Violonista erudita, com mestrado concluído e prestes a começar o doutorado. Mayara Amaral tinha uma carreira promissora, mas, aos 27 anos, sua vida chegou ao fim de forma cruel: foi morta com golpes de martelo e teve o corpo carbonizado, em Campo Grande (MS), no dia 24 de julho.
Na mesma semana, uma jovem, grávida de quatro meses, foi jogada contra um ônibus em movimento, no Rio de Janeiro. A polícia não divulgou seu nome, mas ela e o bebê sobreviveram. Câmeras de segurança filmaram o crime.
Em comum, as duas histórias de barbárie têm como acusados homens bem íntimos das vítimas.
A tentativa de assassinato da jovem carioca foi praticada por seu ex-namorado, Lucas Florençano de Castro Monteiro, que não aceitava a gravidez dela. Já a morte de Mayara teve o envolvimento de seu colega de banda Luís Alberto Bastos Barbosa, que confessou participação no crime e entregou dois comparsas. Pauliane Amaral, irmã da musicista, ainda contou que Mayara era apaixonada por Luís.
Após a repercussão dos dois casos, voltou a debate nas redes sociais o uso da palavra feminicídio. Desde 2015 a lei brasileira prevê o crime de feminicídio como um dos tipos de homicídio qualificado. Considerado crime hediondo, o feminicídio acontece quando o assassinato de uma mulher envolve “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
Mas o que é feminicídio?
“Feminicídio é o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher. Suas motivações mais usuais são o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda do controle e da propriedade sobre as mulheres”, define o Instituto Patrícia Galvão, ONG que debate os direitos das mulheres.
Para Fernanda Castro Fernandes, doutora em direito e especialista em violência contra a mulher, esse tipo de crime tem suas particularidades. “As características dessas mortes de mulheres são muito delimitadas a uma situação de crueldade, com mutilação e apropriação dos corpos, até a sua total destruição e desfiguração. Os assassinatos dos homens, em geral, não têm essa característica”.
Segundo Fernanda, quando esse tipo de crime acontece há a tentativa de apropriação do corpo das mulheres. No de Mayara, tentaram destruir o corpo, mesmo já sem vida. No caso da jovem carioca, o ex-namorado quis controlar não só o corpo, mas também a outra vida que ele gestava. “Ele se sentiu no direito de decidir se aquele filho viveria ou não. E o caminho que ele escolheu foi esse, absolutamente cruel”, aponta a especialista.
“Os corpos ocupam lugares diferentes na sociedade e o corpo da mulher é objetificado, tanto para sua valorização, controle e delimitação do que é belo ou não, quanto em um caso de assassinato em que agressores demonstram que ele pode ser destruído, possuído, aniquilado”, explica Fernanda.
Brasil tem 13 feminicídios por dia – e nem sempre o crime é registrado assim
Um dos campeões do mundo na violência contra a mulher, o Brasil tem 13 casos de feminicídio por dia, segundo dados do Mapa da Violência 2015. Estamos em 5º lugar neste ranking cruel. “Tem muitos mais casos de homicídio”, bradam algumas postagens na internet. Então, vamos repetir: feminicídio é um homicídio qualificado. É crime hediondo, como o estupro, por exemplo.
A dificuldade de enxergar essa motivação de gênero não acontece só na internet: muitas vezes os casos são classificados como outro tipo de crime. A morte de Mayara, até agora, está sendo tratada pela polícia como latrocínio, que é o roubo seguido de morte.
“Há uma dificuldade no reconhecimento da violência de gênero, ainda que a gente já tenha avançado bastante no conceito graças à Lei Maria da Penha. Ainda existe uma resistência do sistema de Justiça, considerando desde a polícia até os tribunais. É uma dificuldade cultural, mesmo, que acredito ser fruto do machismo”, opina Fernanda.
A doutora em direito explica que o caso Mayara ainda pode ser enquadrado em feminicídio, se o Ministério Público ou o Juiz responsável pelo caso assim decidirem. “O delegado que é responsável pela investigação pode enquadrar o crime no que ele quiser. Quando o inquérito é concluído, é enviado para o Ministério Público para que seja oferecida a denúncia para o Juiz. O MP pode mudar essa qualificação jurídica. Mas quem determina exatamente qual é o crime é o Juiz. Essa possibilidade de nomeação como feminicídio só termina quando o processo está na mão do Juiz”.
Como essas mortes podem ser evitadas?
Para a especialista, é preciso discutir as políticas públicas de acolhimento às mulheres, para evitar que histórias como a de Mayara não se repitam. Ela acredita que a Lei Maria da Penha representa um avanço importante, pois, além de estabelecer o acesso à Justiça e qualificar os tipos de violência, também contribui muito com as vítimas ao oferecer serviços de assistência social e psicológica.
“É algo complexo de ser entendido pela vítima, elas ficam em dúvida com relação à situação sofrida. É uma confusão de sentimentos: ao mesmo tempo em que você sofre violência, está do lado de alguém que você já amou ou que você já teve um bom relacionamento. Alguém que você já sonhou compartilhar a vida. O abuso psicológico é muito sutil”.
“Os dois casos (o de Mayara e o da jovem grávida) repercutiram porque aconteceram em capitais brasileiras, mas geralmente existe um anonimato das mortes de mulheres. São vidas que, aparentemente, não importam”
Para Fernanda, é preciso que a violência contra as mulheres seja urgentemente discutida nas escolas. “Ninguém nasce violento. Nenhuma criança é racista, homofóbica, machista por natureza. A gente tem que investir em processos de educação e direitos humanos, que inclui discutir gênero nas escolas. Mas veja o momento em que a gente vive: quando se fala em discutir gênero, surge um ‘medo gay’. É uma ignorância absoluta! É preciso investir em campanhas educativas, em projetos nas escolas, com as crianças pequenas”.
Denise de Almeida