Por: Andrea Dip
Recentemente, relatores da ONU denunciaram a violência contra candidatas negras no Brasil. Na quinta-feira (13), o Human Rights Watch publicou um relatório apontando que o número de pessoas trans eleitas aumentou nas últimas eleições municipais, mas que muitas destas pessoas têm sido ameaçadas de morte. Algumas tiveram, inclusive, que deixar o país.
Em um ano eleitoral extremamente importante para o Brasil, a coluna entrevistou a pesquisadora, advogada, mestra em Gênero e Políticas de Igualdade pela Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) Uruguay e doutoranda em Ciências Sociais da Flacso Argentina, Izabel Belloc, sobre cotas para mulheres nos fundos partidários, representatividade e violência política.
Integrante da Red de Politólogas #NoSinMujeres, Izabel fala sobre a figura do “sujeito universal”: o homem branco, cisgênero, heterossexual sem deficiências aparentes de quem pouco é cobrado e a quem muitos privilégios são concedidos. “Por que nesses lugares onde se decide a vida das pessoas há um único grupo hegemônico em vez de ter a diversidade da população?”
“E quando se procura discutir essas questões, tem um grupo que chama de mimimi e um grupo que chama de identitarismo. Ambos são, também, formados por homens brancos, cis, heteros, de meia idade, sem deficiências aparentes”.
Leia a entrevista abaixo:
Ainda temos uma baixa representatividade política quando pensamos em mulheres, e isso vira um abismo quando falamos em pessoas negras, LGBT+, por exemplo. Por que isso ainda acontece no Brasil e como estamos em relação a outros países?
Tem uma questão cultural que é o fato de mulheres, pessoas negras, indígenas, trans, lésbicas, gays não serem vistos como legitimados a estar em espaços de poder. Quando a gente pensa nesses espaços vem na cabeça a figura do homem branco, cisgênero, de meia idade. E não só o Brasil, no mundo. É uma história de opressão. E se você não é homem branco, cisgênero heterossexual, sem deficiências aparentes — que na minha pesquisa eu chamo de sujeito universal — você não está habilitado a disputar poder ou vai ser oprimido se fizer isso. Se as dinâmicas são dominadas por esse grupo hegemônico, que é o do sujeito universal, é óbvio que ele não quer que isso mude. E as normas e leis que são elaboradas nesses espaços cuidam para que o status quo se mantenha.
O Brasil está muito atrasado em termos de representação política. Não só mulheres, mas também pessoas negras, indígenas, pessoas LGBT.
Dando dois exemplos: o México, que aprovou em 2019 uma emenda constitucional de paridade de gênero nos assentos, ou seja, não só nos parlamentos mas em todos os espaços públicos institucionais; e o Chile, que em 2021 elegeu uma Assembleia Constituinte nova, para escrever uma constituição nova, e a eleição dessa constituição previu paridade de gênero e assentos reservados para indígenas. Essas legislações também preveem reservas nos assentos e não nas candidaturas e isso dá uma diferença enorme para o Brasil. Aqui a gente tem reservas nas candidaturas.
Nós temos aprovação da cota de 30% do fundo partidário para candidaturas femininas. Acha que vai gerar mudanças significativas nesse quadro? Ou seriam necessárias mudanças mais estruturais?
Acho que as cotas de gênero são importantes no contexto histórico. A gente começa com a lei de 1996, que regulamentou as eleições municipais naquele ano e previu 20% de candidaturas de mulheres. Isso vem crescendo. Depois a lei eleitoral previu 30% da reserva de vagas das candidaturas e isso não era cumprido porque dizia “reserva” e não “preenchimento”. Em 2009 se altera a lei e se fala em “preenchimento”.
Em 2018, houve a decisão do TSE [Tribunal Superior Eleitoral], sobre a reserva dos 30% dos recursos do Fundo Eleitoral e do tempo de propaganda eleitoral para candidaturas de mulheres e, em 2020, a reserva proporcional desses mesmos recursos e do tempo de propaganda eleitoral para candidaturas negras.
Essas reservas são muito importantes. Eleição demanda muito dinheiro. Dificilmente uma candidatura vai se consolidar sem recursos financeiros e sem propaganda eleitoral. São avanços, mas dentro de um limite.
Se por um lado temos conquistas, por outro, está tudo muito devagar. E quando se procura discutir essas questões, tem um grupo que chama de mimimi e um grupo que chama de identitarismo. Esses dois grupos são formados por homens brancos, cis, heteros, de meia-idade, sem deficiências aparentes. A gente briga porque qualquer indicador estatístico vai te dizer, por exemplo, que mulheres negras sofrem uma enorme desigualdade em relação a trabalho, renda, moradia, segurança, todos os temas que são decididos por esse sujeito universal que está lá desde sempre.
Acho que uma coisa importante de refletir é sobre que mulheres estão ocupando cargos públicos e quem elas representam. Claro, nós temos sim mulheres cis e trans, homens trans e LGBTS nas casas legislativas e essas pessoas têm trabalhando incansavelmente, mas também temos Damares Alves no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. O que pensa sobre isso?
Essa discussão de quem são as mulheres que estão onde e fazendo o quê, do ponto de vista teórico, é mais apropriada para quando a gente tiver uma igualdade nesses espaços do que agora. Por uma razão muito simples: a gente não questiona os homens brancos, cis, heteros. A gente questiona mulheres por serem mulheres. Obviamente que quando temos mulheres, pessoas trans, pessoas negras, lésbicas, a gente quer que essas pessoas, acessando os espaços de poder, lutem pelos direitos das suas comunidades ou grupos sociais. Mas acho um pouco injusto.
Você acha que a gente está um passo atrás?
Sim. O homem branco ninguém questiona sobre nada.
A gente até questiona, mas pouco.
A gente não questiona “o homem branco cisgênero está fazendo isso”. Mas fazemos isso com mulheres, indígenas, trans, lésbicas, pessoas negras. Me lembro que, quando a Kamala Harris, uma mulher negra, foi eleita a primeira mulher vice-presidenta dos Estados Unidos, isso foi muito festejado, e logo depois foi muito criticado, por conta dos seus posicionamentos políticos anteriores. Mas é importante que meninas negras olhem para a Kamala Harris e pensem que podem chegar ali. É o que a gente chama de representação simbólica.
Nós tivemos a aprovação da lei que estabelece regras para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher. Pode gerar mudanças significativas?
É um avanço porque, antes, era terra de ninguém. As legislações específicas são importantes porque são um termômetro de que aquilo é importante na sociedade. Acho que vem muito da pressão social, são temas que estão muito discutidos. A violência política inviabiliza não só a política mas a vida da pessoa. A gente teve casos de parlamentares que tiveram que sair do país por conta das ameaças. Então essa legislação é uma resposta. Vai resolver tudo? Não vai. Uma lei por si só não resolve tudo. Até porque é uma lei muito inicial. Tem artigos importantes que tipificam a violência política e eu acredito que isso vai começar a ser usado. As vítimas vão começar a usar a lei e vamos ver como o judiciário vai responder. Esse é um tema que tem legislação em outros países há muito tempo. Mas precisa de uma mudança de cultura, como você enxerga o mundo, as pessoas e, principalmente, as pessoas que são diferentes de você.
Agora falando de previsões e cenários para 2022. O que espera deste ano?
É um cenário muito difícil, o que dá para prever é que essa vai ser uma das eleições mais importantes da história do país, sem dúvidas. A disputa vai se dar muito em torno da eleição majoritária nacional e até agora não podemos dizer como isso vai impactar nas proporcionais. Não acredito sinceramente que esses resultados vão melhorar muito. Até aqui, não tem nenhum elemento que diga isso. Que a gente vai ter muito mais mulheres, por exemplo. Vamos ver onde estarão as mulheres nas eleições presidenciais. Candidaturas negras, indígenas, vão existir?
Fonte: Universa