As necessidades das mulheres negras são muito peculiares e sem que seja feita uma profunda análise do racismo brasileiro, é impossível atender às urgências do grupo
A origem
O Feminismo Negro é um movimento social e um segmento protagonizado por mulheres negras, com o objetivo de promover e trazer visibilidade às suas pautas e reivindicar seus direitos. No Brasil, seu início se deu no final da década de 1970, a partir de uma forte demanda das mulheres negras feministas: o Movimento Negro tinha sua face sexista, as relações de gênero funcionavam como fortes repressoras da autonomia feminina e impediam que as ativistas negras ocupassem posições de igualdade junto aos homens negros; por outro lado, o Movimento Feminista tinha sua face racista, preterindo as discussões de recorte racial e privilegiando as pautas que contemplavam somente as mulheres brancas.
O problema da mulher negra se encontrava na falta de representação pelos movimentos sociais hegemônicos. Enquanto as mulheres brancas buscavam equiparar direitos civis com os homens brancos, mulheres negras carregavam nas costas o peso da escravatura, ainda relegadas à posição de subordinadas; porém, essa subordinação não se limitava à figura masculina, pois a mulher negra também estava em posição servil perante à mulher branca. A partir dessa percepção, a conscientização a respeito das diferenças femininas foi ganhando cada vez mais corpo. Grandes nomes da militância feminina negra foram fazendo história, a exemplo de Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro. A atenção e a produção de conteúdo foram dedicadas a discussões de raça e classe, buscando romper uma zona de conforto que o ativismo feminista branco cultivava, especialmente aquele que limitava sua ótica aos problemas das mulheres de boa condição financeira e acesso à educação.
No entanto, isso não foi suficiente para que o Feminismo Hegemônico passasse a reconhecer as ativistas negras e resgatasse as memórias das mulheres que lutaram na linha de frente de diversos movimentos sociais. Para as meninas e mulheres que vêm a conhecer os movimentos pelos direitos da mulher, há um vácuo de modelos negros nos quais se espelhar, mas não por falta de pessoas atuantes e sim por causa da invisibilidade. É preciso que haja a iniciativa de buscar figuras inspiracionais, caso contrário os nomes mais celebrados serão extremamente limitados.
Rompimento e necessidade do feminismo negro
A cisão das mulheres negras com o movimento feminista hegemônico nunca foi fácil. Por deterem o domínio racial e contarem com maior número de lideranças consolidadas, as feministas brancas resistem às questões das mulheres negras. Grande parte das reclamações relatadas são repetições de um único discurso: as negras criam caso, plantam confusão e discórdia, enxergam racismo onde há boas intenções e não são compreensivas.
Isso acontece porque há a tendência de englobar as mulheres a partir de uma única característica em comum: o gênero. Supondo que todas passam pelos mesmos problemas e desejam as mesmas coisas, o Feminismo que não se atenta para as especificidades de cada grupo feminino acaba atuando sob omissão, muitas vezes deliberada. As necessidades das mulheres negras são muito peculiares e sem que seja feita uma profunda análise do racismo brasileiro, é impossível atender às urgências do grupo.
A luta das feministas negras é uma batalha contínua para nivelar seu lugar ao lugar das mulheres brancas. Isso, por si, levanta a importante reflexão sobre a representação feminina na mídia, seu espaço no mercado de trabalho, o lugar de vítima da violência sexual, o protagonismo da maternidade, entre outros temas, pois se há tanto por que as mulheres brancas precisam lutar, é bastante preocupante o fato de que as mulheres negras nem sequer conquistaram igualdade quando em comparação com outros indivíduos do seu próprio gênero.
Dados, estatísticas
Para contextualizar os abismos raciais que separam as mulheres, é possível usar alguns dados de pesquisas institucionais do IBGE, IPEA e OIT.
. Mercado de trabalho
Em 2013, a PEC 66 foi aprovada, transformando em lei a reivindicação de empregadas domésticas, que há décadas lutavam por direitos trabalhistas. Não por acaso, as mulheres negras compõem a maioria de trabalhadoras do lar (61,7%) e mesmo com o avanço trazido pela Proposta de Emenda Constitucional, a realidade ainda permanece distante do desejado. As funcionárias que exigem seus direitos muitas vezes acabam despedidas e, sob ameaças e assédio moral, é difícil efetivar a conquista.
Enquanto mulheres brancas lutam para que seus salários (média de R$ 797,00) sejam equiparados aos salários dos homens brancos (média de R$ 1.278,00), as mulheres negras recebem ainda menos (média de R$ 436,00). Conseguir um emprego formal, uma boa colocação e ingressar no ensino superior também são dificuldades típicas daquelas que possuem a pele negra.
Outra face perversa do racismo atrelado ao sexismo é a jornada tripla de trabalho. As trabalhadoras se distanciam de seus lares e filhos para que possam prover sustento, muitas vezes cuidando dos filhos das mulheres com melhor condição financeira, e, por não possuírem os recursos, não podem contratar alguém para prestar assistência às crianças e fazer manutenção em suas próprias casas. As creches não atendem à demanda e as funções das mulheres pobres se acumulam. Chegar em casa após um longo dia de labuta e, ainda assim, precisar cumprir mais tarefas domésticas é uma realidade exaustiva que pode ser relatada por milhares de mulheres negras.
. Aborto e direitos reprodutivos
No Brasil, o aborto é legal e gratuito somente se a gravidez for gerada por um estupro, causar risco de morte para a mãe ou no caso do feto ser anencéfalo. Apesar disso, mulheres negras e pobres encontram resistência do sistema de saúde, sendo coagidas por equipes médicas e por religiosos de suas comunidades. Por não contarem com suporte e não terem recursos financeiros que paguem clínicas particulares, muitas dessas mulheres jamais conseguem realizar o aborto.
Se o foco é o aborto por escolha, ainda não legalizado em nosso país, as mulheres negras também integram a parcela de maiores vítimas da ilegalidade. Por causa das complicações geradas por abortos clandestinos, as mulheres negras morrem em números altíssimos e também estão mais vulneráveis ao indiciamento criminal, caso sobrevivam.
A violência obstétrica também é um marco na vida das mães negras e pobres. Negligenciadas nas filas do SUS, elas são colocadas em segundo plano para que mulheres brancas – consideradas mais frágeis e sensíveis – sejam priorizadas, independente da ordem de chegada.
. Violência doméstica e sexual
A cor é fator relevante quando analisamos os casos de agressão e assassinato por parte de companheiros e ex-companheiros. As negras são mais de 60% das vítimas de feminicídio, exatamente porque não contam com assistência adequada e estão mais vulneráveis aos abusos das próprias autoridades.
Já no aspecto da sexualidade, das mulheres brancas é esperado o comportamento moderado e sensualidade com limitações, porém, as mulheres chamadas de “mulatas” são amplamente exotificadas e tratadas como objetos disponíveis para a exploração. O argumento de quem enxerga as mulheres negras como mais disponíveis para investidas sexuais é de que elas são mais provocantes, que seus corpos suportam atos mais intensos ou até mesmo que não podem negar os assédios.
A cultura do estupro é vigente desde a colonização do Brasil, quando mulheres negras foram estupradas por homens brancos e usadas em políticas oficiais de miscigenação, com o fim de branquear a população. A mentalidade daquela época se mantém forte na contemporaneidade e é por isso que são tão naturalizados aspectos culturais como a escolha anual da Globeleza. A posição de mulata que expõe seu corpo é tão relacionada exclusivamente à mulher negra, que nem sequer se estende o concurso sexista para mulheres de outras raças.
Enquanto as mulheres brancas também são vítimas de violência e estupro, é preciso salientar as formas distintas pelas quais o machismo atua: as brancas são violentadas exclusivamente por seu gênero, as negras também se tornam vítimas do preconceito racial. Um bom exemplo é a Marcha das Vadias, atualmente realizada em quase todos os estados brasileiros. Há diversos grupos do Feminismo Negro que não participam dos protestos e criticam o uso de palavras como “vadia” e “puta”, afirmando que as mesmas não podem ser ressignificadas pelas negras, pois o estigma que carregam é muito forte e o mais urgente é romper representações hipersexualizadas. Partindo desse pressuposto, o melhor seria lutar para ser reconhecida como ser humano intelectual, capaz de conquistas diversas e ocupação em papéis ilimitados. Não obstante, esse posicionamento não é unânime; diversas mulheres negras participam das marchas e ocupam posições nas equipes de organização.
. Padrão de beleza e mídia
Cabelos lisos e loiros, narizes finos, bochechas rosadas, olhos azuis e axilas claras são alguns exemplos de como a estética ocidental celebra características brancas como melhores e mais belas. Por causa dessa padronização, atrizes negras são minoria absoluta e quase nunca são convidadas para estrelarem na televisão.
Embora a redução da mulher ao papel de “musa” seja machista, vale a pena dedicar um pouco de reflexão ao racismo explícito que passa todos os dias sem muitos protestos. A posição não é ideal para nenhuma mulher, mas as causas que levam a exclusão das mulheres negras são inegavelmente racistas.
. Mulher negra X homem negro
O debate interno dentro do Feminismo Negro e entre pessoas negras sobre as múltiplas faces do machismo é bastante inflamado. Grande parte da luta feminina se dá contra o sexismo, a imposição de papéis e a violência. Só que o problema é ainda mais profundo e há um incômodo severo por parte de muitas mulheres negras, que se sentem rejeitadas pelos homens negros. A ideia de que são sexualmente usáveis e descartáveis é tão forte que a confirmação rompe as paredes dos grupos militantes: o Censo 2010 revelou que as mulheres negras são as que menos se casam, sendo a maioria na categoria de “celibato definitivo”, ou seja, que nunca tiveram um cônjuge.
Essa discussão é muito complexa e delicada, já que perpassa o desconforto em face do racismo e a solidão que as mulheres negras enfrentam. Por isso não é incomum ver protestos e críticas incisivas diante de um rapper ou jogador famoso que apresente sua namorada loira.
Uma outra perspectiva das relações entre mulheres e homens negros se dá pelos âmbitos familiares. Uma mulher branca de classe média dificilmente se preocupará com a violência policial que ceifará a vida do irmão, pai ou filho. Essa é uma pauta muito precisa das feministas negras e revela como até mesmo as relações de gênero se desdobram de maneiras pouco delimitadas pelo puro debate sobre o machismo.
Apesar dos assuntos que dizem respeito à heterossexualidade, há também a necessidade de se abordar as vivências das mulheres negras que são lésbicas e bissexuais, que precisam lidar com investidas invasivas, lesbofobia e discriminação.
A conscientização
Os dados citados são apenas alguns exemplos das disparidades entre mulheres brancas e negras, mas são fundamentais para se compreender a necessidade de uma vertente específica dentro do Feminismo. Afunilar demandas é uma prática comum dentro dos movimentos sociais. Não há porque manter uma falsa impressão de homogeneização quando a diversidade é capaz de produzir muito mais união e potencial comunitário. Reconhecendo e respeitando as diferenças e características subjetivas das mulheres que fazem a luta feminista, é possível contemplar as necessidades urgentes de cada categoria. A diversidade sexual, as variáveis nas identidades de gênero, os fatores de classe, raça e etnia, entre outras especificidades, estão se transformando em abordagens prioritárias que exigem conscientização imediata.
O Feminismo Negro existe, desde seu surgimento, para emergir as questões periféricas repudiadas pelo status quo. Ele é, em primeiro lutar, um ato de resistência motivado pela existência livre. A população negra é mais de 50% do Brasil; portanto, o esquecimento dessas mulheres seria, no mínimo, o esquecimento de uma importante parcela de cidadãs.
*Jarid Arraes é Diretora do FEMICA, colunista na Revista Forum, feminista, ativista pelos Direitos Humanos e estudante de Psicologia.