O governo de Luiz Inácio Lula da Silva reposicionou o Brasil no debate sobre o direito das mulheres nos fóruns internacionais, adotando uma postura de denúncia da misoginia e inaugurando uma nova política para o tema no exterior.
Nesta quarta-feira, em Buenos Aires, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, fez parte de um esforço do Mercosul para elaborar uma lista de dez recomendações de enfrentamento à violência política de gênero e à misoginia. Essa foi a primeira iniciativa internacional da nova pasta que, internamente, havia iniciado um processo de afastamento de todas as políticas criadas nos últimos quatro anos e das alianças fechadas pelo governo de Jair Bolsonaro com parceiros ultraconservadores no mundo.
Por sugestão da delegação brasileira, foi incluído no texto final do encontro do Mercosul o conceito da misoginia enquanto manifestação do ódio às mulheres, que visa expulsá-las dos espaços de poder.
A postura representa uma ruptura em comparação às políticas adotadas nos últimos quatro anos pela então ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, hoje senadora.
“Para o Brasil e para as mulheres brasileiras, este encontro é um marco histórico”, disse Cida Gonçalves, lembrando que uma mulher é morta no Brasil a cada 6 horas pelo fato de ser mulher. “Em 2023, após seis anos, retomamos o diálogo internacional de forma soberana, altiva e plural”, afirmou.
“O período do governo de extrema direita em nosso país foi de imenso retrocesso em todos os setores”, destacou. Segundo ela, o recuo na garantia e conquista de direitos das mulheres foi “especialmente avassalador, até porque a pauta de gênero é uma das que está no centro da guerra cultural e do interesse desse campo político”.
“Foi um período marcado pela desinformação, pelo desmantelamento dos serviços de atendimento a mulheres em situação de violência, pela baixa ou problemática destinação de recursos para o enfrentamento às desigualdades de gênero e pela disputa de pautas na sociedade sob um olhar preconceituoso, excludente e extremamente conservador”, disse.
“As mulheres voltaram a ser colocadas em lugares pré-determinados e instadas a exercer exclusivamente os papéis desses espaços: mãe, cuidadora do lar, sem opinião ou tomada de decisão”, denunciou.
Novos compromissos
Pelo novo documento, o Brasil e o Mercosul alertam que “a misoginia e a violência de gênero contra todas as mulheres políticas, candidatas, administradoras eleitorais e na vida pública é um fenômeno preocupante em nível mundial e, em particular, na região” e que a participação das mulheres na política e a misoginia e a violência de gênero na vida política são temas “intimamente interligados”.
“A violência de gênero e a misoginia impedem que todas as mulheres exerçam seus direitos civis e políticos em plenitude, em particular, desencoraja a participação em igualdade de condições na vida pública, política e espaços de tomada de decisões, incidindo negativamente nas democracias dos povos”, diz o documento.
Ao aderir à recomendação, os países se comprometem a “adotar medidas orientadas a prevenir, sancionar e erradicar a violência de gênero e a misoginia na vida política”, articulando alianças com partidos políticos e trabalhando para que sejam sancionadas legislações pela garantia de vagas para mulheres e paridade de gênero em níveis nacional, estadual e municipal, entre outras medidas.
As recomendações foram aprovadas por consenso pelas ministras das Mulheres de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, com apoio dos países associados presentes Bolívia, Chile, Equador e Peru, durante a XXI Reunião de Ministras e Altas Autoridades da Mulher do Mercosul (RMAAM), em Buenos Aires, na Argentina.
Em seu discurso no evento, a ministra das Mulheres destacou a baixa representatividade das mulheres nos espaços da política institucional no Brasil e expôs dados de violência política de gênero no país.
Ela ainda alertou sobre o problema da misoginia na internet, reproduzido de forma sistemática em canais monetizados pelas plataformas de redes sociais e como tem feito para debater o tema junto à sociedade.
“Não podemos aceitar que mulheres sejam silenciadas por meio de ameaças, desqualificações, ‘cancelamentos’, injúrias, calúnias e difamações, e, no limite mais extremo da misoginia, por meio do feminicídio”, afirmou.
Para o encontro, duas representantes da Câmara Técnica Internacional do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), órgão colegiado do Ministério das Mulheres que comporta entidades da sociedade civil, fizeram parte da delegação brasileira.
“Fomos impedidas de participar de diálogos internacionais durante seis anos, não apenas do Mercosul, mas de qualquer evento em que o Brasil estava presente. Agora estamos vivenciando uma nova era para o Brasil no âmbito dos direitos de gênero”, disse Laudelina Inácio da Silva, da Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica.
“A gente foi alijada desse processo político desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. A gente não teve participação política efetiva. A sociedade civil foi podada de participar”, completou Adriana Rosa, que representa o Fórum de Mulheres.
Ruptura
Em seu discurso, a nova ministra ainda listou as ações que adotou desde o começo do governo para se distanciar da postura do governo Bolsonaro. São elas:
- Em 17 de janeiro, como demonstração do compromisso com a igualdade de gênero no âmbito internacional, o Brasil anunciou seu desligamento da Declaração do Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família, documento que contém entendimento limitativo dos direitos sexuais e reprodutivos e do conceito de família.
- Adesão ao Compromisso de Santiago (“Um instrumento regional para responder à crise da COVID-19 com igualdade de gênero”), e à Declaração do Panamá (“Construindo pontes para um novo pacto social e econômico gerido por mulheres”).
- Articulação de um pacote de medidas voltadas ao enfrentamento à violência de gênero, à saúde integral das mulheres, à igualdade no mundo do trabalho, à autonomia econômica, à cultura, à educação e à ciência.
- 950 milhões de reais do orçamento público do ano destinados a essas políticas públicas.
- Para a prevenção do feminicídio e acolhimento das mulheres, retoma serviços públicos essenciais como a Central de Atendimento à Mulher “Ligue 180” e a “Casa da Mulher Brasileira”.
- Destinação de 8% das vagas da administração federal a mulheres em situação de vulnerabilidade social decorrente da violência doméstica e familiar.
- O governo apresentou ao Congresso Nacional um projeto de lei de igualdade salarial entre homens e mulheres. O texto já foi aprovado na Câmara dos Deputados e tramita agora no Senado Federal.
- O governo brasileiro deu o primeiro passo para que a Convenção 156 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), relacionada à igualdade de direitos das trabalhadoras e trabalhadores que tenham encargos familiares, seja ratificada no país.