Casos de feminicídio assustam população e levantam debate sobre a herança machista do país Existe um ditado popular no México que diz: “Cuerpo de mujer: peligro de muerte”. A frase parece música de Chico Buarque, mas o problema é real: mais de 34 mil mulheres foram assassinadas no México entre 1985 e 2009, de acordo com relato de grupos ligados à proteção da mulher. São casos que se configuram como feminicídios, crimes motivados por razões culturais que passaram por todas as etapas de violência, como discriminação, abuso, rebaixamento, agressão e morte. Ciudad Juárez, que fica no estado de Chihuahua, norte do México, é um desses lugares famosos pelo ódio à mulher. De 1993 a 2004, a Anistia Internacional reconheceu que foram mais de 370 mulheres assassinadas por crimes de ódio e mais de 400 desaparecidas. Já a Rede Mesa de Mujeres, localizada na cidade, denuncia que, de 1987 a 2012, foram 915 assassinadas. Uma data simbólica para a cidade foi 7 de novembro de 2001, quando oito corpos de mulheres jovens mortas apareceram em frente ao prédio da Associação das Maquiladoras. Tantas mortes entre mulheres, seguidas de impunidade aos autores dos crimes, fez com que parentes das vítimas de Ciudad Juárez formassem o Comitê das Mães e Familiares das Filhas Desaparecidas. Mas nem sempre os casos de feminicídio são denunciados ali. De acordo com a artista plástica Elina Chauvet, o medo que ronda a região formou uma massa de mulheres caladas, que não podiam protestar contra o assassinato ou desaparecimento de suas filhas, irmãs ou amigas, temerosas de se tornarem as próximas vítimas. “Em 2009, fiz uma exposição em Ciudad Juárez. Na época, tinha acabado de perder minha irmã, que fora morta por seu marido. Estava sensibilizada com o tema e revoltada com a impunidade do caso na minha própria família. Foi nesse contexto que me dei conta da gravidade do que se passa com as mulheres nessa cidade”, relata a pintora, que nasceu em Ciudad Juárez, mas se mudou já adulta em busca de uma cidade menos perigosa. Ainda em 2009, Elina retornou à cidade natal e começou a conversar com familiares das vítimas. “Descobri que o que acontece no município são também casos graves de estupro, violência sexual e doméstica, mas o que sai na mídia são somente as mortes e os desaparecimentos. Por ser uma cidade com uma mentalidade patriarcal, essas mulheres não denunciam a violência que sofrem por estigma social, além do medo. Se não se fala no assunto, é como se ele não acontecesse”, afirma. Para convidar as vítimas de todos os tipos de agressão em Ciudad Juárez a falarem sobre a sua realidade, a artista começou a pintar de vermelho sapatos femininos e distribuí-los pelas ruas da cidade. “Estruturei a obra dessa maneira para chamar a atenção das mulheres, para saberem que não estavam sozinhas, mesmo com a mídia ignorando-as ou as estereotipando.” A instalação começou com 33 pares de sapatos. Hoje, Elina recebe doações de calçados de todo o país e já alcançou centenas de pares em cada exposição realizada no último ano. “Minha obra estreitou meus laços com as mulheres da cidade. Muitas jovens que haviam sofridos abusos ou perseguições começaram a enviar seus próprios sapatos para serem expostos. Tiveram casos em que os familiares reconheceram os sapatos e suas donas. Eu estava promovendo, assim, o diálogo dentro das próprias casas”, conta a pintora. Mulheres no centro do fogo cruzado O perfil das vítimas de violência em Ciudad Juárez é certeiro: jovens entre 13 e 22 anos, estudantes e trabalhadoras e, em geral, pobres. A maneira como são executadas também apresenta um padrão: cativeiro prolongado, seguido de sadismo sexual, mutilação e asfixia. Em quase todos os casos, os corpos são abandonados em regiões periféricas e rurais. Há grupos que defendem que a coincidência nas mortes pode ir além de uma questão que envolva somente feminicídio. Quem já esteve na cidade, mesmo que de passagem, garante que a atmosfera do lugar é macabra. Essa é a opinião da socióloga Maribel Núñez, que viveu a adolescência ali e fez sua tese de mestrado sobre o local. “Morar em Ciudad Juárez é algo que pode custar a vida. Não teria como não estudá-la.” Maribel é de uma corrente de feministas e pesquisadores mexicanos que defende que os casos de feminicídios na cidade funcionam também como um “bode expiatório” para os demais problemas da região. “Os crimes na cidade foram cobertos de forma sensacionalista nos jornais. Retratavam essas mulheres com o péssimo nome de ‘Mortas de Juárez’, o que induzia a população a pensar que não tinham causa aparente”, relata a pesquisadora. Localizada na fronteira com o estado americano do Texas, Ciudad Juárez é um município problemático cultural e geograficamente. Além de ser uma região de fronteira e receber muitos estrangeiros e mexicanos de toda a parte do país, a região também é dominada por muitos grupos poderosos e de interesses distintos, como os narcotraficantes e os donos de latifúndios. “A fama da cidade é contraditória. Os crimes contra mulheres cometidos na região são extremamente bárbaros, mas não são os maiores em número no México. Cidades como Allende e Aguascalientes, localizadas em outras regiões do país, também apresentam casos de feminicídio. No Estado do México, por exemplo, esses assassinatos chegam a triplicar.” A influência de poderosos na região foi denunciada em 2003 pela repórter Graciela Atencio, do jornal La Jornada, um dos mais importantes do país. Na ocasião, a jornalista declarou em nota que poderia ser algo mais que coincidência o jornal não circular em Ciudad Juárez por problemas com o correio justamente no dia em que publicou trecho de um informe do FBI, que notificava a existência de um possível modo de operação em sequestros de jovens mulheres no município. Feminicídio no México: a origem do ódio a mulheres Nelly Lucero Lara, 28 anos e mestranda em Comunicação com foco em Pesquisas de Gênero, relembra como foi sua criação, dando pistas de como a formação machista ainda é algo forte no país. “Em casa, era proibido cortar o cabelo. Aos 13 anos, quando comecei a fazer juízo do que aquele costume representava, cortei eu mesma meu cabelo, bem curto. Lembro até hoje o espanto dos meus pais quando saí do quarto. Minha mãe gritava: ‘E se o seu cabelo não crescer nunca mais? Como fazemos?’”, relembra. A mestranda nasceu na Cidade do México, a muitos quilômetros de distância de Ciudad Juárez, mas não escapou do machismo. Segundo Nelly, isso acontece porque esse comportamento está disseminado em nível nacional, e é apoiado por instituições sociais como a mídia. “Somos educados pela cultura da telenovela, que vende a figura da mulher como uma cuidadora e serva presa ao ambiente do lar. São personagens que trabalham na casa de um homem rico, como empregada doméstica, babá ou cuidadora de idosos. No final, casam com o homem da casa, geralmente seu patrão, e passam de serva para senhora, mas sem evoluir na sua condição social”, explica. Vide histórias de personagens como Maria do Bairro, Esmeralda, Mari Mar, Maria Mercedes e tantas outras que também fizeram sucesso na América do Sul, vindas da televisão mexicana. A fala de Nelly se baseia nos estudos da antropóloga Marcela Lagarde y de los Ríos, um dos maiores nomes atuais em questão de feminismo no México e na América. A escritora defende que desde sempre foi imposto à mulher pertencer a cinco papéis sociais tradicionais: mãe-esposa, beata-freira, louca, presa e puta. Para cada papel social, a mulher estaria relacionada a uma instituição também tradicional: casa, Igreja, manicômio; prisão e rua; respectivamente. Logo, é condição histórica da mulher desempenhar qualquer um desses papéis, sendo que ser livre não era uma opção. Diz a autora em sua obra que a mulher é interpretada pela sociedade e criada como um ser social e cultural genérico, para “ser de alguém, de alguma coisa e para os outros”. Além de acadêmica e pesquisadora, Marcela Lagarde foi militante do Partido Comunista, forte no México no século passado, e deputada entre os anos de 2003 e 2006. Durante seu mandato, lutou pelos direitos das mulheres no país. Foi ela quem passou a exigir a classificação de “feminicídio” para as mortes em Ciudad Juárez. Isso quer dizer que, antes de 2003, toda morte na cidade era tratada como violência generalizada, o que prejudicou a evolução de estudos e investigações sobre proteção à mulher. A pesquisadora e antropóloga Patrícia Catañeda, coordenadora de um dos grupos mais importantes sobre Feminismo na Universidade Nacional Autônoma do México, Unam, explica o porquê. “Feminicídio é uma soma de outras várias formas de violência. É um caso extremo aplicado a uma condição de gênero.” Em linguagem direta, “uma morte brutal contra uma mulher em resposta ao seu direito de ser mulher”. Segundo Patrícia, já existem muitos estudos sobre os casos de violência extrema contra a mulher, mas o entendimento do conceito ainda é restrito. “O México é um país machista desde sempre, assim como toda a América. Isso quer dizer que o machismo não está ligado, necessariamente, ao feminicídio. Machistas existem no mundo todo, mas nem todos saem matando mulheres por aí. Seria muito superficial e ingênuo explicar o que se passa em Ciudad Juárez ou em qualquer outra parte do país por meio somente do machismo”, explica. O próprio machismo é mais complexo do que imaginamos. É o que afirma Fanchesca Gargalo, também antropóloga da Universidade Nacional Autônoma do México e escritora de 23 livros sobre feminismo na América Latina. Para a pesquisadora, o machismo é um comportamento institucionalizado, herança de uma mentalidade colonial ainda forte na área latino-americana do continente. “Trazemos da época do colonizador europeu a ideia de uma sociedade que somente funciona no formato da família tradicional, em que o homem é o centro das relações e a mulher é apenas uma peça complementar a essa estrutura.” Para Franchesca, o machismo da forma que existe no continente também é fruto de uma opção política. A pesquisadora relembra que as mulheres não votavam e não tinham voz na sociedade colonial. Não considerar a mulher como ser pensante era formar uma sociedade mais fácil de ser manipulada e com menos personagens sociais. “Para conter a massa de excluídos sociais, representados pela mulher, principalmente, a colonização colocou em prática uma educação baseada na violência”, afirma. “A violência com que grupos de narcotraficantes no México tratam mulheres na região de fronteira, por exemplo, é semelhante à maneira como os colonizadores tratavam as mulheres dessa terra 500 anos atrás”, compara. O feminismo no México atual Em razão do alto índice de feminicídios no México, pesquisadoras no país têm-se unido a uma corrente de estudos ligados ao feminismo. São escritoras, artistas e pesquisadoras que adotaram o termo feminista hoje no país. “O feminismo ainda é visto com ignorância pela sociedade. Para que isso não aconteça mais, a primeira imagem a desmistificar é a de que o feminismo não é o contrário de machismo. A segunda é que não reivindicamos um poder, ou uma inversão dele, por melhor dizer, mas lutamos para que sejamos reconhecidas como seres humanos”, explica Patrícia Castañeda. Para Franchesca Gargalo, ser feminista é uma postura ligada a uma conduta ética. “Os maiores pesquisadores e escritores feministas do México são pessoas que começaram a estudar mulheres antes mesmo de ter uma tese sobre elas. São profissionais que perceberam que havia algo de errado nessas relações. Aquilo não era humano”, opina a antropóloga. “Ser feminista não é significado de militância. Não sou militante, sou uma ativista a favor da mulher. Odeio a palavra ‘militar’, principalmente quando aplicada à América Latina”. Patrícia fecha a fala da amiga: “Dizer que alguém é feminista não é o mesmo que afirmar que essa pessoa é socialista ou anarquista. Feminismo não é sinônimo de ideologia, é uma postura ética”, finaliza. F Homens de um lado, mulheres do outro Depois de muitas ocorrências de abusos contra a mulher registrados no transporte público da Cidade do México, o governo resolveu separar homens de mulheres. Nos horários de pico no metrô, é estendida uma corda ou são colocadas placas gigantes que informam “Solo damas”. E as medidas de separação por gênero no México vão além: estão também no Parlamento do país. Em lei sobre cota de gênero, está prevista a reserva de 40% das cadeiras para mulheres no Congresso mexicano. Para Nelly, ambas as medidas não são a favor da mulher. “Se esperarmos que os homens respeitem as mulheres na condição de gênero e de sexualidade como resultado de uma mudança de comportamento cultural, podemos levar anos, décadas nessa espera. Se colocarmos barreiras físicas e normativas, a medida passa a ser pontual, mas reforça a distinção entre homens e mulheres. Ou seja, continuam sendo atos afirmativos e unidirecionais baseados na desigualdade.” Para a pesquisadora, a questão também é lógica. “E na rua, quando estão todos juntos e não temos como separar homens de mulheres, como vamos resolver a questão?” A antropóloga Patrícia comparte da opinião de Nelly. “São medidas extremas, tomadas em um momento de crise. Não são educativas e não favorecem a mudança de um comportamento cultural, apenas potencializa.” |
Fonte: RevistaForum.com.br
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