Ações itinerantes da Justiça levam a Lei Maria da Penha a comunidades isoladas no País, onde especialistas apontam que a violação dos direitos das mulheres é perpetuada pela naturalização da violência. Profissionais à frente das experiências reforçam a importância da articulação do Sistema de Justiça para instalar equipes fixas de toda a rede de enfrentamento nos rincões do Brasil. Como parte do esforço para assegurar a efetividade do acesso à Justiça a mulheres vítimas de violência doméstica, duas iniciativas de atendimento móvel foram colocadas em funcionamento pelo Poder Judiciário em 2013 e, por meio de parcerias entre diferentes atores da rede de enfrentamento, outras três estão previstas para 2014. No ano passado, o Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo (TJES) lançou o Juizado Itinerante da Lei Maria da Penha – um ônibus que vai a cidades que não têm varas especializadas ou juizados instalados. O Tribunal de Justiça do Pará (TJPA), por sua vez, implementou o Projeto “Ribeirinho Cidadão”, que atende mulheres das comunidades às margens dos rios Arraiolos, Paru e Chicaia, na região fronteiriça do Pará com o Amapá e o Suriname. O TJPA participa ainda de uma ação em parceria com o Ministério da Saúde, a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) e a Caixa Econômica Federal, que possibilitou a expansão do enfrentamento à violência doméstica no interior daquele Estado por meio de barcos. A partir de janeiro deste ano, a agência-barco começou a atender mulheres vítimas de violência em 16 comunidades na região da Ilha do Marajó. Para 2014, por meio de parcerias entre diferentes órgãos da rede de enfrentamento, está em tratativa a instalação de unidades de atendimento integrado de Justiça por meio das agências-barco na Amazônia, comunidades do entorno de Corumbá (Mato Grosso do Sul) e na Bacia do Rio São Francisco. Interiorização do Poder Judiciário A oferta de juizados itinerantes de violência doméstica se insere no cumprimento de diretrizes expedidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio da Recomendação nº 9/2007 e da Resolução nº 128/2011. As experiências têm reforçado ainda um diagnóstico constante entre os operadores do Direito que atuam nessa área: é preciso interiorizar a Lei Maria da Penha, promovendo acesso a direitos para as mulheres brasileiras em todo o território nacional. “A Justiça tem que ir até a mulher, o Estado tem que estar presente. E temos que buscar mecanismos para chegar às vítimas”, ressalta a juíza Hermínia Maria Azoury, titular da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJES e presidente do Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid). A opinião é compartilhada pela desembargadora e conselheira do CNJ Ana Maria Amarante. “Esse tipo de atividade dá acesso à Justiça às pessoas que, por estarem em regiões mais remotas de nosso País continental e diante das dificuldades de transporte ou financeiras, não teriam condições para tanto. Essas iniciativas possibilitam o exercício da cidadania”. Uma pesquisa divulgada pelo CNJ no ano passado mostrou que, só em termos de Juizados Especializados, o País precisava ao menos dobrar seu atendimento. Em 2012 havia 66 órgãos especializados e hoje estão em funcionamento 87 unidades de aplicação da Lei Maria da Penha (Varas e Juizados). Mas, de acordo com o Conselho, seria preciso atingir um total de 120 para garantir condições mínimas de acesso ao Sistema de Justiça às brasileiras vítimas de violência intrafamiliar. “A pesquisa indica uma desproporcionalidade nas cinco regiões do País, sugerindo a necessidade de criação imediata de novas unidades judiciárias, a maioria delas instaladas em cidades limítrofes, do interior e com grande concentração populacional – procurando, assim, racionalizar a atual demanda”, avalia o Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, Milton Augusto de Brito Nobre, presidente do Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça. O estudo, para o desembargados, traz uma grande contribuição para a melhoria da prestação jurisdicional, porém, é preciso refletir: “o aumento das unidades judiciárias, nos critérios do estudo, vai efetivamente solucionar a questão da demanda?”. Nesse sentido, para ele, é recomendado somar as iniciativas itinerantes. “Se considerarmos as peculiaridades regionais, notadamente em áreas como no Nordeste e na Amazônia, esta última com suas enormes extensões territoriais e dificuldades de pronto acesso, creio que a utilização de mecanismos como a Justiça Itinerante (já praticada usualmente no Pará), usando todos os meios de transporte possíveis, constituirá uma excelente ferramenta para atender os casos de violência doméstica muito comuns no interior, onde a Justiça custa a chegar”, explica. A experiência capixaba Inaugurado em setembro do ano passado, o Juizado Itinerante do Espírito Santo é um ônibus adaptado – doado por uma empresa fabricante local – que leva às cidades onde não existem Varas ou Juizados Especializados o atendimento integrado de Justiça. A mulher vítima de violência tem no mesmo espaço cinco salas climatizadas para atendimento do Judiciário (uma sala para audiências e outra para o cartório), Defensoria Pública, Ministério Público e equipe multidisciplinar de assistência psicossocial. “É como uma vara itinerante mesmo. Estamos planejando fazer um levantamento de todas as comarcas e levar o ônibus a cada uma delas, uma semana em cada lugar, contando com parcerias das Prefeituras e da Polícia local”, relata a juíza Hermínia. Na opinião da magistrada, o Juizado Itinerante “é uma das ferramentas mais relevantes, porque há locais longínquos onde as pessoas não sabem nem o que é a Lei Maria da Penha, onde as mulheres não conhecem os seus direitos”. Além do atendimento e da expedição de medidas de proteção, o Juizado Itinerante promove também a divulgação da Lei Maria da Penha e dos direitos que as mulheres têm. “Neste biênio vamos fazer um programa nas comarcas que apresentam maior reincidência com relação às medidas protetivas e também nas demais, que ainda não têm Varas. Hoje temos quatro Varas Especializadas na Grande Vitória e o Juizado Itinerante vem colaborar naquelas comarcas que não têm varas privativas e nem mesmo têm o conhecimento dos direitos estabelecidos pela Lei Maria da Penha”, ressalta a juíza. A experiência de atuação em rede das instituições do Sistema de Justiça é apontada pela juíza como um facilitador. “Porque às vezes a mulher vai procurar uma delegacia e, infelizmente, elas não estão bem estruturadas para receber as vítimas. Há casos até de vítimas e agressores ficarem na mesma sala, o que é incompatível. Além disso, o povo mais humilde também não pode ficar pagando cinco, seis passagens. Essa integração e centralização permitem ter um defensor para fazer a petição, obter a medida protetiva, ter apoio da equipe multidisciplinar e informações. Agora estamos buscando ter um médico para atuar como perito ad hoc, porque a espera do IML às vezes prejudica a atuação”. A chegada da Lei às ribeirinhas no norte do País No Pará, a inclusão de ações de prevenção e combate à violência doméstica no Projeto “Ribeirinho Cidadão”, iniciada em 2013, tem sido outro vetor de divulgação da Lei Maria da Penha. O projeto é desenvolvido em parceria com o Executivo e a seccional paraense da Ordem dos Advogados do Brasil, permitindo uma atuação multifuncional, com juiz, advogados, psicólogos, assistentes sociais e pedagogos que, além de orientar as ribeirinhas, realizam atendimento jurídico e expedição de medidas protetivas. Nas três etapas realizadas em 2013 nas comunidades das margens dos rios Arraiolos, Paru e Chicaia, o projeto levou informações a mais de 350 ribeirinhos e ribeirinhas e fez cerca de 50 atendimentos individualizados de casos de violência doméstica. Em fevereiro, chegará às margens do rio Jari. “Por mais que tenhamos diversas campanhas de violência contra a mulher na internet, nas rádios e na televisão, estamos tratando de lugares onde ainda não chegou energia elétrica. Lá, falar sobre a Lei Maria da Penha ainda é novidade. O acesso a informação ainda é um grande desafio”, explica o juiz titular da Comarca de Almeirim e coordenador do projeto, Márcio Teixeira. Ao fazer o atendimento da mulher, a equipe verifica o histórico do caso e encaminha ao juiz para deferimento imediato das medidas protetivas, caso necessário. Na mesma data é agendado um retorno da equipe para saber se a medida foi suficiente e verificar a situação da família. “Dentro daquele caso concreto tentamos encontrar uma solução mais prática possível, porque a comunidade já é isolada e o poder público não consegue se fazer presente constantemente. Chegar nessas comunidades distantes tem sido muito importante, um grande diferencial”, avalia o juiz. A desembargadora Maria de Nazaré Saavedra Guimarães, titular da Coordenadoria Estadual de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do TJPA, destaca que a “ausência de política efetiva de minimização dos impactos sociais, econômicos e profissionais que incidem sobre a vítima e sua família, durante o intervalo entre a comunicação da agressão e a punição, faz com que grande parte delas desista de levar a cabo a jornada, de modo que a maioria dos casos nem chega ao Judiciário, restando impunes”. Para garantir a interiorização e disseminação de formas eficazes de atendimento às mulheres nos municípios mais afastados, a Coordenadoria desenvolve o Projeto “Mudando a História: Uma Vida sem Violência”, que já formou mais de mil técnicos da rede de atendimento e enfrentamento à violência contra as mulheres de Ananindeua, Marabá, Santarém e Parauapebas e começa a ser implantado em Belém, em março, e em Cametá, em maio de 2014.
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Fonte: Portal Compromisso e Atitude
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