A violência sexual é um problema sério na vida de muitas mulheres e há várias formas de abuso recorrentes em nossa sociedade: estupros, toques indesejados, assédio no trabalho e abordagens invasivas nas ruas são algumas das formas mais frequentes de violência. Mas apesar de ser uma realidade tão constante, culturalmente a questão do abuso não é levada tão a sério. Dados de uma publicação da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres mostram que no máximo 20% dos casos são denunciados. O silêncio ainda é um problema a ser eliminado. Para dar voz a uma parcela dessas mulheres, como parte da campanha “Chega de Fiu Fiu”, a jornalista Karin Hueck elaborou uma pesquisa que observa o que as mulheres realmente pensam das cantadas de rua, assunto que tem sido cada vez mais debatido. O resultado da pesquisa saiu no Olga na última segunda-feira e a situação é praticamente unânime: 99,6% das 7.762 mulheres participantes afirmaram ter sido assediadas e 83% não gostam de cantadas, embora as ouçam frequentemente e nos mais diversos locais. Esse quadro problemático é reforçado pelos números assustadores da pesquisa, que apresentam de forma clara a reprovação feminina. A maioria esmagadora das mulheres já se sentiram coagidas a mudar o trajeto ou a roupa por medo de assédio sexual masculino. Apesar de ser extremamente evidente que essas abordagens não são encaradas pelas mulheres como “cantadas inofensivas”, muitos homens demonstram insatisfação ao verem as opiniões femininas. Para vários deles, nem os resultados da pesquisa são convincentes o suficiente para que deixem de “cantar” mulheres. Alguns até utilizam a pequena minoria de mulheres que dizem curtir cantadas como álibis para continuar abordando desconhecidas. Há muito o que ser discutido sobre a questão sob diversos pontos de vistas. No entanto, algo que chama atenção é o medo constante que tantas mulheres sentem. Por que tanto medo? A resposta para essa pergunta não é tão difícil e pode ser encontrada em conversas casuais ou até mesmo em páginas do Facebook – tais como a “Cantada de rua – conte seu caso”, que reúne depoimentos de mulheres vítimas de assédio por estranhos. Em quase todos os relatos, é possível perceber que as mulheres se sentem acuadas e amedrontadas diante da cantada de um homem desconhecido em locais públicos. As cantadas de rua são um fenômeno com demarcação de gênero bastante evidente – ou seja, na maioria massiva dos casos são homens heterossexuais que abordam mulheres. Até o próprio linguajar das cantadas geralmente tem uma carga de gênero muito forte, como é o caso de várias palavras utilizadas, como “boneca” ou “princesa”. Também é pertinente perceber que muitas das histórias contadas não são apenas casos constrangedores, mas sim abuso sexual, frequentemente envolvendo outras formas de violência. Em um dos relatos contados, por exemplo, uma moça de 20 anos andava pela rua quando dois homens a chamaram de “delícia”; mas ao perceberem que ela não responderia, apanharam pedras do chão e jogaram em suas costas. A moça correu e chegou em casa aos prantos, machucada emocional e fisicamente. É preciso buscar entender por que é tão naturalizado em nossa cultura o ato de dar em cima de mulheres desconhecidas em locais que não são voltados ou apropriados para conhecer novos parceiros. Lugares como a parada do ônibus, as ruas, o trabalho ou a faculdade, por onde as pessoas transitam para as mais diversas finalidades, muitas vezes com pressa para chegar a outro local. Homens que chamam mulheres de “gostosas” no meio de uma avenida movimentada certamente não esperam que elas parem para conversar e passem o telefone. As cantadas funcionam como uma forma de afirmação de poder e para estabelecer uma hierarquia. Ao avaliar fisicamente uma mulher, tal qual uma mercadoria, o homem intimida e demonstra que é livre e capaz de invadir o espaço alheio para se manter no topo. É justamente o caráter invasivo e intimidador dessas cantadas que faz com que as mulheres se sintam amedrontadas. Pode parecer clichê tocar nesse ponto, mas certamente homens heterossexuais também se sentiriam invadidos caso fossem cantados por outros homens ao som de “delícia, que rabo”. É uma clara invasão de espaço pessoal, além de ser constrangedor e potencialmente ameaçador. A mesma linha de raciocínio serve para abordagens feitas em locais mais voltados para se encontrar novos parceiros. Ainda de acordo com a pesquisa, muitas mulheres já foram abusadas sexualmente em ambientes como boates; elas foram tocadas sem consentimento e de forma insistente, muitas vezes até nos seus órgãos sexuais. Tenhamos senso crítico: um homem que passa a mão na genitália de uma mulher que não correspondeu suas cantadas, puxa seu cabelo e a chama de “baranga” está genuinamente interessado em conhecer uma moça encantadora ou está, na verdade, com seu senso de merecimento inato ferido? Para muitos homens, problematizar as cantadas seria uma forma de “acabar com a sedução” e reduziria suas chances de conhecer novas parceiras em potencial. Mas quais são as reais possibilidades de uma desconhecida sentir vontade de fazer sexo ou se relacionar com um homem que invade o seu espaço e usa palavras e termos constrangedores? Mesmo que essa mulher hipoteticamente sinta atração sexual, de que forma seria possível deixar de fazer quaisquer atividades rotineiras, como ir ao trabalho, buscar o filho na escola ou pagar contas, porque um desconhecido a chamou de gostosa no meio da rua? Quantas histórias realmente existem de relacionamentos que deram certo após uma cantada no meio da rua? Se essas histórias existem, seriam elas suficientes para justificar uma ação repudiada por tantas mulheres? Homens ingênuos e supostamente bem intencionados perguntam como poderiam abordar desconhecidas sem utilizar cantadas de rua. Ora, basta aplicar a situação ao contexto. Não é tão difícil avaliar se o local e o momento são adequados para “paquerar” alguém. A maioria dos relacionamentos, tanto puramente sexuais quanto amorosos, se iniciam a partir de um interesse mútuo. São muitos os casos de parceiros que se conheceram porque eram vizinhos, colegas na faculdade ou porque tinham amigos em comum. Em um local como uma festa ou uma balada, abordar alguém já não é tão ofensivo. Mesmo assim, oferecer um elogio gentil e puxar um assunto interessante pode elevar seriamente as chances de sucesso. E convenhamos: se o rapaz consegue falar “que bunda”, é bastante provável que seja desinibido o bastante para falar algo como “te achei interessante”, “gostei da sua camiseta” ou “você está gostando do show?”. Como fica evidente na própria pesquisa, é extremamente necessário e urgente conscientizar as pessoas sobre a questão das cantadas, pois a forma como as mulheres se sentem diz muito a respeito do seu significado: elas sentem medo de assédio e sentem que estão em risco, ou que podem ser estupradas ou agredidas de outras formas. Somente esse fato já é motivo suficiente para se moderar as cantadas. Agredir uma mulher porque ela não correspondeu às investidas não passa de uma demonstração de orgulho ferido, de alguém que pensa ter direito inato sobre aquela mulher. Essa sensação de merecimento inato já está profundamente enraizada em nossa cultura e não é problematizada como deveria. Se a maioria das pessoas compreende que ninguém é dono de ninguém e que todos merecem respeito, por que outro motivo senão o machismo haveriam tantas agressões transformando mulheres em objetos e propriedades? A pesquisa tem vários pontos que devem ser discutidos, mas encontrar uma solução pode se mostrar uma tarefa desafiadora. Mesmo assim, é preciso refletir sobre os danos causados pelas cantadas de rua e dar mais atenção ao que as mulheres têm a dizer a respeito. Aos homens bem intencionados, é preciso que façam uma reformulação e reflexão sobre as próprias formas de abordar mulheres; afinal, o modo como as cantadas são feitas e o efeito que causam em quem as ouve é responsabilidade de quem as emite. Publicado por Jarid Arraes |
Fonte: Revista Fórum
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