Pesquisa constatou que 100% das usuárias já foram assediadas dentro de metrôs e ônibus; medidas serão aplicadas em território nacional a partir de outubro
“Eu estava no metrô voltando da piscina quando um homem de uns 30 anos começou a me olhar fixamente. Eu tenho 20 anos e estava usando um vestido até o joelho, nem estava com maquiagem. Ele tinha o olhar meio perverso. Quando levantei pra descer, ele pegou na minha mão e sussurrou que eu era linda. Fiquei irritada e falei pra ele não me tocar porque ele nem me conhecia. Saí do metrô e ele continuou me encarando. Meus amigos disseram pra eu me acalmar, mas eu fiquei irritada — nós mulheres não podemos andar na rua tranquilamente?”. Depoimentos como este da estudante Clo, moradora de Lyon, leste da França, são comuns. Uma pesquisa feita pelo órgão francês HCEfh (Alto Conselho de Igualdade entre mulheres e homens) entrevistou 600 mulheres na região parisiense e concluiu que 100% das usuárias de transporte público já foram vítimas de assédio sexual dentro dos metrôs e ônibus do país, um “fenômeno amplamente minimizado ou normalizado”, segundo o documento. Diante destas conclusões, o governo francês anunciou um plano nacional de luta contra este tipo de agressão que deve ser implementado até o fim do ano. As medidas são divididas em três partes: prevenção, com campanhas para conscientizar o público para o problema; reação, através de serviços de alerta eficientes; e sensibilização, com profissionais capacitados para lidar com o problema em um ambiente não sexista. Entre as medidas, resumidas em 12 pontos, está a determinação de banir propagandas que objetifiquem as mulheres nos transportes públicos, pois as peças “criam um ambiente hostil para as usuárias”, segundo o próprio governo. Um exemplo citado pela secretária de Estado dos Direitos das Mulheres, Pascale Boistard, foi a recente propaganda da tradicional loja de departamento Galeries Lafayette, na qual aparece uma mulher deitada nua com um biquíni pendurado no pé. “Não é uma questão moral, mas de respeito. Não dá pra vender biquínis sem sequer colocar o biquíni sobre a mulher, por exemplo”, disse a secretária em um programa de televisão. A seleção das propagandas não sexistas será feita pelas próprias empresas de transporte, mas os critérios ainda não foram divulgados. As empresas responsáveis também disponibilizarão um número de telefone de urgência para que vítimas e testemunhas possam denunciar agressões sexuais imediatamente. Será criado também um alerta por SMS — dependendo da situação, a discrição da mensagem de texto é mais apropriada, para não chamar atenção. A campanha também pretende lembrar as punições para cada tipo de agressão: exibição de partes íntimas pode custar até 15 mil euros (aproximadamente R$ 50 mil) e um ano de prisão ao agressor. Já a pena por xingar uma mulher em público porque ela não quis conversa será 22 mil euros (cerca de R$ 76 mil) e seis meses de prisão. As primeiras medidas devem ser colocadas em prática a partir de outubro. Clo afirma estar satisfeita com a iniciativa. “Acho ótimo que eles façam alguma coisa contra isso. Os homens que assediam assim na rua precisam entender que não têm esse direito. Se eu pudesse denunciar quando aconteceu comigo, não pensaria duas vezes”, contou ela a Opera Mundi. Conscientização O índice de 100% das usuárias de transportes públicos assediadas sexualmente nestes espaços provocou incredulidade em parte do público francês, mas associações feministas afirmam que o resultado não é nenhuma surpresa. Romain Sabathier, secretário-geral do HCEhf, explicou a Opera Mundi a metodologia da pesquisa: “Nosso estudo contabiliza agressões sexistas, sejam elas conscientes ou não. Algumas mulheres responderam ‘não’ quando perguntadas se já haviam sofrido assédio, mas logo depois disseram que sim quando especificamos os tipos de assédio, que vai desde um assovio inapropriado até uma mão na coxa ou pior”, diz. “A campanha já tem o mérito de tornar visível um fenômeno que até agora foi muito tolerado e extremamente minimizado”, conclui Sabathier. Associações feministas demonstraram satisfação com a preocupação do governo com o tema e reconheceram os pontos positivos da campanha, mas algumas apontaram lacunas, como a falta de um plano orçamentário detalhado, por exemplo. Também argumentaram que as medidas de segurança continuam apenas colocando a mulher em situação de vítima, enquanto o problema é mais profundo. Anne Favier faz parte da associação Stop Harcèlement de Rue (fim do assédio nas ruas, em tradução literal) e é bastante favorável à campanha: “Acho que tudo que faz avançar as mentalidades sobre o assédio é positivo. Lembrar aos homens que esse tipo de agressão é crime e pode ser punido por lei é importante”. Mas a ativista também tem algumas ressalvas quanto às medidas securitárias, que tendem a responsabilizar as mulheres pela própria segurança, aliviando, de certa forma, a culpa dos agressores. “Na cidade de Nantes vão experimentar a parada de ônibus fora do ponto à noite, mas a campanha foca apenas na vulnerabilidade das mulheres. Eles negligenciam que há outras pessoas, como os homossexuais ou idosos, que serão beneficiados”, afirma Favier. Iniciativas em outros países Na Bélgica, uma lei contra o sexismo em espaços públicos está completando um ano sem os resultados esperados. Na capital Bruxelas apenas 22 multas foram distribuídas, menos de duas por mês. Representantes da associação belga Vie Féminine não parecem surpresas: “As mulheres não veem vantagem em denunciar. O sexismo está tão banalizado na sociedade que elas não acham que valha a pena passar por todo o processo por tão pouco”, afirmou Ariane Estenne, porta-voz da Vie Féminine à imprensa local. A Argentina também está atenta ao problema — três projetos de leis foram apresentados contra o assédio sexual nas ruas neste ano. Um dos focos é justamente treinar os agentes de segurança para lidar com este tipo de denúncia, sem desestimular as mulheres durante o processo burocrático. A campanha francesa também espera sensibilizar a população para a importância de denunciar e pretende incentivar as testemunhas a tomar partido da vítima, seja denunciando o agressor diretamente ou demonstrando apoio à vítima para que ela perceba que não está sozinha. Outras soluções imediatistas, como a criação de vagões para mulheres, adotada em algumas cidades brasileiras, foram estudadas, porém descartadas. “Achamos que este método está ultrapassado, pois parte do princípio de que todas as mulheres são vítimas e todos os homens são agressores. Pior ainda: se uma mulher escolhe não usar um destes vagões, este ato poderia ser interpretado como um convite a uma agressão?”, questiona Sabathier. Amanda Lourenço |
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Fonte: Ópera Mundi
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