A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher, instituída em 2011, finalizou seus trabalhos recentemente. O relatório final traz uma série de recomendações e analisa as situações relativas aos 26 estados brasileiros mais o Distrito Federal. Um dos pontos principais que a Comissão propõe é a categorização do feminicídio no rol de crimes previstos no Código Penal brasileiro, que passa por reforma no Congresso. O panorama da violência de gênero no Brasil revela dados trágicos. A cada dia, 15 mulheres são assassinadas, de acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgado recentemente. A cada 90 minutos, o país registra um homicídio. Os trabalhos da CPMI contabilizaram 92 mil mulheres assassinadas nos últimos 30 anos. A questão da violência contra a mulher tem sido uma preocupação antiga do poder público. Em 1992, uma primeira CPI fora instalada para investigar o fenômeno, apontando a dificuldade de se compilar dados. Passados mais de 20 anos, pesquisas sobre o fenômeno já foram incorporadas com mais frequencia ao cotidiano. Além da do IPEA, o Instituto Patrícia Galvão (IPG) e a Fundação Perseu Abramo têm se preocupado em dimensionar a extensão e a natureza do problema. Há poucos meses, o IPG revelou que 54% das pessoas conhecem uma mulher que já foi agredida e que 56% conhecem algum homem que já praticou violência contra a parceira. Pela proposta da CPMI, o assassinato de mulheres pelo fato de ser mulher constituirá um qualificador. A pena para o crime, definido como “forma extrema de violência de gênero”, é de reclusão de 12 a 30 anos. Para Leila Linhares, advogada e coordenadora do Cepia (Cidadania, Educação, Pesquisa, Informação e Ação), “a iniciativa é necessária para o cenário brasileiro. Convivemos com a violência contra a mulher de forma enraizada. A inclusão do feminicídio como qualificador coloca o país na lista de países da América Latina que possuem legislação semelhante. O Brasil está atrasado nesse sentido”, afirma, lembrando que o Cepia subscreveu a proposta. O assassinato de mulheres constitui um fenômeno específico, cuja natureza envolve relações de gênero desiguais e hierárquicas. Não apenas os assassinatos, mas uma série de outras violências, como a agressão física, a sexual, a institucional, a psicológica, a patrimonial compõem o quadro de vulnerabilidade social das mulheres. “Assim como o estupro, o homicídio de mulheres possui especificidades. É pelo fato de ser mulher, e o que isso significa socialmente, que as circunstâncias de violência são criadas. No caso dos assassinatos, geralmente são cometidos no âmbito de relações privadas, íntimas. São parceiros, ex-parceiros, familiares, conhecidos que cometem” afirma Leila Linhares. “Não se pode ignorar que há contornos de crime de ódio”, complementa. A preocupação com o fenômeno é antiga. A mobilização do movimento feminista foi importante para tematizar o problema em termos políticos. Isso levou o Estado a reconhecer a gravidade do problema. Nas últimas décadas, foram criadas tentativas de lidar com o problema. Nos anos 1980, as Delegacias da Mulher consistiram em um passo inicial importante. O governo federal, na década de 2000, criou a Secretaria de Políticas para as Mulheres, cuja atuação tem se dedicado a pensar políticas públicas para lidar com o fenômeno. Em 2006, a Lei Maria da Penha foi promulgada, aumentando o rigor nas punições dos agressores e ampliando as possibilidades de assistência e proteção às vítimas. A ênfase em saídas penais para lidar com o fenômeno, no entanto, não é consensual entre especialistas e operadores do direito. Para o juiz federal e professor de Direito da IBMEC-RJ Rubens Casara, medidas penais não solucionam problemas estruturais como o machismo, que está na raiz da violência contra a mulher. “Não discordo de que há um efeito simbólico importante na alteração proposta pela CPMI ao reconhecer a particularidade do crime contra as mulheres. No entanto, vejo um problema mais de fundo. No Brasil, há uma tendência a se descontextualizar os fatos sociais e torná-los questões penais. A resposta penal, por seu lado, é sempre atrasada, ela se dá após o ocorrido. Nesse sentido, não acredito que seja uma saída para o problema da violência de gênero”, argumenta o juiz. A pesquisa do IPEA demonstrou que desde a promulgação da Lei Maria da Penha, a taxa de mortalidade das mulheres não diminuiu. Em 2007, para cada 100 mil, 4,74 mulheres foram mortas; em 2008, a taxa ficou em 5,07; em 2009, 5,38; e em 2011 o índice ficou em 5,43. Isto é, os dados têm apresentado certa estabilidade, com sensível alteração. Como analisar tais números na discussão sobre tipificação do feminicídio? Afinal, mesmo após a Lei Maria da Penha, considerada um marco no enfrentamento ao problema, os índices não apresentaram melhoras Para o juiz Rubens Casara, que ressalta não conhecer a pesquisa, a criminalização não diminui fenômenos sociais. “A lei Caó, que criminalizou o racismo no país, não fez com que o fenômeno diminuísse. Da mesma maneira, acredito que criminalização da homofobia também não terá o efeito de reduzir os casos. As pessoas não se tornam menos racistas ou homofóbicas por causa de medidas penais. O machismo, portanto, não será efetivamente eliminado com o Código Penal”, afirma Rubens Casara. A defensora pública Arlanza Rebello, que durante 12 anos coordenou o Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do RJ (NUDEM), é favorável à inclusão do feminicídio no Código Penal. “Será mais um reconhecimento do Estado para a gravidade do problema, assim como foi com a Lei Maria da Penha. Tais medidas permitem a criação de dados e estatísticas para se pensar em políticas públicas. Assim, a tipificação contribui para fazer o Estado se mover diante do problema”, argumenta a defensora, que não acredita, no entanto, que o direito penal seja a única solução. “Criminalizar e encarcerar, isoladamente, não resolve o problema. É preciso pensar em uma atuação ampla, que articule uma educação consciente e a formação de profissionais capacitados para lidar com o problema. O combate à violência contra a mulher deve ser feito em várias frentes”, ressalta. Leila Linhares, do Cepia, destaca que leis não mudam a realidade de imediato. “No entanto, sinalizam uma postura de uma nova cultura. A lei diz à sociedade o que é certo e errado. Naturalmente, deve haver uma atuação exemplar do Estado para fazer valer, pois assim a lei torna-se um movimento de cultura, de mentalidade. Tais mudanças podem ser lentas, mas precisamos colocar em práticas mecanismos para fazer esse processo”, afirma. Sobre o argumento crítico à penalização, a coordenadora do Cepia pondera que, de fato, é uma reflexão válida. “Quais são as saídas para a violência de gênero? É preciso pensar na educação, na comunicação e em outros aspectos que, em conjunto com medidas penais, possam combater o machismo”, afirma Leila Linhares. “Vivemos em uma sociedade cuja programação dos meios de comunicação privilegia a mulher por uma ótica discriminatória, perpetuando relações de poder que estão na base dos casos de violência de gênero. Portanto, é importante refletir sobre como os meios culturais reproduzem certos valores. A lei, a meu ver, também traz reflexões sobre as percepções que a sociedade tem. Por isso, o enfrentamento deve ser amplo”, completa Leila Linhares. Apesar dos dados do IPEA indicarem que a violência contra a mulher permanece em níveis elevados, Leila Linhares e Arlanza Rebello ressaltam que não se pode afirmar categoricamente que a Lei Maria da Penha não trouxe efeitos. “Não podemos subestimar que as mulheres estão denunciando mais o que anteriormente não era denunciado. E o Estado tem sido mais atento ao fenômeno. Assim, a questão tem obtido uma difusão maior do que antes da lei. É importante ter isso em mente. Além disso, a participação de mulheres em organizações criminosas aumentou nos últimos anos. Assim, elas estão crescendo dentro do quadro de vítimas de homicídio”, aponta Leila Linhares. Para Arlanza Rebello, é difícil falar sobre a eficácia da Lei Maria da Penha em função do pouco tempo da promulgação. “São apenas 7 anos. A lei, no entanto, traz mecanismos importantes de prevenção, proteção e punição. Naturalmente, deve ser aplicada em conjunto com outras medidas. Uma das dificuldades tem sido a falta de uniformização. Há posturas diferentes entre os Estados. Há juízes que ainda sentenciam baseados no ranço antigo de não encarar o problema como sendo grave e específico. No entanto, a lei trouxe visibilidade e dados. Não podemos ser categóricos em dizer que não trouxe efeitos porque não diminuiu o número de homicídios. Não houve aumento dos assassinatos, por outro lado. Considero prematuro jogar sobre a lei a responsabilidade de modificar uma cultura. Tanto a lei quanto a possível tipificação do feminicídio são alternativas para lidar com o problema”, observa a defensora Arlanza Rebello. Para o juiz Rubens Casara, o feminicídio já é punido no Brasil. “Pela atual legislação, é possível dar a sentença a partir de uma visão do assassinato de mulher tendo agravante. O juiz pode levar em conta a questão do gênero na hora de aplicar a pena. Quem defende a criminalização revela um ato de fé e acredita que isso irá mudar o imaginário. No entanto, em termos práticos, não acredito haja efeito”, conclui o juiz. A tramitação da reforma do Código Penal permanece no Congresso Nacional. No final de outubro, 806 emendas obrigaram o texto a ser novamente apreciado pela comissão especial que o abriga. O prazo final para a conclusão dos trabalhos é 16 de dezembro, quando o projeto será analisado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. |
Fonte: Clam – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos
|