Uma das mais ativas e heterogêneas bancadas da Câmara encontra caminhos entre a subrepresentação para tentar barrar projetos de retrocesso
Em 1986, históricas 26 mulheres, ou 5,3% dos parlamentares, foram eleitas para a Câmara dos Deputados. As primeiras componentes e fundadoras da chamada Bancada Feminina foram, também, as participantes da Constituinte que impuseram que, a partir dali, as mulheres seriam ouvidas e atuantes. Hoje, as 77 deputadas que fazem parte da maior composição da Bancada tentam seguir como um exemplo de que oposição e base governista conseguem articular planos conjuntos nas políticas públicas, como observado nos anos anteriores. A legislatura atual, no entanto, coloca essa característica unitária como a exceção e a regra ao mesmo tempo.A polarização do País não deixaria intacta a composição das mulheres na Câmara. Muito pelo contrário: o PT tem a maioria das parlamentares (10), seguido de perto pelo PSL (9), partido do presidente Jair Bolsonaro. Se a reforma da Previdência tem sido uma das maiores pautas dos parlamentares neste primeiro ano de novo congresso, houve fiscalização da Bancada Feminina para a contenção de retrocessos ainda maiores para as mulheres.
Há quem defenda, porém, que a ínfima atual porcentagem de 15% de representatividade não almeje grandes voos e seja atravessada por mais homens de terno interessados, como já conta a história, em fazer política para a maioria da população brasileira.
Aos trancos e barrancos
“A Bancada Feminina consegue se articular em alguns temas, independentemente do partido político. A questão da violência contra as mulheres é uma questão que unifica as mulheres historicamente. Um outro tema é o próprio da participação política das mulheres”, diz Beatriz Sanchez, doutoranda da USP (Universidade de São Paulo) que pesquisa sobre a atuação feminina na Câmara dos Deputados.
“A forma como esse combate deve ser feito gera algumas divergências. As parlamentares mais conservadoras pautam o endurecimento da legislação para punir de forma mais severa quem cometer um crime. Agora, as parlamentares de partidos mais ligados à esquerda defendem não só a punição, mas formas de ressocialização e de educar a população”, complementa Sanchez.
Os ainda poucos nove meses de legislatura impedem uma análise mais profunda sobre uma mudança radical ou não na Bancada, mas a pesquisadora acredita em pontos de tensão que serão notados, especialmente, por diferentes questões ideológicas. “A gente tem temas mais polêmicos, como o aborto e as discussões de gênero nas escolas, que o partido tem mais influência na atuação do que o fato de ser mulher ou não”, diz.
Para a deputada Adriana Ventura (Novo-SP), que classifica como “muito bom” o convívio das mulheres eleitas, a percepção se dá por conta do trabalho de convencimento que as parlamentares têm em relação ao resto do partido quando se empenham sobre uma pauta em comum.
Adriana, que é a única mulher da sigla na Câmara, afirmou que os colegas homens eram contra o destaque que diminuiu a idade mínima de contribuição para as mulheres na primeira tramitação da reforma da Previdência na Câmara, mas que, depois, foram convencidos. “Havia uma preocupação sobre o impacto fiscal, o que foi esclarecido”, relatou.
O debate da Previdência foi uma das pautas que mais teve a atenção da Bancada ao longo da nova legislatura, mas foram necessárias mudanças para que não se aprovasse um texto mais destrutivo.
Caso seja mantido conforme o que foi aprovado, o destaque possibilitará que as trabalhadoras contribuintes com o INSS por no mínimo 15 anos consigam acesso a 60% do valor da aposentadoria – um valor que aumenta em 2% a cada ano até alcançar 100% do benefício. No texto enviado pelo ministro Paulo Guedes, era necessário contribuir 20 anos. Para a deputada Silvia Cristina (PDT-RO), que votou favorável pela reforma em revelia às orientações de seu partido, como no famoso caso da deputada Tabata Amaral (PDT-SP), a mudança impulsionou sua decisão.
“A Bancada Feminina foi ouvida. Não é a reforma previdenciária do sonho de todos, mas eu acredito que seja, da maioria, uma maneira de dar pelo menos um aval para que as coisas possam acontecer”, comenta. “Se fossem 20 anos de contribuição, 60% das mulheres brasileiras não iriam se aposentar nunca”, disse Sâmia Bomfim (PSOL-SP), que foi, mesmo assim, contrária à reforma. A parlamentar lembrou ainda que a pensão por morte também entrou no jogo e conseguiu ser alterada.
A visão da psolista é distinta da deputada do Novo: a relação não anda às mil maravilhas, mas carregada de outro senso de prioridade. “Não é um trabalho fácil porque têm visões muito distintas de mundo. Com todas as limitações possíveis, ela acaba funcionando. É uma articulação suprapartidária para evitar que retrocessos muito brutais aconteçam para mulheres brasileiras”, analisa.
A histórica Lei Maria da Penha, de 2006, e a PEC das Domésticas, de 2013, também são citadas por Beatriz Sanchez como importantes engajamentos históricos da Bancada Feminina. No atual contexto, a propagação dos discursos “antifeministas” e conservadores cria uma situação de tensão que, para a pesquisadora, ainda se resumem apenas ao apelo eleitoral das candidatas de direita.
“Essas parlamentares, ao falarem que são antifeministas, querem ganhar o voto dessas pessoas, mas isso não significa que na atuação delas elas não defendam temas relacionados ao direito das mulheres. Não é tanto sobre a classificação, mas é o que ela realmente faz”, comenta a pesquisadora.
Um projeto de lei que circula na Câmara, no entanto, pode ameaçar a já frágil unidade das parlamentares da Casa. É o PL 2.996/2019, de autoria da deputada Renata Abreu (PODE-SP), que quer deixar de punir os partidos que não lançarem os mínimos 30% de candidatas mulheres por eleição, um percentual definido na Lei de Cotas de 1997.
Guinada à (menor) representatividade
Renata Abreu sabe que entrou em fogo cruzado, e já se defendeu das acusações de propagar retrocessos na participação política feminina, que bate ralos 15% em 2019 para falar por mais da metade da população brasileira. Consta, em seu texto, que os partidos ganhariam em dobro a cada candidata mulher que lançassem às campanhas.
Isso acontece porque ela também altera a lei 9.096/1995, e sugere que 95% do Fundo Partidário seja distribuído aos partidos proporcionalmente de acordo com os votos obtidos na última eleição geral. Uma mulher, nesse caso, valeria por duas, o que, em tese, incentivaria a chamada de mais participação. Mas continuaria sendo apenas uma, um processo que chega a ser antidemocrático, dizem especialistas.
“Um dos princípios da democracia é que os grupos sociais que compõem a sociedade possam fazer parte da esfera política. Elas precisam participar desse espaço de poder porque ele que determina as regras que vão valer pra todo mundo. As mulheres são a maioria numérica da população brasileira, e ela é muito sub-representada”, analisa Lígia Fabris, professora de Direito da FGV-Rio e advogada.
Se os partidos não têm mulheres em suas bases, o que fazer? Para Lígia, esse é mais um exemplo de uma afronta sistemática a meios de equiparação por parte dos dirigentes partidários, que ignoram o que já está previsto por lei.
O inciso V do artigo 44, previsto na Lei 9.096/95, determina que os partidos destinem 5% dos recursos do fundo partidário para a “criação e manutenção de programas de promoção e de difusão da participação política das mulheres”. Em pesquisa feita para a FGV, Lígia analisou que, de 2010 a 2015, o percentual mais alto de cumprimento dessa lei foi de 53% dos partidos em 2012. Em 2015, apenas 34% dos partidos cumpriam com essa obrigação.
“Os partidos não se empenham em formar quadros femininos que possam vir a disputar a arena política. Eles não investem e depois reclamam que não há mulheres. Estão responsabilizando as mulheres para não serem responsabilizados”, analisa a professora. “Tem partido que nem abre a conta, que não coloca valor nenhum, que coloca valor menor”, relata.
Candidaturas laranjas
De acordo com os dados disponíveis no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), poderiam ter sido investidos mais de 28 milhões de reais na formação de mulheres, de 2010 a 2015, caso os partidos tivessem dado destino correto aos valores. É por esse motivo, também, que Lígia enxerga o movimento de apoio ao fim das cotas por parte dos homens como uma sutil liberação das candidaturas laranjas para abocanhar os fundos antes reservados a elas.
Deputadas de diferentes espectros políticos já se manifestaram contra a proposta de Renata Abreu – embora a relatora do projeto, Bia Kicis (PSL-SP), já tenha dado seu parecer favorável ao texto. Silvia Cristina acha que é necessário voltar a debater o projeto com “mais afinco”, e destaca que as mulheres negras serão as mais prejudicadas com uma aprovação. Adriana Ventura relatou que até ela, “de um partido liberal”, já fez viagens de incentivo às candidaturas para os estados que não elegeram mulheres (AM, AL e SE), e Sâmia Bomfim disse que muitas parlamentares têm sido pressionadas pelos líderes partidários a se posicionarem a favor do projeto.
Há quase um ano e meio, Marielle Franco, a quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro nas eleições de 2016, era assassinada. Um dia depois do crime, Lígia Fabris estava no Supremo Tribunal Federal defendendo o fim do teto de repasse de verbas para mulheres que quisessem se candidatar. Os dados apresentados por ela demonstraram que o limite de 15%, imposto pela Lei 13.165/2015, na verdade, só afirmava a diferença entre homens e mulheres na política. Os ministros julgaram a ação procedente e estabeleceram o mínimo de 30% de repasses, sem a existência de um teto limite. Houve vitória, mas ela reconhece o peso daquela manhã.
“Foi uma coincidência, mas ali se materializou a importância daquilo que a gente estava falando e do peso de ser mulher na vida política – no caso da Marielle, a consequência mais grave de ser morta em razão do exercício do seu mandato”, analisa a advogada. “Se a gente vai possibilitar que mais mulheres entrem, agora a gente tem que se preocupar que elas entrem e não sejam mortas. Esse é um espaço hostil às mulheres.”
Fonte: Carta Capital