Depois de 35 anos da promulgação da Constituição, a deputada constituinte diz considerar ‘a coisa mais importante’ a definição de regras em defesa da democracia
Integrante da Assembleia Nacional Constituinte, Lídice da Mata (PSB-BA) atua, neste ano de 2023, na mesma posição em que estava na década de 80. Como deputada federal, participa rotineiramente de eventuais debates de mudanças à Constituição Federal, que ajudou a escrever e completou 35 anos em 5 de outubro. A parlamentar cita o ato de promulgação como um momento marcante à época.
Hoje, mais de três décadas depois, avalia que a Constituição garantiu direitos a mulhetes e abriu o caminho para condições igualitárias a dos homens em diferentes campos, como o profissional. Lídice vê, ainda, desafios iniciados em 1988 e que ainda estão em pauta, como o debate sobre propriedade de terras. A deputada vê como grande acerto a defesa da democracia.
“O constituinte foi sábio em estabelecer algumas emendas que são cláusulas pétreas. Eu considero a coisa mais importante ter estabelecido as regras do Estado Democrático no Brasil”, apontou, frisando ainda que a Constituição Cidadã teve grande participação popular e que a qualidade do debate de 1988 para cá reflete o resultado do direito ao voto. “Isso quer dizer que a população tem que estar atenta à escolha de quem votar”, frisou.
Celebramos 35 anos da Constituição Federal, que marcou também o fim de um regime militar. A senhora participou de todo processo. Para a senhora, qual foi o momento mais marcante na elaboração da Constituição de 1988?
Olha, eu não tenho um momento mais marcante, porque foram muitos momentos importantes que tivemos aqui com votações, com debates que hoje fazem parte do texto constitucional. Mas obviamente que o final da Constituição, o momento de sua promulgação, o ato de sua promulgação, foi um momento de especial emoção, digamos assim.
Quais temas eram os prioritários e como foi o debate de ideias?
Os temas prioritários variam de acordo com cada objetivo de cada um que participou da Constituição. No nosso caso, que viemos com a bandeira dos direitos da mulher, que tivemos uma participação grande na chamada “bancada do batom”, as questões essenciais da carta que nós trouxemos do movimento social de mulheres, do Conselho Nacional de Mulheres, teve uma provação de mais de 80% daqueles pleitos que nós tínhamos.
Portanto, não há como não levar em conta que o direito da mulher no Brasil foi antes e depois da Constituição de 88. A Constituição de 88 foi a primeira Constituição do nosso país a consagrar no seu texto a igualdade de direitos entre homens e mulheres, e isso é fundamental. Até então, em toda a história política do nosso país, isso nunca tinha acontecido.
Então, nós tivemos o direito de voto em 1934, uma participação pequena de mulheres de 34 até a ditadura militar e até a Constituinte, digamos assim. E na Constituinte nós passamos a ser 26, que era um número pequeno em relação a proporcionalidade dos homens, mas muito significativo, porque nunca chegamos a ter seis deputadas federais em todos esses anos de conquista do direito de voto feminino. Portanto a Constituição é um marco da presença da mulher na política, no Congresso Nacional, e um marco do que está inserido na Constituição como direito da mulher.
Na avaliação da senhora, o que foi mais difícil até sair o texto totalmente aprovado?
Cada proposta teve sua dificuldade de negociação e teve sua aprovação. Nós tivemos debates muito ricos e difíceis aqui na Câmara, como o que discutiu o direito da propriedade privada, e depois imediatamente a ideia do conteúdo social da propriedade, o conceito básico disso. Encerrou em um grande debate que até hoje é central na sociedade brasileira, que é justamente a posse da terra para os trabalhadores rurais, para aqueles que trabalham na terra, para aqueles que vivem no campo. E a terra urbana, que também é foco de grande debate nas grandes cidades brasileiras. Sem dúvida nenhuma, é um grande tema, que é a ocupação da terra, a propriedade da terra e a disputa dos pobres pela terra e pela moradia.
Com a Constituição de 1988, o Poder Legislativo, que antes era chancelador formal dos atos do Executivo, ganhou mais competências, como a de fiscalização. Que outras atribuições a senhora considera importantes e que contribuíram para o Estado Democrático de Direito que temos hoje?
Na essência, nós tínhamos uma ditadura militar. Portanto, a Constituição se adequou àquela ditadura e retirou os direitos, as atribuições do Congresso Nacional como fiscalizador, como aprovador do Orçamento da União, e sua participação na vida nacional. A Constituinte de 88 não só devolve esse protagonismo da Câmara e do Senado Federal, ou seja do Congresso Nacional, como redefine, afirma suas atribuições que estão cada vez mais fortes na medida em que é impossível governar em um presidencialismo, como é no Brasil, sem o apoio do Parlamento.
Essa é uma questão central do poder político em qualquer país. Nos países parlamentaristas, o parlamento é o próprio governo, do ponto de vista de que sai dali, da maioria, o chefe do gabinete, que é quem dirige a nação. No Brasil não é assim. Nós temos o presidente da República, uma certa concentração de poder no Poder Executivo, mas um presidente da República que não consegue ter a maioria no Congresso, terá grandes dificuldades para governar.
Muito se fala de que o Congresso se tornou ao longo dos anos uma fábrica de leis. Mas a falta efetiva de participação dos cidadãos nessas discussões e a qualidade do debate são sempre questionados. A senhora avalia que a parte Cidadã foi se perdendo um pouco durante o tempo? É necessário fazer esse resgate para se aproximar mais da população?
A partir da Constituinte, que foi um grande momento de participação popular, por isso ela é chamada de Constituição Cidadã, porque ela resultou de um processo intenso de participação popular, você tem outros espaços que vão sendo abertos para a participação popular. Como, por exemplo, na Câmara dos Deputados existe a Comissão de Participação Popular, que recebe a contribuição da população para elaboração de projetos de lei.
Na Constituição ficou definido que é possível você ter projetos de lei construídos pela sociedade, e não de autoria de um deputado, desde que ele alcançasse na época, eu acho que 1 milhão de assinaturas ou entidades correspondentes a isto. No entanto, essa legislação que decorreu daí já foi já foi modificada e hoje precisa de um número menor de assinaturas para trazer um projeto de lei até aqui a Câmara.
A qualidade dos debates depende da visão de cada um, porque se a pessoa se sente representada por quem está levando sua ideia, vai achar que é a qualidade do debate está positiva. No Brasil, no entanto, o sistema eleitoral é que resulta, é que exprime essa qualidade do debate, porque ele que vai definindo o tipo de deputado ou deputada que você vai trazer para a Câmara dos Deputados. Então a qualidade debate é o resultado direto do voto do povo. Isso quer dizer que a população tem que estar atenta à escolha de quem votar.
Sabemos que ainda tem muito da Constituição que precisa ser implementado na prática para sua efetivação plena, inclusive com projetos de regulamentação sendo aprovados no Congresso. Nesse contexto, qual desafio a senhora destacaria?
Eu acho que a Constituição foi Cidadã, foi uma Constituição participativa, e nunca foi uma unanimidade, como nenhuma Constituição chega a ser unanimidade. Foi a expressão de uma sociedade que buscava por liberdade, que tinha o ideário de conquistar um país mais justo, mais igualitário, que pudesse abrir portas para a construção de uma sociedade que permita uma participação igualitária de todo o povo na saúde, um acesso à saúde, educação e etc., e isso refletiu um projeto de Brasil, um projeto que o povo escolheu para o Brasil.
Agora, recentemente, depois disso, os segmentos que foram minoritários naquela Constituição insistiram em combatê-la de forma efetiva e hoje em dia, inclusive, expressam isso através de muitas emendas. Mas o constituinte foi sábio em estabelecer algumas emendas que são cláusulas pétreas. Por exemplo, a democracia é uma cláusula pétrea. Eu considero sempre que a coisa mais importante dessa Constituição é ter estabelecido as regras do Estado Democrático no Brasil.
Mas, de forma geral, aquele esforço na década de 80 deu certo? Qual sua avaliação hoje sobre o cumprimento da Constituição?
Eu não tenho dúvida de que deu certo. Essa foi a Constituição que estabeleceu as regras do Estado Democrático de Direito no Brasil. Então ela deu certo. Ela não deu certo para quem não concorda com a democracia, com as instituições democráticas. E é claro, a disputa, por exemplo, do direito à propriedade privada, da terra etc., continua a ser um debate na sociedade brasileira e, portanto, continua se expressar. Mas a Constituição, o constituinte e o povo brasileiro definiram um caminho. Deram direito à propriedade, mas do outro lado exigem a função social da terra.
E voltando um pouco no tempo. Com a cabeça de hoje e indo para 35 anos atrás, o que a senhora faria diferente?
Não. A Constituição reflete um projeto de país. Portanto, ela é permanente.
E quais são os pontos que a senhora avalia que podemos avançar com emendas e mais discussões?
Alguns pontos podem avançar, mas eu sou uma crítica das tentativas de mudança permanente da Constituição, no fundo, para retroagir nos direitos e garantias. A constituição garantiu, por exemplo, o direito ao voto aos 16 anos. A Constituição garantiu pela primeira vez que a criança fosse vista como sujeito de direitos, mas não garantiu nenhuma outra proposição a respeito da juventude. Apesar de ter garantido o direito ao voto, não avançou em uma política que indicasse uma política pública para a juventude. Isso também não precisa ser muito detalhado na Constituição, mas ficou essa lacuna. Depois, isso foi já corrigido.
Tem algumas questões que ao longo do tempo a gente vai sentindo a necessidade de colocar na Constituição para garantir, para assegurar. É o caso da Lei Maria da Penha, por exemplo, que é uma lei que não está na Constituição, mas sempre que vem à tona a discussão sobre a violência contra a mulher, ela vai se agregando e vai se somando a um conceito mais constitucional.
É o caso do direito a salário igual para função igual, que não se conseguia aplicar de fato porque há uma resistência do capital em fazer isso, uma resistência de alguns setores da sociedade que continuam sustentando o machismo na sociedade. Aí veio o presidente da República e o Congresso Nacional e fizeram uma legislação que mantém a equidade de salário entre homens e mulheres em funções iguais.