“Como vocês vivem sem empregada?” Nos meus mais de dez anos em Londres, a pergunta já me foi feita inúmeras vezes por brasileiros que descobrem que, apesar de ter dois filhos e trabalhar em tempo integral, não conto com a supostamente indispensável ajuda doméstica. A realidade de minha família, motivo de espanto para muitos amigos “viajados”, é compartilhada pela classe média do “primeiro mundo”. Aqui, causo espanto quando conto de babás que acordam no meio da noite para dar leite a bebês, da figura da “folguista” ou dos uniformes brancos que diferenciam mães de babás em parques, festas e restaurantes. Mas, voltando à pergunta inicial, minha receita de “sobrevivência” tem três ingredientes: uma jornada fixa no trabalho, uma divisão igualitária das tarefas domésticas com meu marido e a adoção de padrões de arrumação e limpeza “mais ingleses”. Nossa casa não tem o delicioso cheiro artificial de limpeza das casas brasileiras, roupas não brotam dobradas das gavetas como por mágica e o banheiro só brilha às segundas-feiras, quando vem a faxineira por quatro horas que custam cerca de R$ 100. Conheço muitas famílias, no entanto, que não têm faxineira. Têm dinheiro para isso, mas nem chegam a considerar a possibilidade. Lá em casa, eu geralmente faço a comida e meu marido cuida da cozinha. Com as roupas, o trato é ele pendurar e eu dobrar e guardar. Digo “o trato” porque, na prática, há sempre problemas. Ele me acusa de fazer menos que ele e, curiosamente, é alvo da mesma acusação. O trato com o trabalho, no entanto, é mais fundamental e menos sujeito a contestações. Aceitei uma promoção recente com uma condição: que pudesse trabalhar das 7h às 15h e tivesse tempo de buscar meus filhos na escola. A BBC aceitou meu pedido e, apesar do dia corrido (muitas vezes literalmente corrido pelas ruas de Londres para vencer o relógio), consigo chegar diariamente a tempo para minha segunda jornada acompanhando o período pós-escola dos meus dois filhos, Marina, de 8 anos, e Marc, de quarto. Não preciso, portanto, terceirizar a criação de meus filhos. Sou eu que converso sobre dinossauros com o Marc e que treino com a Marina estratégias de defesa contra os bullies da escola. E meu acordo, conhecido aqui como jornada flexível, não é algo fora do comum e inclui também o chamado part-time, ou seja, frações do tradicional tempo integral geralmente com reduções proporcionais no salário. O patrão não é obrigado a aceitar, mas existe uma abertura cada vez maior para isso. Recentemente, ilustrando como essa modalidade vem ganhando projeção, a consultoria Ernst Young publicou um ranking com 50 executivos de destaque que adotaram a jornada flexível. A maioria na lista é do sexo feminino, mas a mudança está de longe de dizer respeito apenas a mulheres. Na semana passada, por exemplo, assisti a uma palestra de um desses superexecutivos em que ele mencionou -sem qualquer constrangimento- que passaria em breve a trabalhar de segunda a quinta. Queria passar mais tempo com o filho. Disse ainda que faz questão de sair na hora marcada para que os funcionários vejam que longas jornadas não são parâmetro de desempenho. Concluiu dizendo que não vive para trabalhar, mas, sim, trabalha para viver. Ele parece ilustrar uma mudança de mentalidade que se afasta do “work till you drop” (trabalhe até cair), que veio com a onda neoliberal dos anos 1980, e se aproxima de uma visão mais pós-moderna das relações de trabalho que valoriza a qualidade e não apenas a quantidade. Deve gerar um certo espanto no Brasil e ainda é novidade por aqui. Mas foi fundamental para que eu conseguisse um equilíbrio entre vida familiar e profissional. A brasileira Silvia Salek, editora-chefe da BBC Brasil, no prédio em que trabalha em Londres, onde vive há dez anos. |
Fonte: Folha de São Paulo
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