Plataforma digital reúne análises, pesquisas e fontes com o intuito de desconstruir estereótipos de gênero presentes na cobertura jornalística. Para especialistas, conteúdos contribuem para o enfrentamento do feminicídio no país
Acesse o Dossiê Feminicídio
Evitar mortes anunciadas por meio da conscientização social. É com esse desafio que o Instituto Patrícia Galvão divulgou ontem (07/11) o Dossiê Feminicídio, uma plataforma digital que reúne análises, pesquisas e fontes sobre essa que é a mais extrema forma de violência contra as mulheres. Junto à plataforma, o Instituto também lançou uma ação de comunicação nas redes sociais para resgatar as histórias de vítimas de feminicídio, usando a #InvisibilidadeMata.
O Brasil é hoje o 5º país com maior taxa de assassinatos femininos no mundo, segundo o Mapa da Violência 2015. Para a diretora do Instituto Patrícia Galvão, Jacira Melo, o feminicídio no país é “uma trágica realidade e uma questão urgente”. Diante desse cenário, o intuito do Dossiê é contribuir para o enfrentamento da violência contra as mulheres por meio da divulgação de dados e informações visando aumentar e aprofundar as discussões sobre o tema e por isso a plataforma também traz indicações de fontes especializadas para subsidiar a cobertura da mídia. “Nosso foco é disponibilizar informações qualificadas para que a imprensa faça o seu papel de ampliar o debate público e cobrar do Estado ações efetivas para o enfrentamento dos assassinatos cotidianos de mulheres por parceiros e ex-parceiros”, frisa.
Compreender para evitar o desfecho fatal
A produção do Dossiê foi coordenada pelas jornalistas Marisa Sanematsu e Débora Prado, que apresentaram as ferramentas oferecidas pela plataforma a profissionais que atuam no atendimento direto a mulheres em situação de violência e a comunicadores que participaram do debate de apresentação da plataforma, realizado na Escola Superior do Ministério Público de São Paulo.
Para a construção do Dossiê foram consultadas diversas pesquisas, dados, documentos e legislações de referência. Também foram entrevistadas dezenas de especialistas de todas as regiões do país – pesquisadoras, operadores do Direito, profissionais que atuam no atendimento a mulheres, gestores, peritos, delegados, ativistas feministas, antirracistas e que defendem direitos de mulheres lésbicas, bis, transexuais, travestis e outros.
A editora executiva Débora Prado, que coordenou o projeto do Dossiê, lembrou que a expectativa é que a página seja consultada tanto por especialistas e jornalistas quanto por todos os que desejam compreender o que significa feminicídio. “Apesar de ser uma violência nomeada, com legislações em vários países da América Latina, pouco se fala sobre o que é feminicídio e o termo pouco aparece no debate público feito por meio da mídia”.
A diretora de conteúdo Marisa Sanematsu apontou que as mortes das mulheres seguem invisibilizadas tanto nas estatísticas quanto na mídia. “O que vemos é uma cobertura que quando cobre o problema do feminicídio o faz de forma rasa, apelando ao senso comum, abusando de estereótipos e invariavelmente culpando a vítima pela própria morte, o que é muito grave. A sociedade precisa discutir mais esse problema para que as mulheres não continuem morrendo dessa forma”, alerta.
O machismo mata as mulheres
Marisa explica que o que diferencia o feminicídio dos outros crimes são características muito específicas e dinâmicas muito complexas, por isso a visão de gênero é fundamental, tanto para lidar diretamente com esses crimes como ao fazer a cobertura jornalística. “É preciso procurar ver a motivação de gênero no assassinato dessas mulheres, porque às vezes ela pode não estar evidente. Na cobertura da imprensa o que se mostra é o estágio preliminar de uma investigação policial, o que é muito pouco para ter uma ideia desse fenômeno. É preciso estudar melhor esse problema para que as mulheres tenham direito à própria vida”.
Para a promotora Silvia Chakian, coordenadora do GEVID do Ministério Público de São Paulo, o Dossiê contribui para desconstruir conceitos que foram construídos ao longo da história e que foram normatizados no Sistema de Justiça e nas leis, tendo peso até hoje. “Na grande maioria das vezes esses crimes acontecem num contexto de relação de poder, de necessidade de perpetuação do domínio e de não respeito ao não da mulher a um relacionamento ou a um novo relacionamento. É preciso demonstrar e fazer com que a sociedade e os profissionais da mídia se apropriem desses conceitos, porque passar as informações de uma forma tão estereotipada e equivocada, muitas vezes até culpabilizando a mulher, só reforça a violência. É preciso desconstruir. Ele matou porque existe aí uma raiz cultural muito maior, relacionada ao patriarcado e ao machismo, que caminha de mãos dadas com a violência e que mata essa mulheres. Se não fosse o machismo elas não estariam mortas.”
A promotora enfatiza que a contribuição do Dossiê será importante para pontuar que estas são mortes evitáveis. “São tragédias anunciadas. Os últimos casos que tivemos foram de mulheres que morreram gritando por socorro, acionando o Sistema de Justiça e pedindo ajuda. Isso é muito mais grave e faz refletir sobre a nossa responsabilidade, sociedade e Estado, na morte dessas mulheres, que registraram Boletim de Ocorrência e pediram medida protetiva que foi negada, não por um equívoco, mas pela falta de compreensão sobre as circunstâncias que permeiam a violência contra a mulher. O Dossiê contribui muito para profissionais da mídia, mas hoje os operadores do Direito vêm cada vez mais se apropriando desses conteúdos para aprender a lidar com esses casos numa perspectiva de gênero”.
A realização do Dossiê foi possível por meio do apoio da Secretaria da Políticas para Mulheres do Ministério de Justiça e Cidadania e da parceria com a Campanha Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha. A especialista Aparecida Gonçalves, que esteve à frente da Secretaria de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da SPM ao longo de 13 anos, destacou a importância de dar visibilidade ao feminicídio. “Colocar os dados à disposição da população, dos estudantes, dos pesquisadores, professores e das próprias mulheres é fundamental, primeiro, para que as pessoas tenham consciência do fenômeno do feminicídio no Brasil. Segundo, porque é uma questão que está invisível e as pessoas precisam enxergar o que está acontecendo. Terceiro, ter consciência de que o crime de feminicídio não é apenas um assassinato, mas efetivamente um crime de ódio contra as mulheres, que morrem por serem mulheres”.
A secretaria adjunta de enfrentamento à violência da SPM, Betânia Assis, também destaca a necessidade de falar sobre o assassinato de mulheres no contexto de gênero. “A Lei do Feminicídio dá mais visibilidade às mulheres que são assassinadas e mostra que esses não são apenas casos de homicídio. As mulheres são assassinadas não só pelos companheiros, pessoas próximas, mas também quando estão na rua. É preciso enfatizar a questão de gênero”.
O papel das diretrizes
Entre os materiais disponibilizados pelo Dossiê e que serviram de base para a construção da plataforma estão as Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres – Feminicídios, documento lançado neste ano pelo Escritório da ONU Mulheres no Brasil e o governo federal com o objetivo de contribuir para a identificação e eliminação das discriminações de gênero contra as mulheres.
A especialista Wânia Pasinato, coordenadora de Acesso à Justiça da ONU Mulheres Brasil, pontua que as Diretrizes foram lançadas com o objetivo de posicionar o debate e trazer o conceito do feminicídio e que o Dossiê se soma a esse esforço ao traduzir o documento para um formato “acessível, abrangente e amplificado em diferentes vozes que se alinham num de olhar de gênero”, abrindo o documento a uma nova discussão.
“Esse documento tem que ser vivo, tem que ser apropriado, utilizado e transformado e o Dossiê também proporciona isso ao permitir que se ajude a construir o conceito do feminicídio, transformar a visão sobre essas mortes e ver que para além da violência doméstica e familiar, as mulheres também estão morrendo em outros espaços e contextos e aí temos toda a ideia de menosprezo e discriminação para ser construída, porque ela ainda não é conhecida. Não se reconhece o menosprezo e a discriminação de gênero como causa da morte dessas mulheres nos diferentes contextos em que elas ocorrem no país, e temos mulheres negras morrendo mais do que brancas, jovens morrendo mais do que mulheres em fase adulta. São características importantes que ainda a sociedade, a mídia, o Sistema de Justiça e, principalmente, o Estado, ignoram”.
Géssica Brandino/Agência Patrícia Galvão