Sem benefícios em empresas, famílias recorrem à comida congelada, escola em tempo integral e diaristas A regulamentação ainda está incompleta, direitos como o FGTS e o seguro-desemprego não saíram do papel, mas a vida das famílias brasileiras de classes média e alta já não é mais a mesma desde a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 72, conhecida como PEC das Domésticas, há um ano. O custo do serviço ficou mais alto e a formalização de mensalistas aumentou: de 48% para 51%. Como os custos do serviço doméstico aumentaram, muitas passaram a substituir a empregada fixa tradicional por outros serviços: como comida congelada, creche em horário integral, academia com serviços para crianças e uso de uma ou mais diaristas. A bancária Rachel Gonçalves, 35 anos, foi uma das que se enquadraram na lei: instituiu o livro de ponto e pagava em dia as horas extras da doméstica Kátia de Paiva. Um ano depois, ela conta que o livro de ponto, na prática, durou apenas um mês. Logo foi abandonado com a rotina muito intensa do trabalho de Rachel. Em razão das muitas horas extras — que resultavam num acréscimo de R$ 600 ao salário de R$ 1.100 mensais — ela teve de demitir Kátia três meses depois das mudanças na lei. Colocou as duas filhas de 3 e 5 anos no horário integral máximo na escola, contratou uma diarista uma vez por semana e hoje compra comida congelada feita por… Kátia. A ex-empregada também faz as vezes de folguista eventual, quando Rachel precisa do serviço. Atualmente, Kátia trabalha como acompanhante da mãe de Rachel. — A lei, na verdade, não sei nem se está funcionando. A gente tenta fazer com que funcione. Realmente aqui aumentou muito o custo, ficou uma questão de a gente saber o que fazer. Hoje eu estou mais estressada, brigo mais com as crianças, mas estou mais próxima delas — conta. Sobre a lei ainda incompleta, Rachel tem críticas e acha que ela trouxe sofrimento em vão: — O FGTS que viria nem foi regularizado ainda, e a gente nem sabe quando vai ser. Foi um alarde de momento, e agora ficou tudo meio vago — afirma Rachel. Um ano depois das mudanças, as famílias tiveram que dar o seu próprio jeito. Para as mulheres que trabalham fora, as dificuldades são maiores. Apenas 5% das grandes empresas no país tinham creche no local de trabalho. No caso de empresas que fornecem auxílio-creche — 92% têm o benefício previsto em acordo coletivo —, apenas 23% das empresas estendem o benefício para os homens, aponta pesquisa da consultoria Mercer Marsh com 446 empresas em 2013. Após o medo, folha de ponto e hora extraA experiência da doméstica Dalva Aparecida da Silva, de 57 anos, com a lei foi positiva. Desde que as primeiras notícias sobre as mudanças surgiram, ela começou a guardar os recortes de jornais para entender o assunto. Um ano depois, a rotina continua a mesma: a de se informar sobre seus direitos. Ela trabalha há 12 anos na mesma casa em Ipanema e tem um bom relacionamento com o patrão, mas estes fatores não a livraram do medo de perder o emprego na época. Ela se lembra de quando o patrão a chamou para conversar. — Ele me disse que minha rotina iria mudar. E mudou. Hoje, Dalva assina diariamente a folha de ponto, é remunerada pelas horas extras e recebe o FGTS, mesmo sem estar regulamentado. — Muitas amigas ainda estão com medo do desemprego. Uma largou o serviço de 16 anos porque a patroa dela não aceitou a nova lei, mas hoje está empregada e dentro da nova legislação. Outras viraram diaristas porque tiveram dificuldade de negociar — afirma. Para a economista especializada em gênero Hildete Pereira de Melo da Universidade Federal Fluminense (UFF), relações mais profissionais deixaram um saldo favorável para o emprego feminino. — Mesmo inconcluso, o debate foi positivo. O futuro indica que os homens vão ter que participar mais. A mudança de costume, porém, é bem mais lenta. Não adianta as feministas ficarem reclamando, tem que doer no bolso — afirma. Já a antropóloga e escritora Mirian Goldenberg observa que as famílias instituíram novos acordos, diminuindo a frequência do uso do serviço e até “dividindo” a empregada entre os membros ao longo da semana. Mas avalia que a figura da empregada ainda é muito presente socialmente. — Não mudou a mentalidade de que é impossível viver sem a empregada, e que seria necessário uma maior participação das pessoas da família nos cuidados com a casa, mas alguns arranjos começaram a ser feitos — afirma. Na casa do psicanalista Nahman Armony, no Flamengo, a solução encontrada para fugir da burocracia foi trocar a empregada fixa por duas diaristas. Hoje, ele diz que não se arrepende. — Acabou tirando uma dor de cabeça e um gasto a mais. Estamos passando de um regime familiar para o de contrato. Acho apenas que talvez tenha sido uma passagem um pouco abrupta — considera. As estatísticas mostram que o número de pessoas empregadas em serviços domésticos — mensalistas e diaristas — está em queda. No ano passado, o total de domésticos ocupados encolheu 7,8% em relação a 2012. As domésticas tiveram o maior aumento de renda entre as categorias, alta de 6,2%, quando a renda média cresceu 1,8% no ano passado. Jornada foi a principal mudançaA jornada fixa de 44 horas semanais foi um dos principais ganhos da legislação para a categoria. Na capital paulista, a jornada controlada trouxe uma nova rotina à casa da decoradora Alessandra Linhares Ferreira, de 41 anos, na Zona Sul. Como precisa que a empregada Meyriane Aguiar Pereira esteja disponível no fim da tarde, para receber as crianças que chegam da escola, resolveu adiar a hora de entrada da empregada de 8h para 10h. Com mais folga de horário, Meyriane aproveitou para se matricular num curso de manicure. Quer aproveitar para conseguir um dinheiro extra com o serviço. — Mas o meu sonho mesmo é estudar gastronomia — conta a doméstica. Meyriane diz que já chegou a trabalhar das 6h até a meia-noite em outro emprego. Apesar de trabalhar como doméstica há seis anos, o primeiro registro ocorreu há dois anos e meio. — Antes, eu tinha vergonha. A lei ajudou muito, mas ainda precisa melhorar o salário. O trabalho é difícil, repetitivo. E muitos patrões precisam enxergar a doméstica como um ser humano — afirma Meyriane. Para a decoradora, a nova lei obriga patrão e empregada a ter uma “relação de gente”. — Eu tenho coisas para fazer, ela também. Somos iguais. Para quem não enxergava isso, a lei teve esse papel — diz Alessandra. |
Fonte: O Globo
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