A violência institucional, que derrubou o estado de direito, surgiu poderosa o suficiente para mostrar suas garras antes mesmo que as primeiras ações armadas viessem à luz. Após o imobilismo durante o golpe, a esquerda reagiu e decidiu que somente através da luta armada seria possível derrubar a ditadura. Com um grande otimismo, a esquerda acreditava que era possível se armar, lutar e vencer, pois o povo certamente iria aderir. À medida que a ditadura proibia pela força qualquer tipo de participação politica democrática, velhos e novos militntes aderiam a organizações como: ALN (Ação Libertadora Nacional), PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), entre outras. Embora o espaço político fosse majoritariamente reservado aos homens, nas décadas de 60 e 70 ocorria um fenômeno que marcaria para sempre a história da participação feminina na política brasileira. As Mulheres na Luta Armada Contrariando inúmeras teses, a luta armada não foi um exercício de intransigência da esquerda, mas sim um duro e penoso enfrentamento ao Estado militarizado que em 21 anos foi responsável por cerca de 352 mortes (oficiais), 144 desaparecimentos, 2 mil torturados, 4.500 pessoas privadas de direitos civis, 10 mil exilados e 2.828 sentenciados à prisão pela Justiça Militar, tudo isso sem contar a violência contra os sindicatos, a imprensa, as entidades estudantis e a sociedade civil. Indignadas com esse cenário de autoritarismo e violência, inúmeras mulheres aderiram ao sonho de derrubar a ditadura e libertar o povo da opressão. Adentraram no espaço público, pegaram em armas e fizeram história. É certo que muitas dessas mulheres enfrentaram a oposição da família e da sociedade ao optar por esse caminho. Deixaram para trás – como todos os que atuaram nesse palco da história do Brasil – sonhos, amores, trabalhos, enfim, uma vida inteira para lutar por ideais. É muito difícil precisar a quantidade de mulheres que foram à luta armada. Os números mais próximos fazem parte do levantamento realizado pelo Projeto Brasil Nunca Mais em 707 processos judiciais militares relativos ao período. No entanto, somente 695 deles puderam ser submetidos ao cruzamento de informações e levantamento de dados. Nesses 695 processo constatou-se que 7.367 cidadãos foram denunciados por atuação contra a ditadura. Desse total, 12% são mulheres, nos levando à marca de 884 militantes do sexo feminino. Não há como identificar quantas mulheres realmente participaram da luta armada, mas podemos observar que elas marcaram significativamente sua presença nesse movimento. A participação feminina na luta armada implicou não apenas em sua insurgência contra a ordem política vigente, mas representou uma profunda transgressão ao que na época era designado espaço próprio das mulheres, ou seja, o espaço privado em que lhes restava apenas o papel de esposa, mãe e dona-de-casa, com exceção das operárias, que além de conquistar espaço no mercado de trabalho, tinham participação ativa no movimento sindical. Ao pegarem em armas, essas mulheres romperam tabu e, com certo êxito, conquistaram sua emancipação, conquistando, assim, seu lugar na história política do país. O Prazer e a Dor de Ser uma Mulher Guerrilheira Conquistar espaço na política foi uma vitória para as mulheres. Embora lagumas tenham sofrido com o machismo de seus companheiros de organização, no início as mulheres tinham o privilégio de circular sem despertar a atenção dos militares. Por causa disso, conseguiam manter uma “fachada legal”, o que garantiu a sobrevivência por mais tempo das organizações clandestinas. Durante algum tempo, foram até musas, como a militante Renata Guerra de Andrade (da VPR) conhecida como “a loura dos assaltos”. Mas, quando caíram nas mãos da repressão eram única e exclusivamente inimigas do regime e aí sentiram a dor de ser guerrilheira. Para a repressão a mulher não tinha capacidade de decidir por si só sua entrada no mundo político, portanto, para os militares a “mulher subversiva” era uma mulher desviante dos padrões normais definidos pela sociedade, assim, desmoralizavam-as com duas idéias: a de que estavam na luta buscando homens, então eram “putas comunistas”; ou eram mulher-macho, ou seja, homossexuais. A repressão entendia que ao se insurgir contra o regime militar a mulher cometia dois pecados: o de lutar juntamente com os homens e o de ousar sair do espaço privado e adentrar no espaço público, político que historicamente era exclusivamente masculino. A pena para isso foi a tortura sem limites. Foram várias as formas de tortura aplicadas às mulheres, no entanto, a forma recorrente foi a ameaça de tortura física, de estupro e prisão/tortura de seus familiares. Além disso, eram constantemente humilhadas através da nudez e da vendagem dos olhos. A sanha dos torturadores foi tamanha contra as mulheres que a militante Sônia Angel Jones (do MR-8) teve os dois seios arrancados durante a tortura que a levou à morte. Dulce Maia (da VPR) revelou em seu relato para o jornalista Luiz Maklouf de Carvalho a violência da tortura: “O sargento metia a cabeça entre as minhas pernas e gritava: ´Você vai parir eletricidade´” . Dulce sobreviveu à tortura, mas até hoje sofre com as seqüelas da violência de seus seviciadores. Em outro relato contundente sobre a tortura prestado por Maria Auxiliadora Lara Barcelos para o livro Memórias das Mulheres no Exílio fica evidente as marcas profundas deixadas pela violência: “Foram intermináveis dias de Sodoma. Me pisaram, me cuspiram, me despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos meus cantos mais íntimos”. Apesar de tudo, todas viveram intensamente a vida. Em situações de clandestinidade “havia intensidade em cada instante” , como afirma a ex-guerrilheira Nancy Mangabeira Unger (do PCBR). Todas evidentemente sofreram com as perdas e a destruição de um sonho partido em milhões de cacos. Entretanto, há um lado positivo em tudo isso, como relata a ex-guerrilheira Iara Xavier Pereira (ALN): “Nós fomos a geração que optou por enfrentar o regime militar em um momento em que isto era absolutamente necessário. Não éramos loucos nem terroristas sangüinários. Éramos jovens comprometidos com um ideal”. Por fim, valem as palavras da ex-guerrilheira Sônia Lafoz (ALN): “Não massageio meu próprio ego, mas tiro o chapéu para os homens e mulheres que tiveram a coragem de enfrentar aquela situação. No que diz respeito a nós, mulheres, as que pegaram ou não pegaram em armas, foi um momento singular de participação histórica. Devo dizer que eu faria tudo de novo”. Todos os relatos desse artigo foram retirados do livro Mulheres que foram à luta armada do jornalista Luiz Maklouf de Carvalho. *Vanessa Gonçalves da Silva é jornalista formada na Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e mestranda em História Social na Universidade de São Paulo (USP) onde realiza uma dissertação sobre o papel e a importância das mulheres na luta armada no Brasil (1964-1985). Contato: vangoncalves@gmail.com |
Fonte: O Rebate
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