Em entrevista exclusiva à Fórum, ministra das Mulheres fala sobre os desafios de reconstruir as políticas públicas voltadas para mulheres que foram arrasadas durante o Governo Bolsonaro
A violência contra a mulher é um tema que envolve pessoas de todos os gêneros, classe sociais, etnias, orientação sexual ou opções políticas. É uma questão que diz respeito à toda a sociedade brasileira. Para abordar vários aspectos desse tema, a Fórum publica uma série especial de reportagens que será veiculada ao longo deste mês.
Entrevistas com autoridades, parlamentares, ativistas, pesquisadores e estudiosos sobre as diversas facetas da violência contra a mulher: doméstica, sexual, obstétrica, política, patrimonial, psicológica e moral; dicas de livros, séries e filmes; pesquisas, estudos e levantamentos.
Ministra convoca para Marcha contra a Misoginia durante o Agosto Lilás
A ministra da Mulher, Aparecida Gonçalves, mais conhecida como Cida Gonçalves, concedeu uma entrevista exclusiva à Fórum sobre como tem sido o desafio de recalcular a rota das políticas públicas voltadas para mulheres para minimizar os retrocessos que foram causados durante a gestão de Jair Bolsonaro e começar a avançar.
Ela ressalta a necessidade de enfrentar a misoginia, que ela classifica como “a raiz de todas essas violências e desigualdades”. No papel de ministra das Mulheres, Cida tem dialogado e costurado acordos com o setor privado para esse enfrentamento. Ela anuncia que vai lançar a Marcha contra a Misoginia este mês para selar essas parcerias.
No mês da campanha Agosto Lilás, quando a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) completa 17 anos, legislação que ela ajudou a construir quando esteve à frente da Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres durante o governo de Dilma Rousseff, Cida destaca a importância dessa iniciativa revolucionária, mas que não é suficiente sozinha.
Cida também ajudou a elaborar a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015) ao longo de sua robusta trajetória na defesa dos direitos das mulheres. Ela é especialista em gênero e em enfrentamento à violência contra mulheres e ativista de defesa dos direitos das mulheres há mais de 40 anos.
A ministra foi uma das protagonistas da elaboração do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e do Programa Mulher Viver sem Violência, que tem como carro-chefe a Casa da Mulher Brasileira. Trabalhou ainda como consultora em políticas públicas de gênero e violência contra mulheres.
Nesta entrevista, Cida destaca a necessidade de uma mudança de cultura na sociedade como um todo para enfrentar a violência contra as mulheres. Ela apresenta um balanço do que já foi feito ao longo desses sete meses de governo e anuncia o que vem por aí.
Confira a entrevista
“É necessária uma mudança de cultura na sociedade como um todo, nas escolas, nas igrejas, nas famílias, na convivência entre as pessoas. A violência contra a mulher tem sido cada vez mais compreendida pelas mulheres e devemos ter tolerância zero contra ela”
Fórum – A partir da Lei Maria da Penha, sancionada há 17 anos, houve avanços no enfrentamento à violência contra a mulher. No entanto, dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023 apontam para crescimento dos casos de violência contra a mulher em 2022. Uma das razões seria o desfinanciamento de políticas de combate à violência contra a mulher durante a gestão de Jair Bolsonaro. Como tem sido implementar, no Executivo, a reconstrução dessas políticas de proteção à mulher?
Tem sido um grande desafio. De fato, os investimentos nos serviços de atendimento a mulheres em situação de violência, que estavam sendo mantidos ou em crescimento até 2016, passaram a cair nos últimos anos e também a ter uma mudança de foco, passando a priorizar apenas projetos voltados para a maternidade. Então este ano é um recálculo da rota que estava sendo seguida
pelo governo nessas pautas entre 2016 e 2022, para minimizar os retrocessos que foram causados e começar a avançar.
Fórum – De que forma um governo de frente ampla, mas com viés progressista como o que a senhora integra pode atuar para que os avanços em políticas de enfrentamento à violência contra a mulher sejam perenes e não fiquem à deriva de governos ultraconservadores como foi o de Jair Bolsonaro?
Costumo dizer que esta deve ser uma prioridade do atual governo. Precisamos criar mecanismos que fortaleçam as políticas públicas de uma forma que não seja possível que, com uma mudança de governo, e por decisão de algumas pessoas, elas sejam desmanteladas tão rapidamente. Por isso é necessária uma mudança de cultura na sociedade como um todo, nas escolas, nas igrejas, nas famílias, na convivência entre as pessoas. A violência contra a mulher tem sido cada vez mais compreendida pelas mulheres e devemos ter tolerância zero contra ela.
Este já foi um ano de aprovações históricas no Congresso Nacional, tendo passado apenas seis meses. Aprovamos, não apenas com votos de parlamentares progressistas, uma reivindicação histórica das mulheres, que é a Lei da Igualdade Salarial e Remuneratória, com inovações como o relatório de transparência das empresas, que tornarão a fiscalização mais eficaz. E ainda a Bolsa Atleta para gestantes e puérperas, um grande avanço para as mulheres que simplesmente paravam de receber o benefício se ficassem grávidas,
tornando a sua condição muito desigual em relação aos atletas homens. As duas propostas foram apresentadas pelo presidente Lula no 8 de Março, Dia Internacional das Mulheres, no Palácio do Planalto.
Fórum – Leis como a Maria da Penha são suficientes para enfrentar a violência contra as mulheres? Se não, quais outros mecanismos que já existem devem ser melhor explorados e quais ainda precisam ser criados?
Ela é revolucionária no enfrentamento contra as mulheres, é diferenciada no mundo (tamanho seu avanço) e é uma das leis mais conhecidas do país. Mas não é suficiente porque, volto a dizer, precisamos mudar a cultura da sociedade para que a mulher não seja vista como alguém inferior, menos capaz, que tenha menos oportunidades, que receba um salário menor e que seja violentada e não possa fazer suas escolhas, como a de terminar um relacionamento sem sofrer ameaças ou tentativas de feminicídio, inclusive.
O governo do presidente Lula voltou a priorizar as políticas para as mulheres. Desde a criação deste ministério a anúncios significativos nessa área. Ainda no 8 de Março, o governo anunciou, como uma parceria entre os ministérios das Mulheres e da Justiça e Segurança Pública, a construção de 40 novas Casas da Mulher Brasileira, que são espaços que reúnem em um mesmo local diversos tipos de serviço de atendimento a mulheres em situação de violência. Elas estarão localizadas em todas as capitais e também em cidades do interior.
Nos últimos dias eu estive em Belém, para os Diálogos Amazônicos, e fechei uma parceria com o governador Helder Barbalho para mais três casas no Estado, em Marabá, Santarém e Breves, sendo que o Pará já terá uma Casa na capital e tem outra prestes a ser inaugurada em Ananindeua. A Bahia terá quatro Casas, que estarão em regiões onde a população é pouco atendida. Estamos avançando bastante com esta política pública que foi lançada no governo da presidenta Dilma Rousseff e é de muito sucesso.
“Minha missão é fazer com que as mulheres tomem consciência de que estão sofrendo misoginia, desde os detalhes a agressões mais graves.”
Fórum – Qual a importância da campanha Agosto Lilás?
Este é um período do ano dedicado a ações de conscientização sobre o tema da violência contra a mulher. Aqui no Ministério das Mulheres nós fizemos uma escolha de ampliar o debate, na campanha deste ano, para além da violência doméstica e trazer situações do cotidiano para que as mulheres se vejam nelas e identifiquem quando estão sendo discriminadas, agredidas, excluídas. Uma situação de assédio no trabalho ou uma piadinha. Minha missão é fazer com que as mulheres tomem consciência de que estão sofrendo misoginia, desde os detalhes a agressões mais graves. Lançamos a campanha nas redes sociais na segunda-feira, 7 de agosto, justamente para marcar o aniversário da Lei Maria da Penha, e diversos ministérios também compartilharam, além de empresas parceiras como os Correios. O Ministério dos Transportes entrará em parceria também com as agências e as concessionárias do setor.
Fórum – A senhora fala bastante sobre a interseccionalidade de vários temas, como segurança pública, saúde, educação, trabalho, emprego e renda, igualdade racial etc. – para construir políticas públicas para enfrentar a violência contra a mulher. Como engajar a sociedade nessa luta e explicar essas diversas relações? Qual o papel do Ministério das Mulheres nesse cenário plural e complexo?
A educação é um caminho fundamental para levar essa conscientização sobre a violência e para mudar a percepção sobre o lugar da mulher na sociedade. Veja quanto mudamos em uma década, como as pessoas são capazes de enxergar situações de machismo, de racismo. Isso está muito relacionado com a educação, com as novas gerações já sendo influenciadas desde as escolas, gerações inteiras de jovens negras e negros que foram os primeiros em suas famílias a irem à faculdade, se tornaram mestres, doutores, e influenciaram todos ao seu redor, inclusive os professores. É uma mudança que não tem volta, que não tem governo que nos tire como sociedade.
Precisamos enfrentar a misoginia, que é a raiz de todas essas violências e desigualdades, e eu tenho investido muita energia nisso. Enquanto ministra das Mulheres, tenho dialogado e farei acordos com o setor privado para que as empresas se enxerguem também como responsáveis e entrem como parceiras nesse enfrentamento, com as torcidas esportivas, especialmente de futebol, um ambiente ainda muito machista, eu tenho falado com muitos setores diferentes e vou lançar o que eu chamo de Marcha contra a Misoginia este mês selando todos esses acordos que venho construindo ao longo dessas conversas.
Também tenho viajado os estados realizando este debate em audiências públicas nas Assembleias Legislativas e em Câmaras Municipais, ambientes onde a violência política de gênero está presente de forma assustadora.
“O governo precisa atuar investindo em serviços de atendimento, tanto para manter os atuais com qualidade e uma equipe capacitada, quanto em novos equipamentos.”
Fórum – Qual caminho a mulher vítima de violência deve percorrer para ser amparada pelo Estado?
Nós temos o Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher, que funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana, podendo ser acionado de qualquer lugar do Brasil de forma gratuita. No Ligue 180 as mulheres têm acesso a informações sobre seus direitos e também sobre os serviços da rede de atendimento que estão mais próximos dela, tanto na saúde como na segurança pública, assistência social e justiça. Mas, caso ela esteja em uma situação de emergência, a orientação é que ela disque o 190.
Quero ainda acrescentar que o mês de agosto também marca a sanção da Lei do Minuto Seguinte, que é fundamental para o enfrentamento da violência sexual. A legislação define que os hospitais da rede SUS devem oferecer atendimento emergencial, integral e multidisciplinar para todas as vítimas de violência sexual.
Fórum – De que forma o governo pode atuar para romper o ciclo de violência doméstica? Qual orientação você pode dar a mulheres que estão nesse tipo de ambiente neste momento?
O governo precisa atuar investindo em serviços de atendimento, tanto para manter os atuais com qualidade e uma equipe capacitada, quanto em novos equipamentos, como a Casa da Mulher Brasileira, que mencionei anteriormente.
Estamos reestruturando um serviço essencial para as mulheres que é o Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher – e que tinha sido integrado ao Disque 100, junto com diversos outros temas.
Fizemos várias ações esse ano para separar novamente os atendimentos, capacitar as atendentes periodicamente para inserir novos tipos de violência nos protocolos, iniciamos o atendimento via WhatsApp, que oferece a possibilidade de dar informações sobre direitos através de mensagens, além de investir em campanhas para que toda a sociedade – especialmente mulheres, mas também quem puder apoiar uma mulher em situação de violência – confie e compreenda este como um serviço que possa efetivamente interromper o ciclo de violência. Então nossa orientação para mulheres que estejam enfrentando alguma violência é: busquem ajuda, denunciem, contem com o Ligue 180.