como sujeitos sócio-históricos que somos, o machismo habita todos nós, em menor ou maior grau, por que todos, todas e todes nós fazemos parte dessa cultura. Para educar meninos não machistas precisamos de mudanças profundas na forma como pensamos. Precisamos fortalecer uma agenda educacional antissexista.
O caminho mais potente para a mudança da cultura é a educação. Não por acaso, no dia 10 de junho, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação foi alterada e determinou a obrigatoriedade de que todas as unidades de ensino do país incluam em seus projetos político- pedagógicos a proposta de uma educação que promova a valorização de mulheres e que colabore na prevenção, no enfrentamento e no combate à violência contra as meninas e as mulheres.
Como educar meninas para enfrentar um mundo sexista e misógino?
Gênero é uma categoria relacional. Não dá para falar sobre o que é ser homem em uma cultura sexista, machista, sem refletir sobre como essa cultura interfere nos processos de subjetivação das mulheres. Parte da cultura patriarcal e misógina é educar as meninas para o silenciamento, para a subalternidade, para sentirem-se menos capazes que os meninos ou acreditarem que o único poder que têm está associado à beleza física, e o único projeto com que devem sonhar está relacionado ao casamento e à maternidade.
Esse processo de subalternização, de colonização afetiva, começa ainda na infância, quando damos para as meninas brinquedos que reportam ao espaço doméstico, à maternidade e ao casamento, e presenteamos os meninos com brinquedos que lhes dizem que eles podem ser super-heróis, cientistas, engenheiros, e ocupar o espaço público.
Elena Bellotti, uma psicóloga e pesquisadora italiana que realizou pesquisas sobre como a família, a escola, a comunidade, os modos simbólicos da cultura, como desenhos animados e contos de fada educam as meninas para a submissão, constatou que, aos 7 anos de idade, uma menina já está convencida de que é inferior aos meninos.
É preciso educar as meninas e os meninos para que eles tenham vidas plenas, sem as limitações dos estereótipos de gênero. É preciso educar as meninas desde cedo para sentirem-se fortes, inteligentes, capazes,e em plenas condições de serem protagonistas das suas histórias.
Autora e idealizadora do premiadíssimo “Mulheres Inspiradoras”, a senhora atribui a que a pouca valorização do feminino na sociedade brasileira?
O machismo é estrutural. Dizer isso significa dizer que ele está naturalizado nas nossas estruturas, em todas elas. Ele está presente nas nossas instituições públicas e privadas. Ainda temos uma forte hegemonia de homens brancos no poder. Quem pensa, cria, elabora políticas públicas ainda são os homens.
Para um homem com uma visão machista e patriarcal, que acredita que o cuidado com os filhos é tarefa exclusiva das mulheres, e que não conhece a realidade do Brasil, que é um país campeão em famílias monoparentais, uma política pública que garanta a todas as crianças acesso a creches e escolas de período integral, pode parecer algo irrelevante. Para as mulheres, é algo decisivo.
Para promover a valorização de mulheres na sociedade, precisamos de mudanças estruturais, mudança de mentalidade, educação antissexista em todos os espaços, e não só na escola. Necessitamos de políticas públicas com recorte de gênero e de raça. É urgente que tenhamos mais mulheres na política. E, é importante frisar, que não basta que as mulheres cheguem à política.
É fundamental que cheguem à política mulheres com consciência de gênero, mulheres que se recusem a fazer alianças com o patriarcado e que estejam dispostas a colaborar na promoção da justiça e da igualdade.
Seu projeto agora integra a política de Educação do DF. O que muda depois dessa inciativa?
Uma política pública se constrói a partir de vários processos. Estamos estruturando o Programa Mulheres Inspiradoras há 4 anos. Ele foi criado e desenvolvido em 2014, e depois de receber prêmios importantes como o 4º Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos, o 8º Prêmio Professores do Brasil e o I Prêmio Ibero-americano de Educação em Direitos Humanos, em 2017, a partir de um Acordo de Cooperação Internacional, envolvendo o Governo do Distrito Federal, o Banco de Desenvolvimento da América Latina e a Organização de Estados Ibero-americanos, criamos um projeto piloto com 15 escolas públicas. De lá para cá, tivemos mais três edições e chegamos a dezenas de outras escolas. Com a Portaria, ganhamos mais segurança para que o programa siga sendo estruturado e se consolidando. As boas políticas públicas enfrentam um sério problema quanto à descontinuidade. Estou no serviço público há 30 anos. Já vi excelentes iniciativas serem desmanteladas por governos autoritários e pouco alinhados com a agenda de Direitos Humanos. A portaria institucionaliza o programa e torna mais difícil desmontá-lo. Trata-se de um programa de baixíssimo custo e que promove ganhos expressivos às aprendizagens dos estudantes, porque ele tem como eixo estruturante a leitura do texto literário e a escrita autoral. Ele trabalha promovendo a formação de leitores- professores e estudantes- porque promove acesso a obras literárias de autoria feminina. Os próximos passos que precisamos dar estão relacionados a sistematizar as Diretrizes do Programa,realizar avaliações permanentes, e seguir trabalhando para que ele chegue a mais docentes e escolas.
As mulheres precisam trabalhar mais do que os homens para obter o mesmo reconhecimento. A senhora enfrentou discriminação e preconceito ao longo da sua carreira?
Não há um só dia em que eu não tenha que lidar com machismo e com o racismo. Quando você é uma mulher negra, em um país regido por um racismo estrutural, a sua existência se dará dentro de uma luta permanente pelo direito de existir, de ser reconhecida como pessoa, de poder erguer a sua voz. No imaginário coletivo, uma mulher negra só pode ocupar espaços subalternos.
O que se espera de nós é obediência, submissão, realização de trabalho braçal e ocupação do espaço doméstico. Já estive em eventos em que seria palestrante e, quando me sentei no lugar reservado aos palestrantes, me orientaram a me levantar. Uma mulher negra em um evento como palestrante causa estranhamento aos olhos condicionados a ver corpos negros estampando as páginas policiais dos jornais ou realizando trabalho de limpeza.
Essas são as imagens que um país racista gera e repercute sobre pessoas negras. E é assim que as estruturas vão operando para que o machismo e o racismo habitem o inconsciente e o imaginário dos brasileiros. Ainda que as pessoas neguem, elas são formadas dentro dessa cultura, isso as constitui. O ponto de partida da conversa sobre o racismo é assumir que todos temos que ter uma postura constante de vigilância e de compromisso em nos desconstruir.
Como avançar em ideias inovadoras na educação?
Definir ideias inovadoras em educação depende muito da concepção de educação e de inovação que se tem. Eu rechaço completamente a concepção de uma educação tecnicista que se limite a apenas formar as novas gerações para o mundo do trabalho. Ter uma profissão e condições de empregabilidade são pontos imprescindíveis, mas isso não basta.
Precisamos formar as novas gerações para serem capazes de olhar para o mundo criticamente, com o firme propósito de mudá-lo, e não de se conformar ou de se adequar a ele. Precisamos de uma geração capaz de questionar os paradigmas que nos trouxeram até aqui, que são baseados na lógica da exploração de uns, em condições precárias de vida, para que outros possam acumular riqueza.
Esse é um modelo esgotado de sociedade. Para avançar nas ideias inovadoras em educação, precisamos conectar a escola às novas tecnologias, porque o mundo digital já se impôs. Mas, isso não basta. Um mundo tecnológico, sem pensamento crítico e senso de ética e humanidade, vai nos levar a mais desigualdade e barbárie.
Não se promove inovação em educação sem investimento público sério, sem mobilização da sociedade e sem apoio aos docentes.
As demandas da sociedade ampliaram a necessidade de a educação se modernizar, principalmente diante da pandemia. Como contribuir para reduzir os impactos sociais da covid-19?
A demanda por modernização das escolas e de atualização da educação aos novos tempos é antiga. Pouco antes da pandemia, professoras e professores pelo Brasil inteiro clamavam por internet e recursos tecnológicos em suas respectivas unidades de ensino. Não se promove inclusão digital de docentes e estudantes sem recursos, investimentos, políticas públicas qualificadas.
Levar tecnologia para a escola não significa despejar pacotes de tecnologias prontos nas unidades de ensino. Colocar a tecnologia a serviço das aprendizagens é um processo complexo, requer preparação, qualificação. Durante a pandemia, vi que a tecnologia, muitas vezes, foi usada para produzir um aprofundamento daquilo que Paulo Freire chama de “educação bancária”, ou seja, mera entrega ou depósito de conteúdo, que não promove aprendizagens.
A tecnologia só faz sentido em educação se ela não expropriar o professor da sua autonomia e não retirar do estudante o seu protagonismo. No contexto educacional, as tecnologias que nos interessam são aquelas que dialogam com as ciências da educação e com os nossos marcos civilizatórios. Tecnologia por tecnologia não promove aprendizagens e pode nos levar à barbárie. Basta ver o efeito devastador das fake news propagadas por robôs.
Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade?
A pandemia nos mostrou várias coisas — a nossa existência é frágil, precisamos da coletividade para viver e precisamos de um Estado e de uma democracia fortes, que em momentos críticos, como o que estamos vivendo, nos protejam de governos autoritários e arbitrários. Também percebemos que a economia não existe sem as pessoas, e que a lógica perversa imposta pelo mercado não pode estar acima da ética humana.
Com o modelo de sociedade que está posto — ultraliberal, orientado por uma lógica de estímulo ao consumo e ao acúmulo de riqueza, em detrimento da qualidade de vida de milhares de pessoas, e sem nenhum respeito às questões ambientais, não conseguiremos ir muito longe. Esse é um modelo de sociedade insustentável. Não podemos continuar pensando o nosso futuro a partir dos mesmos paradigmas injustos que nos forjaram.
O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
A minha rotina foi profundamente modificada. Estou vivendo literalmente enclausurada. Obedeço à determinação do isolamento social rigorosamente. Tenho problemas respiratórios desde a infância e tenho pavor de me contaminar com este vírus terrível. Então, desde o ano passado, todas as celebrações que aconteciam em família, festas de aniversário, Natal, Ano Novo, encontros familiares foram suspensos.
Sinto uma falta enorme de tudo isso. Entendi que este momento que estamos passando é um momento extremo, que nos pede medidas e sacrifícios extremos, e antes de tudo, senso de responsabilidade coletiva. Outra mudança significativa é que o volume de trabalho aumentou exponencialmente. Não me recordo de ter trabalhado tanto como tenho trabalhado desde março do ano passado.
O momento exige resiliência e ativismo solidário. Pessoalmente, engajou-se em alguma atividade coletiva a distância?
Eu faço parte de um coletivo que reúne mais de 300 professoras e professoras das cinco regiões brasileiras, de quase todas as unidades da federação. No ano passado, nós percebemos a necessidade de nos engajar em uma ação coletiva, ainda que a distância. Encontrávamo-nos virtualmente para trocar experiências, para falar das nossas dificuldades.
Produzimos um videomanifesto em favor do apoio aos estudantes e contra o sucateamento e a precarização do ensino. Também nos mobilizamos fortemente pela aprovação do novo Fundeb.
Uma das faces mais cruéis da pandemia é o aumento da violência doméstica e do número de casos de feminicídio. O que fazer para mudar essa realidade?
É necessário um esforço conjunto da sociedade. A gente precisa entender que “em briga de marido e mulher, todo mundo tem que meter a colher”. Violência doméstica não é um problema privado, é uma questão pública. Como eu mencionei, nós, mulheres, somos educadas, por todas as estruturas sociais, para nos submeter.
As mulheres têm dificuldades de enxergar a violência em uma relação, porque elas são educadas para suportar tudo em nome de serem escolhidas e “amadas” por um homem. A casa é o lugar mais letal para elas. É importante fortalecer políticas de segurança pública que façam com que a mulher se sinta segura para denunciar uma situação de violência.
É fundamental criar uma rede de apoio preparada para acolher a denúncia dessa mulher e acompanhá-la, porque, depois que ela consegue reconhecer os abusos que está sofrendo e decide romper com o ciclo de violência, certamente, sofrerá ameaças, cerceamento e violência, ainda mais intensas por parte do marido, companheiro ou namorado.
O combate ao racismo passa pela escola?
O combate ao racismo passa pela escola, porque o racismo também acontece na escola. Nós precisamos promover uma agenda educacional antirracista, porque a educação que propomos há séculos, no Brasil, é racista. É uma educação que promove como superior a cultura, a identidade, os valores e epistemologias ligados aos grupos hegemônicos — homens, brancos, europeus. A história oficial tem sido contada há séculos na perspectiva do colonizador.
Lélia Gonzalez, uma das mais importantes intelectuais negras, já nos advertia sobre isso, há muitas décadas, ao dizer: “Estamos cansados de saber que nem na escola nem nos livros onde mandam a gente estudar, não se fala da efetiva contribuição das classes populares, da mulher, do negro, do índio, da nossa formação histórica e cultural. Na verdade, o que se faz é folclorizar todos eles. E o que é que fica? A impressão de que só homens brancos, os homens brancos, social e economicamente privilegiados, foram os únicos a construir este país. A essa mentira tripla dá-se o nome de sexismo, racismo e elitismo”.
Portanto, o combate ao racismo passa pela escola, mas é importante enfatizar que este combate não pode acontecer apenas na escola. Todas as instituições públicas ou privadas, que trabalhem ou não com educação, precisam se comprometer com uma agenda antirracista.
Como as escolas podem reagir mais rápido às demandas da sociedade?
Precisamos nos perguntar o que estamos chamando de “demandas da sociedade”. São demandas da sociedade ou são demandas de um mercado que tem um apetite insaciável? Quando me perguntam como preparar as crianças para a próxima década, por exemplo, eu sempre questiono: quem tem o poder de pautar como será a próxima década?
Por que se este mercado voraz, competitivo, orientado por um capitalismo predatório, for o responsável por pautar a próxima década, as escolas nunca vão conseguir responder suficientemente às suas demandas. A pergunta que precisamos fazer é: que ética deve orientar a educação? Uma ética que se coloque a serviço do ser humano ou que se coloque a serviço do lucro desenfreado, às custas da produção de desigualdades?
Por que, num ambiente de polarização como o atual, é tão importante que escolas reconheçam e tratem sobre diversidade?
Não há democracia sem respeito à diversidade. Não há existência possível fora dela. A nossa existência é um ato político que se dá dentro das contradições e dos conflitos gerados por vivermos coletivamente, como sociedade. Tentar impor uma única visão de mundo, quer seja pelo fundamentalismo religioso, quer seja por concepções extremistas da realidade, é tentar negar o que nos constitui — somos diversos, essa é a nossa maior riqueza.
A escola tem um papel fundamental quanto a dialogar sobre isso. Inclusive, o papel da escola é mostrar que o respeito à diversidade é uma conquista coletiva da humanidade. Nós já experimentamos modelos de sociedade autoritários, fascistas, e vimos que não vale a pena aderir a essa lógica.
A defesa do respeito à diversidade, que já está consolidada nos nossos dispositivos legais, em normativas que vão desde à Constituição, passando pela LDB, pela Lei Maria da Penha, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, é resultado de um longo acúmulo na luta pelo avanço nos nossos marcos civilizatórios.
Abrir mão da diversidade é abrir mão da civilidade e do respeito à dignidade humana. A escola é esse espaço potente para o convívio pacífico e civilizado entre pessoas que pensam diferente.
Quais os impactos da pandemia para a vida profissional dessa geração de estudantes do ensino básico? E o que fazer para reverter os prejuízos?
Os impactos são gigantescos. Mas, é preciso fazer um resgate histórico para olhar o que está acontecendo no Brasil. Os problemas educacionais que estamos enxergando com uma lupa agora, em função da pandemia, são problemas que existem desde que o Brasil é Brasil. Eles não começaram em 2020.
Somos o país que, há 520 anos, adotou um modelo de sociedade injusta, sustentada em um racismo estrutural, que foi fundado por leis para promover a precarização e o extermínio da população negra. Muita gente não sabe, por exemplo, que o Brasil criou leis para impedir às pessoas negras de terem acesso à terra para plantar e à educação.
A Constituição de 1934, por exemplo, determinava que, nas escolas, fosse promovida uma educação eugenista, ou seja, uma educação que celebrasse a suposta superioridade de pessoas brancas, em detrimento de outras raças e etnias. Como afirma a professora Lia Vainer, no nosso país, “o trabalho da população branca enriqueceu a ela própria, enquanto o trabalho da população negra possibilitou o enriquecimento do branco.
Temos uma população negra que está há 16 gerações trabalhando, mas não consegue fazer o principal para criar oportunidades: transferência de riqueza herdada entre gerações. Porque seu trabalho nunca enriquece o próprio grupo”. O número de estudantes negros, pardos e indígenas sem acesso ao ensino remoto é três vezes maior do que o de brancos.
A crise educacional que estamos enfrentando e vamos enfrentar foi sistematicamente criada por um país que ainda não levou a sério a promoção de políticas públicas integradas, que partam do entendimento de que os nossos problemas educacionais, são, antes de tudo, problemas de desigualdade social.
Vamos precisar de um grande pacto coletivo, de toda a sociedade e do Estado, para apoiar as crianças e os adolescentes que estão atravessando esta grande crise e que sofreram perdas significativas quanto às aprendizagens.
E precisamos olhar para o que houve de aprendizado a partir desta experiência, sob risco de seguir repetindo os mesmos erros ou de seguir reverberando essa narrativa derrotista de que a educação na pandemia foi uma “catástrofe”, “terra arrasada”. Repetir isso não colabora para a mobilização e ainda gera ainda mais desesperança.
As mulheres são vítimas, no mercado de trabalho, de salários menores, jornadas exaustivas dentro de casa também e ainda enfrentam assédio moral e sexual. Como ser inspiradora debaixo de tanto preconceito e discriminação?
Não é nada fácil seguir sendo inspiradora debaixo de preconceito de gênero e de discriminação. Não conheço uma mulher que não tenha que lidar com isso todos os dias da sua vida. Mas, muitas sequer têm consciência das violências que sofrem e, muitas, inclusive, por não terem construído o que a gente chama de consciência de gênero, podem se submeter a abusos e se colocar do lado do abusador.
É preciso ter muita consciência de como os sistemas de opressão operam para aprender a nos defender deles. Eles estão cristalizados, institucionalizados. Parte do que é ser inspiradora é lembrar que só quem ganha com o silêncio é o abusador. Ao menor sinal de violência e de abuso, em qualquer contexto, é necessário denunciar. Como diz a grande Maya Angelou: “Toda vez que uma mulher se defende, sem nem perceber, sem qualquer pretensão, ela defende todas as mulheres.”
É possível ter um olhar poético diante desse momento difícil?
Quando, em 1 ano e 3 meses, um país chora a perda de mais de 500 mil vidas, além de muita dor e muito luto, há que se ter esperança, para que a gente não fique paralisado pelo medo e pela perplexidade. Estar vivo na atual conjuntura é algo para ser muito celebrado. Precisamos seguir, inclusive, em respeito à memória de quem não sobreviveu a tudo isso.
Muitas das vidas que se foram poderiam estar aqui se tivéssemos sendo regidos por um governo democrático, que evidenciasse respeito à vida, à ética universal da humanidade e às ciências. Precisamos reunir forças e esperanças para lutar bravamente para que essa história não se repita novamente no Brasil.
Como faz para aliviar a tensão? O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
Para aliviar a tensão deste momento, eu tenho trabalhado muito. Trabalhar me proporciona a sensação de estar sendo útil, de também estar na luta, como tanta gente que está na linha de frente na luta contra a Covid-19 está. Também é muito prazeroso estar com o Edson e com o Luís Guilherme, meu companheiro, com quem estou casada há 15 anos, e o meu filho, de 10 anos.
A gente curte muito a companhia um do outro. Vemos filmes e séries juntos, brincamos, conversamos, lemos livros. Eles me nutrem e me alimentam de um afeto importante para que eu cumpra a minha rotina. Também, ainda que a distância, não abro mão de estar em contato com o meu sogro, que tem 83 anos, e com minhas irmãs e amigas. Este é um momento em que a gente não pode ficar sozinho.
A senhora nasceu em Brasília, aqui estudou e construiu sua trajetória? A cidade evoluiu em relação aos preconceitos de gênero?
Eu sou apaixonada por esta cidade porque ela foi o território escolhido pelo meu pai, seu Moisés, e minha mãe dona Djanira, para construir a nossa história. Minha mãe chegou a Brasília sem sequer ter o dinheiro para pagar a passagem de ônibus. A minha tia Maria José, a mais velha de todas, que está hoje com 87 anos, veio primeiro, nos idos de 1960, e financiou a passagem dela.
E o que trouxe a minha mãe, uma mulher que vivia em uma área de zona rural de Minas Gerais, para Brasília, foi o sonho de que os seus filhos nascessem onde houvesse escola. Desde muito pequena, eu ouvia o meu pai e a minha mãe defenderem a educação com muita veemência. Minha mãe dizia pra mim: “Minha filha, estude. Estude para que você não dependa de um homem para viver, para que você seja dona da sua história”.
Se olharmos para Brasília, veremos que a cidade ainda é muito marcada por preconceito de gênero e de raça. Quem ocupa os espaços de prestígio, de poder e de tomada de decisão na cidade, ainda são os homens brancos. Brasília é a síntese das contradições do nosso país, que é racista, patriarcal e misógino. Para mudar este cenário, precisamos de mais diversidade na política — mais mulheres, mais pessoas negras, indígenas, LGBTQI+, quilombolas.
Quanto mais diverso é o grupo que pensa e faz as nossas políticas, mais chances teremos de que essas políticas estejam a serviço de promover igualdade social, de gênero e de raça. No final das contas, promover mudança social também é sobre isso, é sobre honrar o movimento corajoso de quem veio antes de nós, como minha mãe, que se sacrificou absurdamente para que pudéssemos ter acesso à educação. Para que o mundo continue caminhando para frente, sem retrocessos, precisamos honrar o que foi construído antes de nós.
Minibiografia
Gina Vieira Ponte é ceilandense, filha de seu Moisés e de dona Djanira, professora da educação básica na Secretaria de Educação do DF há 30 anos. Graduada em Letras pela Universidade Católica de Brasília. Pela Universidade de Brasília é mestra em Linguística, com ênfase em Análise de Discurso Crítica, especialista em EAD, em Desenvolvimento Humano, Educação e Inclusão Escolar. Autora do Projeto Mulheres Inspiradoras, agraciado com 13 prêmios, entre eles, o I Prêmio Ibero-americano de Educação em Direitos Humanos.
Fonte: Correio Braziliense