Quando a intérprete de Hermione na série cinematográfica Harry Potter subiu ao púlpito da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas, no último dia 20, pouca gente esperava mais que as falas inócuas com que celebridades alçadas à posição de Embaixadores da Boa Vontade costumam “agregar valor” às causas da entidade. Foi, então, que a mágica se deu.
A entrevista é de Ivan Marsiglia com Sérgio Barbosa, filósofo e coautor de Homens e Masculinidades: outras palavras (Editora 34), publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 28-09-2014. Aos 24 anos e recém-graduada em literatura inglesa, a atriz britânica Emma Watson proferiu um discurso claro, sensível e arrebatador, que viralizou imediatamente nas redes sociais. Ela abriu a campanha HeForShe, da ONU Mulheres, pela igualdade de direitos para ambos os gêneros, relatando a própria experiência com a cultura machista que se mantém arraigada mundo afora – até mesmo em sua liberal Inglaterra. E pôs de lado a “agressividade” com que certos críticos gostam de tachar as feministas para exortar os homens a que se aliem às mulheres na luta contra esse mal (ainda) moderno. Delicadeza que não impediu reações furiosas contra as suas ideias, inclusive por parte de criminosos cibernéticos que ameaçaram divulgar fotos da estrela nua para desmoralizá-la. “Nós homens ainda estamos bem perdidos, num deserto muito grande, passando por uma crise enorme por não entender por que essa nova mulher nos ameaça”, afirma o filósofo feminista Sérgio Flávio Barbosa. Coordenador do Programa de Responsabilização para Homens Autores de Violência contra Mulheres, iniciativa pioneira na recuperação de indivíduos que chegaram ao limite do crime na expressão da cultura retrógrada do machismo, Barbosa é um observador privilegiado do comportamento do homem atual. E teve suas pesquisas publicadas em livros como Homens e Masculinidades: Outras Palavras (Editora 34, 1998, atualmente fora de catálogo). Na entrevista a seguir, o filósofo conta por que, 60 anos após a revolução de costumes que trouxe as mulheres para o mercado de trabalho e a participação política, a ficha ainda não caiu para os homens. E explica por que a bandeira da igualdade de gênero significa, mais que o fim da opressão da mulher, a libertação de ambos os sexos. Eis a entrevista. Emma Watson exagera ao afirmar que ‘nenhum país no mundo pode dizer que alcançou a igualdade de gênero’? Não exagera. A desigualdade de gênero é uma questão mais sentida em países como o Brasil por causa de uma herança cultural muito forte do patriarcado. Estamos ainda distantes da igualdade na remuneração das mulheres no mercado de trabalho, em suas possibilidades de ascensão profissional e na restrita presença feminina na política. Mesmo com Dilma Rousseff e Marina Silva polarizando neste momento a disputa majoritária pela Presidência, nas demais esferas arepresentação feminina no Brasil é desastrosa. Homens brasileiros ainda não debatem temas como a licença-paternidade, reivindicam creches para seus filhos ou se sentem à vontade para pedir dispensa ao chefe para levar a criança ao médico. O atraso é maior. Mas em todo o mundo a igualdade entre homens e mulheres é ainda um sonho a ser conquistado. Mesmo nas sociedades mais avançadas contemporâneas permanece a discriminação sobre o comportamento de homens e mulheres. Filmes de Hollywood continuam cheios de homens que não choram, se comportam como dominadores e se colocam na vida por meio da agressividade. Apesar das bandeiras do feminismo terem transformado fortemente a sociedade já na década de 1950, considero que nós, homens, começamos a nos mexer só agora. O novo tipo de homem que esse mundo requer apenas começou a surgir. Nos dias seguintes ao discurso, Emma sofreu ameaças por parte de criminosos virtuais que pretendiam divulgar suas fotos íntimas na internet. É sintomático que a exposição do corpo da atriz seja usada como uma represália por suas palavras? Quanto mais as mulheres falam de seus direitos, maior é a reação conservadora por parte de alguns homens. Há dois sentimentos aí: primeiro, de raiva, de não entender a perda desse poder dominante na sociedade. Já que as feministas, desde Simone de Beauvoir, passando por Joan Scott e chegando a Judith Butler, vão conquistando espaços, estão mais preparadas, estudaram mais, os homens se ressentem de perder seu lugar privilegiado. É uma reação de covardia e desespero. Outro sentimento é o de insegurança. Porque a construção da masculinidade é feita em cima de identidades não reais, de projeções de força e de poder. E a história vem mostrando que essa construção na verdade só prejudica o homem. No discurso, Emma questiona por que ‘feminismo’ se tornou uma palavra impopular, associada a mulheres ‘agressivas, anti-homens, não atraentes’. Por quê? O feminismo é uma categoria analítica que critica essa dominação masculina e uma palavra muito forte porque, uma vez tocado pelo feminismo, não é possível recuar, não é possível abrir mão. Com todos os direitos que se colocam por trás disso: direito à igualdade, à saúde, à reprodução. E a questão do corpo é tão importante na expressão do feminismo justamente porque a sociedade tenta dominar a mulher pelo uso do corpo, tentando vendê-lo e expô-lo ou criando a partir dele uma situação vexatória para a mulher. É pelo corpo que posso atingir ou reprimir. Dessa forma, o corpo, na perspectiva do feminismo, passa a ser, além do “cárcere” da mulher, seu lugar de libertação, o que aparece em slogans como “nosso corpo nos pertence” ou na declaração do corpo da mulher como não mais um objeto de uso ou de venda de produtos. Emma contou que, aos 8 anos, era chamada de ‘mandona’ por querer dirigir as peças de teatro na escola – o que não ocorria com os meninos. Afirmação feita também pela cantora Beyoncé na campanha I’m not Bossy; I’m the Boss (Eu não sou mandona; sou a chefe). O machismo se constrói em casa? A construção da cultura machista se dá antes mesmo do nascimento da criança, na forma como os pais projetam quem serão seus filhos no futuro. A primeira regulação dos papéis de gênero se dá no ambiente familiar, se enraíza durante a infância e se cristaliza na adolescência. Fora de casa, todo um aparato na educação, na saúde e na política vem para reforçar tais valores. A ideia central é de que quem manda tem uma “postura masculina”. E que, então, não cabe à mulher mandar, pois ela tem uma “postura suave”. É por isso que se uma mulher quiser mandar ela tem que se “travestir” em homem, ou seja, se colocar como figura masculina forte para ocupar o lugar do poder. Mas não é só isso. No terreno sexual, ainda hoje é justificado e legitimado aos homens que tenham um comportamento de garanhão, a ideia de um vigor sexual incontrolável que seria quase “instintivo”. Enquanto isso, às meninas é ensinado que se reprimam, se controlem, evitem certas palavras e poses – que “não se mostrem” socialmente, em resumo. A menina que demonstra mais autonomia ou uma atitude de comando é imediatamente tachada de mandona, machona, caprichosa, difícil. Basta abrir os olhos e ver: isso ainda acontece por toda a parte, não só no Brasil. É um hábito tão arraigado que os pais, mesmo liberais, nem se dão conta do que estão reproduzindo. A proposta do HeForShe – atrair os homens para a causa feminista com o argumento de que eles também seriam beneficiados pela igualdade – faz sentido? Nós, homens, sofremos de uma solidão muito grande. Em nenhum lugar há espaço para conversarmos sobre nossas fraquezas. Somos os primeiros que sofrem com a obrigatoriedade de ser durão, um John Wayne, ou alguém sem sentimentos, um Homer Simpson. O que temos a ganhar com o feminismo? Em primeiro lugar, a possibilidade de aceitar melhor as diferenças, ter uma visão mais ampla da realidade, ser mais flexível. Mas também exigir menos de nós próprios, sermos capazes de aprender com os erros e ganhar possibilidade da escuta, da sensibilidade, da participação maior na vida dos filhos. Além disso, a desigualdade de gênero afeta a qualidade de nossas relações amorosas, que se transformam em verdadeiras competições entre parceiros, em que um não pode ser também amigo do outro. Estou certo de que muitos casamentos hoje em dia só se mantêm porque a mulher acaba por ceder, se torna silenciosa, invisível, omissa. Que tipo de relacionamento pode surgir daí? Certas vertentes do movimento feminista sustentam que o debate sobre a causa deve ser protagonizado pelas mulheres, e apenas por elas. É um contraste em relação ao HeForShe, que apela à participação masculina? Essas vertentes defendem que as mulheres tomem a iniciativa na defesa de sua luta. Mas isso não exclui a participação do homem. Pelo contrário. Claro que historicamente os papéis de gênero foram definidos por uma lógica machista, e quem precisa se libertar dessa lógica são elas. Mas os homens também vivem submetidos pela lógica da dominação. É preciso entender que a conquista dos direitos das mulheres não implica perda de direitos dos homens, mas na equidade entre os sexos. Há uma dificuldade no entendimento das bandeiras feministas contemporâneas por parte dos homens? Na campanha Chega de Fiu Fiu, da jornalista brasileira Juliana de Faria, outra iniciativa elogiada pela ONU, o assédio de mulheres em espaços públicos era considerado por muitos mero ‘elogio’. Só na cabeça de um homem educado no machismo um assobio, um grito ou uma buzinada na rua podem ser considerados elogios. A mulher não é um objeto de conquista: esse é o problema. Se você quer conhecê-la, pode fazer isso com uma conversa, mostrando sua inteligência, seus argumentos. No fiu-fiu e na buzinada apenas se rebaixa e constrange a mulher, colocando-a na posição de objeto para alimentar seu ego, nada mais. Na quarta-feira, a Anistia Internacional divulgou nota sobre recentes casos de mortes de mulheres em abortos clandestinos no Brasil e defendeu ‘a urgência do debate sobre o tema no país’. De que maneira a questão, tão sensível no atual período eleitoral, se articula com o tema da igualdade? A dificuldade que se tem ao abordar o aborto no Brasil decorre evidentemente da questão religiosa, que impõe uma determinada moral. Mas o fato é que a proibição priva a mulher de ter autonomia sobre o próprio corpo. A questão central é tornar a mulher livre de uma moral imposta de fora, pela sociedade. E, neste período de eleições, exatamente como ocorre com a questão da maioridade penal, o aborto reaparece sem uma argumentação séria por trás – com o único objetivo de mexer com as emoções dos eleitores. Como quebrar a resistência que ainda existe à igualdade entre homens e mulheres? Políticas públicas de conscientização, debates nos meios de comunicação ou nas novelas são importantes. Mas, como disse, tudo começa em casa: a postura dos pais em relação aos filhos é fundamental. Se a criança vê desde cedo o pai e a mãe compartilharem tarefas domésticas, cuidarem ambos de sua educação e de sua saúde, terem voz igual nas decisões na família, o avanço é maior. Nós homens ainda estamos bem perdidos, num deserto muito grande, passando por uma crise enorme por não entender por que essa nova mulher nos ameaça. Mas a ameaça somos nós mesmos quando não entendemos a força e a libertação que elas estão propondo à sociedade. Libertação, também, de nós mesmos.
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Fonte: IHU
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