“Acordei de repente com um forte estampido dentro do quarto. Abri os olhos. Não vi ninguém. Tentei mexer-me, mas não consegui. Imediatamente, fechei os olhos e um só pensamento me ocorreu: “Meu Deus, o Marco me matou com um tiro”. Um gosto estranho de metal se fez sentir, forte, na minha boca, enquanto um borbulhamento nas minhas costas me deixou ainda mais assustada. Isso me fez permanecer com os olhos fechados, fingindo-me de morta, porque temia que Marco desse um segundo tiro.” Maria da Penha Fernandes em foto tirada para passaporte em viagem para a Argentina (Foto: Arquivo Pessoal) Por mais que a farmacêutica bioquímica Maria da Penha Fernandes, até então com 38 anos, estivesse acostumada com os gritos, as explosões de fúria e atitudes violentas de Marco Antônio Heredia Viveros, seu marido à época, ela custou a acreditar que aquele disparo tinha sido feito pelo homem que escolheu para compartilhar a vida e ser pai de suas três filhas. A partir daquela noite em meados de 1983 relatada no livro Sobrevivi… Posso contar, Maria da Penha, hoje com 71 anos, resistiu. “A minha luta foi tão grande que, hoje, essa parte [da agressão] para mim não tem mais nenhum sentido. Hoje existe uma lei que tem o meu nome e que está funcionando. A gente se alimenta com os resultados: eu vejo muitas mulheres lutando, muitos homens mais conscientes também. Há uma mudança, por mais que imperceptível para alguns”, disse. Maria da Penha ao lado das filhas, em 1983 (Foto: Arquivo Pessoal) Hoje, Penha se locomove com uma cadeira de rodas, e é protagonista da luta pelos direitos das mulheres no Brasil. Há dez anos, devido a sua persistência em buscar justiça, a primeira lei brasileira que visa combater a violência doméstica contra a mulher no País leva seu nome. Em entrevista ao HuffPost Brasil, mais de três décadas após ser atingida por um tiro de seu e ficar paraplégica, Maria da Penha afirma que todo o sofrimento foi transformado em algo muito maior: a luta pela garantia dos direitos das mulheres que sofrem com a violência no Brasil. HuffPost Brasil: Penha, você vê melhorias reais nos últimos dez anos de Lei Maria da Penha? Maria da Penha Fernandes: Sim. Eu acho que no momento em que você tem uma lei e políticas públicas feitas a partir dela, as mulheres passam, sim, a se conscientizar e lutar contra a violência doméstica. Tanto, que o número de denúncias aumentou neste período. Isso não quer dizer que a violência cresceu, mas sim, que as mulheres estão falando mais sobre isso. O que falta para que as mulheres sejam totalmente amparadas pela lei? Eu acho que reforçar a importância das políticas públicas é muito importante. É muito importante, ainda, que o gestor público se comprometa com a causa. A gente sabe que o número de denúncias aumentou nesses dez anos, mas o número de mulheres que ainda são violentadas é bem maior – e muitas vezes é um número que a gente desconhece. Muitas mulheres que vivem em locais remotos do País ainda não tem acesso ao que a lei pode oferecer. A maioria delas mulheres ainda não tem coragem e nem sabe como denunciar. Por que ainda é tão difícil falar sobre violência contra a mulher no Brasil? Eu acredito que é porque é um assunto que nunca foi debatido da forma como está sendo atualmente, né? Antes da lei, as feministas, as pessoas mais intelectualizadas e ligadas aos movimentos sociais falavam sobre isso de forma isolada. Mas, com a lei, eu acredito que essa conscientização aumentou. E aumentou o interesse das mulheres em saber como sair dessa situação. A principal finalidade da lei não é de punir os homens, como muitos dizem. É de punir o homem agressor. Além proteger a mulher da violência doméstica, e avisá-la de que ela tem direitos. O agressor precisa entender que a mulher é uma pessoa. “A violência doméstica contra a mulher obedece a um ciclo, devidamente comprovado, que se caracteriza pelo “pedido de perdão” que o agressor faz à vítima, prometendo que nunca mais aquilo vai acontecer. Nessa fase, a mulher é mimoseada pelo companheiro e passa a acreditar que violências não irão mais acontecer. Foi num desses instantes de esperança que engravidei, mais uma vez, de nossa terceira filha”. E qual é a forma de “cuidar” também do agressor? É muito importante o atendimento ao agressor. Muitos repetem a educação que tiveram e, por isso, se tornam agressores. No momento em que esse homem é preso, ele não se acha responsável pelo crime, porque foi educado para tratar as mulheres daquela forma. Precisa haver essa desconstrução. O Instituto Maria da Penha luta para que, além das políticas públicas ligadas à lei, haja uma conscientização e a desconstrução da cultura machista que tanto maltrata as mulheres. Mas você não acha que ainda há muita resistência tanto em quem aplica a lei, quanto com quem precisa deixar de ser machista? Sim. Tanto que os agressores continuam agredindo, né? Um exemplo: você veja que, todo policial, ao ser chamado para acudir uma mulher vítima de violência ele é orientado e treinado para prender o agressor em flagrante. Mas o que acontece? Muitos policiais deixam de prender e aconselham o casal. Isso não é correto. Eles não tem que perguntar nada. Eles tem que prender o agressor em flagrante. E quando isso não acontece, as mulheres perdem confiança no poder público. Porque a lei diz uma coisa, mas o Estado não cumpre o que é determinado. Maria da Penha atualmente (Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil) E qual a recomendação, nesse caso? Que a própria comunidade, os vizinhos, ou até a vítima ligue para o 180 e comunique que o policial chegou ao local e não prendeu o agressor. O Estado tem que cumprir o seu papel. Você acha que vivemos um retrocesso no Brasil em relação aos direitos das mulheres? Eu acho que as mulheres precisam ser representadas por mulheres. Isso é muito importante. Infelizmente, não temos mais a SPM (Secretaria de Políticas para as Mulheres), agora ela está dentro de uma outra pasta e é lamentável que isso tenha acontecido. Eu espero que muito em breve isso seja reestabelecido. Porque garantir os direitos das mulheres é muito importante para a paz no País. O que a gente quer é que os direitos das mulheres sejam reconhecidos e a gente saiba onde buscar ajuda em todos os momentos. A gente foi prejudicada com todo esse cenário político atual. A recente aprovação de uma alteração na Lei Maria da Penha é o reflexo disso? Não acho que seja um reflexo, mas é algo que precisa ser revisto. De início eu entendi que seria uma coisa positiva. Mas é inconstitucional. O policial não pode fazer as vezes do poder Judiciário. Cada qual com seu cada qual. A lei não pode perder a sua força e, para qualquer alteração é preciso que as ONGs e entidades que criaram a lei estejam envolvidas no debate. E isso não aconteceu. A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) aprovou, em 29 de junho, um projeto de lei da Câmara (PLC 7/2016) que altera a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) para permitir ao delegado de polícia conceder medidas protetivas de urgência a mulheres vítimas de violência doméstica e a seus dependentes. O parecer favorável a essa e outras mudanças foi apresentado pelo relator, senador Aloysio Nunes (PSDB-SP). A proposta segue, agora, para votação no Plenário do Senado. O que você espera para os próximos dez anos de Lei Maria da Penha? Olha, eu torço demais para que a visibilidade da lei aumente. Que os gestores públicos ajudem a garantir um futuro sem violência para as nossas jovens adolescentes, crianças, meninas. A atitude desses gestores é importante para que a Lei seja aplicada. No momento em que há um compromisso com a causa, há um compromisso — e a gente fala com muito otimismo disso — para acabar com a violência doméstica. Eu espero que nos próximos dez anos a gente tenha avançado nesse sentido: com a colaboração e conscientização dos gestores públicos. Em 1963, quando foi eleita Rainha dos Calouros na Faculdade de Farmácia (Foto: Arquivo Pessoal) Como você olha para o passado, Penha? Olha, foram 19 anos. Tem vezes em que eu ainda tenho aquela antiga sensação comigo. Até chegar à decisão final da OEA (Organização dos Estados Americanos), quando o Brasil foi condenado internacionalmente por não prosseguir com o meu caso, eu não desansei. Eu queria muito que ele fosse punido pelo crime que cometeu. E ele foi julgado duas vezes e colocado em liberdade. A minha mágoa era muito grande. Quer dizer, é horrível. Como é que a pessoa vai a julgamento, o advogado entra com recurso, e ele não é punido? A punição dele foi muito significativa diante da lesão que ele me provocou. Em compensação, a minha luta foi tão grande que, hoje, essa parte para mim não tem mais nenhum sentido. Hoje existe uma lei que tem o meu nome e que está funcionando. Quando saiu o resultado do relatório da OEA, foi um momento importantíssimo na vida das mulheres e na minha vida em particular. Estava registrada a incompetência do poder judiciário no Brasil. “É cruel e atormentador o torvelinho de emoções que somos submetidas, como se um redemoinho nos envolvesse e nos levasse ao fundo, tirando de nós toda a possibilidade de defesa. Falta-nos firmeza pessoal para enfrentarmos momentos e situações de violência, ou somos premidas pelo medo e vergonha de nos expormos?” Você, hoje, se sente, de certa forma, “aprisionada” pela cadeira de rodas? Existem momentos em que, sim, eu sou aprisionada. Porque existem coisas que eu não posso mais fazer sozinha. Eu sempre preciso de alguém comigo. Mas queria dizer o seguinte: eu não me concentro na dificuldade, a minha cabeça funciona muito bem. Todo o meu sofrimento se transformou em uma luta muito grande. A gente se alimenta dos resultados: eu vejo muitas mulheres lutando e muitos homens mais conscientes também. Há uma mudança, por mais que seja imperceptível por alguns. O que você costuma escutar de outras mulheres que já sofreram violência? A gente sente, nas palestras, depois que a gente conversa, que as mulheres estão mais conscientes da violência e de como sair dela. Eu escuto muito que “se a lei já existisse há mais tempo, ela não teria apanhado tanto”, etc. É muito difícil, mas gratificante ao mesmo tempo. Maria da Penha (Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil) Ao longo da sua trajetória, você pensou em desistir em algum momento? Quando, no segundo julgamento, ele não foi condenado, eu quis parar de lutar. Eu desanimei. E só pensava nas minhas filhas. Mas tive a ideia de levar o processo para frente. Fiz o livro Sobrevivi… Posso contar, com todas as etapas do processo e todas as contradições. E partir daí, esse livro criou força e chegou até a OEA. Então, eu recuei na luta, por tristeza, mas depois de alguns meses essa foi a minha vitória: o livro. “Com tudo inerte em mim, como sequela da lesão medular, o peso do coração… E do mais profundo de mim mesma, com força de promessa, nascia-me uma esperança: sobreviverei.” O que te fez permanecer casada, mesmo depois de tantas agressões? Falta de ação. Não existia nada de apoio à mulher naquela época. Não se falava sobre isso. Era 1983, naquela época não existia nenhuma delegacia da mulher. Na verdade, eu nunca tomei uma decisão de me separar porque eu temia pela minha vida. E o que te fez continuar lutando depois dele? Justiça. Quando a gente sofre um dano, a gente quer ser ressarcida. A gente quer que o outro pague pelo mal que fez. É a lógica: ele cometeu um crime e precisa ser punido. E também o amor maior que eu tinha: as minhas filhas. Elas eram a minha responsabilidade. Elas foram vítimas dele, ele era violento com elas também. Você acha que algum dia viveremos em uma sociedade que maltrate menos as mulheres? Eu espero que sim. Eu trabalho para isso. Você se considera feminista? Olha, eu nunca parei para pensar. Mas eu acho que o que eu estou fazendo por aí tem muito disso [risos]. O que você diria a outras mulheres que sofreram violência? Olhe, eu diria: ‘Denuncie!’. E falaria para não recuar. Elas têm seus direitos garantidos por Lei. Não silencie! “Foi só um empurrãozinho”, “Ele só estava irritado com alguma coisa do trabalho e descontou em mim”, “Já levei um tapa, mas faz parte do relacionamento”. Você já disse alguma dessas frases ou já ouviu alguma mulher dizer? Por medo ou vergonha, muitas mulheres que sofrem algum tipo de violência, seja física, sexual ou psicológica, continuam caladas. Desde 2005, a Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180, funciona em todo o Brasil e auxilia mulheres em situação de violência 24 horas por dia, sete dias por semana. O próximo passo é procurar uma Delegacia da Mulher ou Delegacia de Defesa da Mulher. O Instituto Patrícia Galvão, referência na defesa da mulher, tem uma página completa com endereços no Brasil. Andréa Martinelli |
Fonte: HUFFPOST
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