Coordenadora de grupo contra violência política de gênero no Ministério Público Eleitoral, Raquel Branquinho avalia aplicação de nova lei
A lei de violência política de gênero, sancionada em agosto de 2021, representou uma vitória para a bancada feminina no Congresso, mas, passados 19 meses, mais da metade dos partidos políticos brasileiros ainda não se adequou às regras.
À frente do grupo de trabalho criado para prevenir a violência contra as mulheres e cobrar ações afirmativas de inclusão feminina pelas legendas, Raquel Branquinho, procuradora regional da República, avalia que a legislação brasileira está farta e adequada, mas que existe um entrave estrutural nos partidos para a participação efetiva de mulheres.
“Nosso principal problema é que temos as normas, mas não estamos enxergando a concretude, que é o aumento de assentos femininos”, diz.
Ela pondera, entretanto, que há avanços. É a primeira legislatura do Congresso que terá uma bancada LGBTQIA+.
O déficit de mulheres em cargos políticos tem relação com diferentes tipos de violência, segundo a procuradora. Um padrão recorrente nas denúncias feitas em 2022 foi o de violência política de ordem econômica.
“É a violência praticada no âmbito do partido, que inviabiliza, dificulta ou constrange a participação feminina. É um segmento difícil de investigar, mas houve um grande aumento [de casos]”, afirma.
Ela exemplifica: “Há captação de mulheres com promessas falsas de que elas terão apoio logístico, técnico, financeiro e jurídico nas campanhas”, o que não se cumpre na prática.
Diante da lentidão das legendas para atualizar seus estatutos com medidas de prevenção e repressão à violência política de gênero —uma das previsões da nova lei—, o Ministério Público Eleitoral encaminhou uma série de ofícios aos partidos e, segundo Raquel Branquinho, não descarta judicializar a questão.
“Os partidos políticos ainda não são propícios à participação feminina. Não há como ter plenitude da democracia representativa no Brasil sem que eles estejam abertos para isso”, diz.
A legislação não trata apenas de criminalização, ela estabelece uma política afirmativa para vencer a subrepresentatividade feminina em cargos públicos. A procuradora destaca que um problema é a usual corrida pela participação de mulheres apenas às vésperas das eleições, para preencher a cota de 30%.
Os partidos estão cumprindo a lei de combate à violência política de gênero? Não satisfatoriamente. Um dos maiores obstáculos está na inclusão de mulheres. Já temos legislação suficiente para ações afirmativas, que existe desde a década de 1990; a legislação é aprimorada inclusive por influxo de decisões de tribunais superiores, como o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal, que sempre dão um norte para maior efetividade, mas os partidos políticos ainda não são propícios à participação feminina. Não há como ter plenitude da democracia representativa no Brasil sem que eles estejam abertos para isso, porque é por meio deles que ocorre todo o processo político eleitoral.
A lei diz que partidos têm de alterar seus estatutos para contemplar ações de combate à violência política de gênero e para garantir o direito político das mulheres. Quantos mudaram? Passados 120 dias da promulgação da lei, encaminhamos ofícios a todos os partidos políticos. Nenhum respondeu. Começamos o grupo de trabalho um mês depois. O vice-procurador Geral Eleitoral, Paulo Gonet, encaminhou nova rodada ofícios a todos, com recomendações específicas [somente PT, PSOL e União Brasil responderam].
Hoje temos 19 partidos e federações que ainda não atendem satisfatoriamente à lei –ou não responderam ofícios [como Patriota, Novo, PP e Rede] ou afirmam estar em processo de adaptação [como PSB, PSDB e PSTU]. É preciso dizer que alguns partidos podem ter políticas afirmativas internas, mas não as adequaram às normas da lei.
Eles responderão por esse descumprimento? É possível tomar medidas judiciais, que sempre vão depender de uma interpretação do Judiciário, que precisa ser feita com muito cuidado. Temos que avançar em estabelecer um modelo judicial, porque o relator do caso pode simplesmente dizer que é uma questão de autonomia do partido. Vamos marcar uma rodada de seminários com os partidos, apresentar os que estão formalmente prontos e iniciar um monitoramento para ver como estão adotando as medidas na prática. A ideia é sairmos disso com todos os partidos respeitando, no mínimo, a parte formal. Caso isso não se viabilize, vamos analisar medidas judiciais.
Diante do trabalho do grupo, especialmente na eleição, a sra. detectou algum padrão de violência? Na eleição, cresceu muito a violência político-econômica, aquela praticada no âmbito do partido, que inviabiliza, dificulta ou constrange a participação feminina nas campanhas. É um segmento mais difícil de investigar, mas notamos um grande aumento.
Pode dar um exemplo? As mulheres muitas vezes são convidadas a se candidatar [o partido tem que ter 30% de mulheres], há a captação delas com promessas de apoio logístico, financeiro e jurídico na campanha —e sem esse apoio sabemos que é muito difícil—, e as promessas não se cumprem. Tivemos num passado recente mulheres que foram deixadas à própria sorte e que depois tiveram que responder por prestações de contas das quais não tinham nenhuma gestão.
O repasse de recursos tem que ser proporcional à quantidade de mulheres, se são 30%, tem que repassar 30%, do recurso dos dois fundos, o especial de campanha eleitoral e o dos partidos. Os partidos recebem [o dinheiro], as mulheres são chamadas, convidadas, e a destinação muitas vezes vai para campanhas de homens.
Como avalia a aplicação da lei para mulheres transexuais? Justamente outro padrão que notamos foi direcionado a mulheres negras e trans. Vários políticos saíram do ostracismo e se tornaram conhecidos ante determinado nicho a partir do mecanismo de atacar mulheres. No Rio, tivemos um deputado estadual que tem foro no tribunal regional e a vítima era uma vereadora trans preta. O tribunal recebeu a denúncia, é um precedente importante [o caso é do deputado Rodrigo Amorim (PTB), réu por violência política de gênero contra a vereadora Benny Briolly (PSOL)].
De forma prática, como as legendas devem atuar para aumentar a representatividade de gênero? Indicamos diretrizes em uma nota técnica recente, como criar uma política institucional de promoção de medidas para aumentar, capacitar e trazer mulheres para a política. Não adianta nas vésperas das eleições procurar mulheres para preencher a chapa e contemplar os 30%.
Está previsto na Constituição que 5% do fundo partidário seja utilizado para a promoção de políticas para a maior integração de mulheres e pessoas pretas na instituição partidária, não basta um seminário ou uma cartilha. É preciso ir às escolas, às agremiações, nas festas, onde se possa se comunicar com esse público. Tem que ser uma política constante.
Sobre a repressão à violência, propomos o que a própria lei diz: identificar situações de abuso que qualquer pessoa vinculada ao partido, e publicamos várias cartilhas sobre isso, instalar processos administrativos apuratórios e punições cabíveis.
Sabemos que 2022 foi um ano de calendário atípico para aplicar uma política mais dinâmica, mas alguns partidos informaram que fariam essas implementações nas convenções partidárias e, no frigir dos ovos, pouco mais da metade atendeu plenamente ou parcialmente a formalidade da mudança de estatuto.
Qual a sua expectativa para a aplicação da lei em anos não eleitorais? Vamos trabalhar capacitação com advogados, principalmente sob a ótica de que, quando se tem uma parlamentar transexual vítima de qualquer violência, a primeira medida [judicial] a ser considerada é a de violência política de gênero, depois vêm os outros crimes, que podem ser trabalhados de forma conjunta. Mas não se pode dispersar ações para outro tipo de representação.
Enfrentamos dificuldade muitas vezes por quem opera o direito, o promotor eleitoral, o delegado de polícia, que não tem conhecimento de como tratar o tema por essa perspectiva. Daí demora, não tem resultado, o que é difícil para a vítima, que precisa de um encaminhamento rápido.
As próprias vítimas fazem representação na Polícia Civil por crime de ameaça. Quando a mulher for detentora de mandato eletivo, ela não tem que pensar em ameaça, mas em violência política de gênero. Se houver outros crimes em conjunto, eles serão apurados junto. Violência política não depende de representação, é um crime especial em relação a outros.
O presidente Lula anunciou que vai criminalizar empresas que não equipararem salários, o que já é previsto em lei. O que a sra. espera do governo nessa pauta? O Brasil tem problemas estruturais que nos colocam nos últimos patamares de qualquer ranking de representação feminina nos parlamentos. O país já foi condenado em cortes internacionais por discriminação. As mulheres têm dificuldade de ocupar cargos de decisão na esfera pública e privada e nossa sociedade é violenta. Isso não se resolve de uma hora para a outra.
O que vejo é uma mudança de paradigma para tratar a situação. Haverá erros e acertos, mas só em criar secretarias específicas [Ministério dos Povos Indígenas e Ministério dos Direitos Humanos] você recoloca o Brasil nas discussões internacionais. Vai demorar quase 200 anos para termos uma efetiva igualdade. É preciso ter além de legislação, fiscalização e punição. Uma legislação sem punição acaba sendo um reforço de condutas irregulares.
RAIO-X | RAQUEL BRANQUINHO, 52
Coordena o Grupo de Trabalho de Violência Política de Gênero do Ministério Público Eleitoral. É procuradora regional da República em Brasília e também coordena o Núcleo de Ações Criminais Originárias na Procuradoria Regional da República na 1ª Região. Trabalha por mais de duas décadas no Ministério Público Federal. Atuou no grupo de trabalho da Operação Lava Jato, na PGR, no mensalão, em 2006, e na apuração do caso Banestado, em 2004. É de Franca (SP) e formada em direito pela Unesp e mestre pela Universidade Católica de Brasília na área de direitos humanos e corrupção.