União estável, adoção, doação de sangue, criminalização da LGBTfobia — estes são alguns dos avanços que o movimento LGBTQIA+ conquistou nos últimos dez anos, no Brasil. Mas, diferentemente de outras mudanças na legislação brasileira, essas conquistas não vieram do Poder Legislativo, mas do Judiciário, por meio do STF, que tem interpretado a Constituição de forma a reconhecer os direitos desta população.
A advogada Marina Ganzarolli, presidente da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB de São Paulo, no entanto, vê riscos neste “deslocamento” da busca por direitos do Congresso para o Supremo: “Hoje temos maioria favorável às questões LGBTQIA+ no STF. Mas isso pode se perder com o tempo, se continuarem ocorrendo substituições por ministros terrivelmente bolsonaristas”, como o Advogado Geral da União André Mendonça, indicado em julho pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Ela é a primeira pessoa LGBTQIA+ a ocupar a presidência da Comissão, que existe há 11 anos, e é, também, a única mulher lésbica entre os 200 conselheiros da seccional, a maior do Brasil.
Em 15 anos de experiência em questões de gênero e diversidade, a advogada cofundou a Rede Feminista de Juristas e o movimento #MeTooBrasil. No mês da Visibilidade Lésbica, ela fala a Universa sobre as ameaças do atual governo a conquistas LGBTQIA+, gargalos da Justiça no atendimento a esta população e direitos que ainda precisam ser garantidos para continuarmos caminhando em direção à igualdade.
UNIVERS: Você trabalha com mulheres e população LGBTQIA+ vítimas de violência há 15 anos. Neste período, o que mudou? Tivemos avanços?
Muita coisa mudou. A diferença, em termos de marcos legais, é gigantesca. Nos últimos 15 anos, a gente teve muitos avanços concedidos pelo STF — esses avanços, no entanto, nada mais são que a interpretação da Constituição, e não leis aprovadas pelo Congresso.
O movimento LGBTQIA+ entendeu que, para avançar, era preciso deslocar a busca de reconhecimento do Congresso, de onde naturalmente partem as leis, para o STF, porque cada vez os poderes Legislativo e Executivo foram fechando as portas para as nossas demandas.
O episódio mais marcante foi sem dúvidas o reconhecimento da união homoafetiva, em 2011, porque disso decorreram outros reconhecimentos, como a adoção, o divórcio, a divisão de bens, as licenças maternidade e paternidade.
O fato de estes direitos terem sido conquistados a partir do Supremo e não do Congresso é um problema? Há risco de retrocessos?
Sim, eu inclusive saí falando “gente, casa agora” antes do Bolsonaro tomar posse. Isso porque toda legislação que emana do Congresso tem uma garantia maior do que a que emana do STF, que nada mais é do que uma interpretação da Constituição. O que não significa que seja uma decisão absolutamente insegura, mas a gente pode ter lapsos de retrocessos.
Se o Congresso ou o Palácio do Planalto apresentarem um projeto para revogar o direito ao casamento, por exemplo, nós do movimento social levaríamos o caso ao STF, que provavelmente barraria, alegando que é inconstitucional, porque hoje temos maioria favorável aos direitos LGBTQIA+ no STF. Mas isso pode se perder com o tempo, se continuarem ocorrendo substituições por ministros terrivelmente bolsonaristas — o ministro André Mendonça [indicado ao STF em julho pelo presidente Bolsonaro], por exemplo, abriu procedimento contra inimigos do presidente, é contra a criminalização da LGBTfobia e defende a Patrícia Abravanel em manifestações LGBTfóbicas. Isso demandaria uma inversão de maioria, o que não acontece da noite para o dia, mas com certeza uma lei originária do Poder Legislativo é muito mais segura.
Além da união homoafetiva, foram reconhecidas outras questões importantes, como o casamento, em 2013, e a criminalização da LGBTfobia, em 2019. Na prática, o quanto esses direitos são realmente aplicados?
Avançamos muito nos reconhecimentos jurídicos, mas a gente ainda não conseguiu tirar as ações do papel, ir além da conquista formal e transformar em mudanças materiais. Sem investimento do executivo e apoio das instituições que aplicam as leis, como as forças de segurança ou o Judiciário, não funciona. Hoje, de dez travestis que entram numa delegacia dizendo que sofreram transfobia e querem prestar queixa por LGBTfobia, uma vai conseguir sair com o boletim de ocorrência em mãos. E eu não estou falando dos rincões do Brasil, estou falando de São Paulo capital.
E por que isso acontece? Quais são os principais gargalos que justificam as falhas da Justiça no atendimento a pessoas LGBTQIA+?
São muitos. Além da falta de capacitação e da educação dos agentes públicos, a gente depende do funcionamento de toda uma estrutura entre o reconhecimento do STF, por exemplo, e a aplicação prática, na ponta.
A decisão que permite que mulheres trans escolham se querem cumprir pena em ala feminina ou masculina, por exemplo, foi proferida pelo STF em março, mas cada estado tem uma Secretaria de Administração Penitenciária, que é a quem os presídios estaduais respondem diretamente, que precisam incluir em seus regulamentos resoluções que sigam a decisão do STF. Isso leva um tempo e anda em ritmos diferentes a depender de cada região. Tem diretor de penitenciária que vai dizer: “Não tenho nada a ver com o STF, enquanto não tiver uma resolução na Secretaria do meu estado eu não vou mudar o procedimento”.
A mesma coisa aconteceu quando o STF reconheceu a união homoafetiva, em 2011: até 2013, quando o Conselho Nacional de Justiça incluiu a resolução sobre esse assunto, tinha muito cartório de perfil mais conservador que se recusava a emitir a união, mesmo que o STF já tivesse reconhecido, porque os cartórios respondem à CNJ, não ao STF.
Você é a primeira mulher lésbica presidente da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP e a primeira e única entre os 200 conselheiros da seccional. Além do machismo que normalmente impacta mulheres no ambiente de trabalho, você enfrenta obstáculos por conta da sexualidade?
Eu sou a primeira pessoa LGBTQIA+ na presidência da Comissão. Ela existe há 11 anos e, até a minha nomeação, apenas pessoas heterossexuais e cisgênero tinham ocupado a presidência. É difícil. Ocupar a vida pública sendo uma mulher jovem pressupõe uma série de violências e isso não é restrito a mim: violações de direitos acontecem todos os dias com as nossas parlamentares, desde silenciamento, deslegitimação e até ameaças à vida delas. São coisas com as quais toda mulher tem que lidar diariamente. Sendo lésbica, ainda mais, porque estes ainda são ambientes muito conservadores.
Mas é importante dizer que eu não represento toda a diversidade. Nem eu e nem esses 200 conselheiros representamos os 400 mil advogados do estado de São Paulo. Por isso, espero que a gente tenha mais pessoas LGBTQIA+ na próxima gestão, assim como mais negros e mais indígenas. Não adianta eu ser a primeira, sentar na cadeira da presidência da Comissão e ficar lá para sempre. É preciso que venha a segunda, a terceira, a quarta. E que bom seria se a próxima fosse uma mulher trans, por exemplo.
Neste mês da Visibilidade Lésbica, quais são as principais demandas da letra L da sigla?
Eu acho que a gente tem hoje, enquanto movimento lésbico, duas grandes brigas: lutar contra o machismo dentro e fora da comunidade LGBTQIA+ e pelo respeito no sentido de não sermos mais colocadas em um lugar de fetiche, o que ainda acontece muito.
E, em termos de reconhecimentos legais, há direitos que ainda não estão garantidos a mulheres lésbicas?
Nesse momento, o maior gargalo está no acolhimento e no reconhecimento formal de mães lésbicas. A maternidade homoafetiva de mulheres lésbicas ainda precisa ser consolidada, assim como a inseminação artificial caseira, que precisa ser reconhecida e regulamentada, com registro das duas mães em cartório, logo após o nascimento.
Hoje, a inseminação artificial caseira, prática à qual muitos casais de mulheres lésbicas recorrem justamente por ser mais barata que a reprodução assistida em clínicas de fertilização, ainda não é reconhecida por lei. Uma criança concebida por este método só pode ter o nome das duas mães registrado em cartório a partir de uma ação judicial.
No ano passado, a Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP lançou a Constituição do Orgulho, uma versão da Constituição Federal com destaques específicos a direitos LGBTQIA+. Por que isso é importante?
A ideia é justamente jogar luz sobre nossos direitos conquistados constitucionalmente e mostrar que a gente não se contenta só com as migalhas criadas pelo STF — a gente tem sim um Supremo que interpreta a Constituição a nosso favor, mas a própria Constituição garante igualdade de direitos, dignidade e cidadania para todos. Por isso, convidamos advogados da Comissão para pintar a Constituição com as cores da bandeira, dando destaque a trechos que dizem respeito à nossa população, para fazer com que cada vez mais pessoas LGBTQIA+ entendam seus direitos.
Eu sei que a Constituição é um texto escrito para ser inacessível, tem uma linguagem difícil, mas a gente precisa se apropriar dela, conhecer e disputar sua aplicação.
Você costuma ministrar cursos para operadores de Justiça sobre direitos LGBTQIA+. Por que é importante que cada vez mais profissionais sejam sensíveis às demandas desta população?
Aos poucos, as áreas tradicionais do direito têm compreendido que é preciso olhar não só para as questões jurídicas, mas para o caso de forma mais sensível e interdisciplinar. Porque, muitas vezes, um crime de homofobia transita ao mesmo tempo pelas áreas penal, cível e trabalhista, por exemplo. Nestes casos, você pode procurar o melhor criminalista do país, mas se ele não for sensível a questões LGBTQIA+ ou de gênero, ele não é bom para o seu caso. Um especialista no assunto sabe que essa vítima pode ser questionada se bebeu ou não, sabe que o juiz provavelmente é machista e sabe como responder a isso.
Há demanda por mais advogados com conhecimentos específicos em diversidade? Esta é uma área em expansão na Justiça?
Sim. Há 10 anos, quando me chamavam para falar sobre gênero e sexualidade, não queriam me pagar, porque não viam essas áreas como uma especialidade. Como eu atendo vítimas voluntariamente e vim dos movimentos sociais, as pessoas achavam que fazia parte da minha militância. Sim, faz parte do meu ativismo conversar com coletivo de meninas do Grajaú, por exemplo, mas se você é uma farmacêutica multinacional e espera que eu dê uma aula sobre gênero e sexualidade para seus funcionários, não vai rolar. Estamos avançando, tem muita gente interessada nessa área, querendo se especializar, e isso me deixa muito feliz.
Fonte: UOL