A classificação por gênero começa a ganhar terreno no cinema desde que um grupo de exibidores suecos lançou há um mês uma polêmica iniciativa para medir a presença de mulheres nos filmes que projetam. A ideia ganhou uma velocidade que surpreendeu até aos próprios impulsionadores. Em questão de semanas, dúzias de festivais e cinemas de meio mundo entraram em contato com os suecos para copiar um modelo que aspira a chamar a atenção sobre a desigualdade de gênero na indústria cinematográfica. O sistema em questão se inspira em um teste croiado em 1985 pela quadrinista norte-americana Alison Bechdel. Em uma das suas HQs, uma das personagens diz que só vê filmes em que pelo menos duas mulheres apareçam conversando entre si, e sem que o assunto gire em torno de um homem. Esses critérios, que nasceram quase como uma piada, se transformaram nas três principais pergunta do teste aplicado ao cinema. A inspiração primordial remonta a Virginia Woolf e às suas observações sobre a presença e o papel da mulher na literatura. O epicentro dessa iniciativa contagiosa é o Bio Rio, uma pequena sala alternativa em Estocolmo. O Bio Rio e outros quatro cinemas do país inventaram uma classificação e um logotipo para indicar que determinado filme passou na prova de Bechdel. Assim, além de medir a violência e o sexo, o espectador receberá informação sobre se o filme é mais ou menos sexista. Ellen Tejle é a jovem gerente do Bio Rio e a responsável pelo fato de meio mundo falar atualmente do ressuscitado teste de Bechdel. “Quisemos fazer algo para dar visibilidade ao fato de que as mulheres são invisíveis no cinema. Algo concreto. Tudo bem falar dos problemas do mundo, mas o que realmente importa é fazer algo.” O que o Bio Rio e outras quatro salas do país fizeram foi submeter ao teste os filmes que pretendiam programar. E se assustaram. “Em 2010, vimos que pouquíssimas passavam. Tanto fazia o gênero ou o país de origem. Percebemos se trata de um problema sistêmico”, conta Tejle na cafeteria do seu cinema. Dados da Academia de Cinema de Nova York, por exemplo, indicam que só 30,8% dos atores que aparecem com fala nos filmes são mulheres. Um terço delas aparece parcialmente nua ou em posturas sexualmente sugestivas. Kathryn Bigelow é a única mulher a ter conquistado um Oscar de direção. Mais dados: elas compram metade dos ingressos de cinema vendidos nos EUA. Estudos de outras academias e instituições oferecem cifras similares. O sistema começou a funcionar há apenas um mês, e desde então cinemas e festivais de vários países entraram em contato com Tejle para lhe dizer que aderiram à iniciativa. Em recentes eventos do setor nos EUA, em outubro, e na Grécia, em novembro, Tejle se surpreendeu com a enorme aceitação de seus colegas. O canal escandinavo de televisão Viasat Film decidiu adotar a classificação. Salas da Eslovênia, Reino Unido, Irlanda, França e EUA manifestaram sua intenção de usá-la e pediram os já famosos selos em preto e branco com a frase: “Aprovado – Bechdel Test”. Os selos podem ser vistos nos anúncios, nos créditos e nos folhetos de programação dos cinemas. Há um festival, o Bluestocking Film Series, de Portland, nos EUA, que agora só programa filmes que passem no teste. No Bio Rio, apenas 30% dos filmes projetados no último mês foram aprovados no exame. A partir de janeiro, um grande número de cinemas suecos irá aderir à iniciativa, apoiada também pelo Instituto de Cinema da Suécia. Esta instituição leva muito a sério a questão da igualdade. Seus estatutos estabelecem que filmes feitos por homens e por mulheres devem receber o mesmo financiamento. No ano passado, foi definido um plano para levar à igualdade no cinema sueco já em 2015. “A diversidade e a representação de distintas perspectivas significa qualidade. Além disso, é uma questão de saúde democrática. Se as mulheres somam 50% da população, por que suas histórias devem ter menos valor?”, reflete Tove Torbiörnsson, diretora de Filmes e Sociedade no Instituto sueco. Torbiörnsson se estende em um tema que a apaixona e que considera prioritário. Acredita que a desigualdade no cinema não é senão um reflexo dos desequilíbrios de poder entre os gêneros na sociedade. E esmiúça a vertente cinematográfica: “Quando uma mulher faz um filme, se diz que é para um público feminino. Quando um homem o faz, supõe-se que seja para todos os públicos. Que sentido isso faz?”. Torbiörnsson localiza o problema nos longas-metragens, onde se movimenta mais dinheiro. “O normal é que sejam feitos por homens, e portanto sempre é mais difícil brigar pelos que não se ajustam àquilo que se considera normal.” Em particular, ela se preocupa com os segundos e terceiros filmes das diretoras. “É mais difícil que as mulheres recebam uma segunda oportunidade. É como se não tivessem direito a fazer filmes ruins, e os homens, sim.” Alguns críticos levantaram a voz alertando para uma possível censura. Outros temem que a qualidade se ressinta. “Se isso levar os cineastas no futuro a pensarem nessas questões durante o processo criativo, então é perigoso. Muitos filmes feministas nunca teriam passado no teste: filmes de Marguerite Duras, Chantal Akerman… Para não falar em Ingmar Bergman”, disse o pesquisador cinematográfico à frente da Fundação Ingmar Bergman, citado pela agência France Presse. Roman Gubern, historiador dos meios de comunicação, entende que essa prova é coerente com a história e a cultura suecas, mas “não muito científica realmente”, e com “apenas um valor relativo”. “Trata-se de lançar uma mensagem”, defende-se Torbiörnsson. “Não estamos falando de censurar. É simplesmente um experimento. O fato de que tenha causado tanto rebuliço quer dizer que aqui existe um tema, que tocamos num nervo.” Hollywood reprovada • A trilogia de Tolkien. Nenhum dos três episódios de O Senhor dos Anéis passa no teste de Bechdel, que mede o sexismo em um filme. Embora a adaptação para a tela dos livros de J. R. R. Tolkien conte com várias personagens femininas relevantes, elas não contracenam, e por isso nunca chegam a estabelecer um diálogo. • O jovem mago. Tampouco se sai bem outra adaptação literária, a saga Harry Potter. Dois dos filmes inspirados nos romances de J. K. Rowling são reprovados no exame: Harry Potter e o Cálice de Fogo e Harry Potter e as Relíquias da Morte 2. Neles, várias mulheres chegam a aparecer na tela, mas não mantêm nenhum diálogo entre si, outro dos requisitos imprescindíveis. • Avatar. Em Avatar, sucesso de bilheteria dirigido por James Cameron, ocorre algo parecido: mulheres aparecem ao mesmo tempo, e às vezes chegam a trocar palavras entre si, mas não se pode considerar que mantenham uma conversa real. Só há uma exceção: um diálogo entre Neytiri e sua mãe. Mas, nesse caso, o tema do diálogo é Jake, um homem, por isso o filme também não passa no teste. • Cinema clássico. Nos clássicos também há exemplos de filmes reprovados no teste de Bechdel. A trilogia original de Star Wars é um exemplo. Há apenas três personagens femininas com nome, e em nenhum dos três filmes elas trocam palavras entre si. Da segunda trilogia, os episódios I e II passam no teste, mas o terceiro volta a ser reprovado por não conseguir cumprir os três requisitos necessários. • Heroína espacial. Apesar de estar protagonizada por uma mulher, Sandra Bullock, Gravidade também é um filme barrado no teste. O argumento do longa do mexicano Alfonso Cuarón faz com que ela seja a única mulher na tela e, em boa parte do filme, a única pessoa. Portanto, não cumpre nenhum dos requisitos para superar a prova de sexismo. |
Fonte: Geledés Instituto da Mulher Negra
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