Correta aplicação do artigo 16 da Lei Maria da Penha, que estabelece a condição para a retirada da denúncia pela mulher vítima de violência, ainda é um desafio no País, fazendo desse dispositivo um dos mais polêmicos do marco legal. Sua aplicação de forma adequada, entretanto, pode salvar a vida de brasileiras. Juiz: está tudo bem com a senhora? Mulher: Não, ele me agrediu de novo no sábado, me agrediu na cabeça e no rosto. Ele chegou do trabalho nervoso, dizendo que eu só dou prejuízo e que queria afundar ele. Aí começou a quebrar as coisas em casa. Eu pedi pra ele não me bater porque tô grávida, né? Mas ele disse que não tá nem aí, me jogou um pote na cabeça e me chutou. Aí ele disse que se eu denunciar ele, ele me mata. Juiz: E a senhora denunciou? Mulher: Não, fui pra casa da minha amiga. Fiquei com medo, ele disse que me matava. Juiz: A senhora gostaria de ir para uma casa abrigo? Mulher: Não, eu preciso trabalhar, preciso levantar um dinheiro pra voltar pra casa da minha mãe. O diálogo acima foi um dos nove presenciados pela reportagem do Portal Compromisso e Atitude durante uma tarde de audiências do artigo 16 da Lei nº 11.340/2006 – que estabelece a condição para a renúncia à representação nos casos de ações penais públicas condicionadas – no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Núcleo Bandeirante, Distrito Federal. A mulher que conta a história, inicialmente, não havia comparecido à audiência, marcada em razão de seu pedido de retirada da denúncia realizada contra o companheiro por ameaçá-la. Alertado pelo risco existente no caso pela equipe psicossocial da Vara, o juiz que conduzia as audiências, Ben-Hur Viza, pediu que um carro do Fórum fosse buscá-la em casa. Ao chegar no Fórum, uma agressão ocorrida há dois dias e não denunciada se tornou conhecida pelo Sistema de Justiça: a mulher apresentava hematomas no olho. Nos 10 minutos de conversa, a vida real trouxe para o mundo dos operadores do Direito muito daquilo que vem sendo discutido desde 2006 para a correta aplicação da Lei Maria da Penha: a retratação por medo ou vergonha e necessidades financeiras afastam muitas mulheres da denúncia e, portanto, muitos agressores da devida responsabilização. Ainda que a vítima no caso ilustrado pelo diálogo não quisesse prosseguir com a denúncia de ameaça, seu companheiro teria que responder criminalmente pela nova agressão, uma vez que se trata de uma lesão corporal – crime que não exige a representação da vítima para ser processado pelo Estado brasileiro. Diante do relato da violência, na própria audiência foi determinada a prisão preventiva do agressor, a expedição de uma medida protetiva para a vítima e ainda a disponibilização de uma viatura policial na porta do Fórum para acompanhá-la imediatamente ao IML (Instituto Médico Legal) e à delegacia para a abertura de um novo inquérito pelas agressões recentes. Aplicação equivocada: uma herança da lei que autorizava a violência doméstica Os nomes das nove mulheres que passaram pela sala de audiências naquela tarde foram omitidos para preservar a segurança e os direitos das vítimas. São mulheres de todas as idades, credos, profissões e níveis de renda. A maioria trabalha. De todo modo, esses nomes não precisariam ser revelados, já que a situação vivida por essas mulheres faz parte de um contexto social em que uma mulher é agredida a cada cinco minutos no Brasil, conforme apontam as pesquisas e dados sobre a violência doméstica no País. Ao mesmo tempo, as experiências de cada uma são importantes para lembrar que por trás das estatísticas estão milhares de mulheres que vivem com o risco constante e a permanente violação de seus direitos humanos. Algumas mulheres manifestavam o desejo de retirar a representação, alegando que após a denúncia o episódio de violência não se repetiu e o comportamento do parceiro melhorou. Alguns deles, participaram do grupo de atendimento psico-social para agressores. Outras estavam em situação evidente de medo. Algumas foram convencidas por parentes ou pelo próprio companheiro que a violência era mútua e que de alguma forma a mulher que havia provocado. Os operadores do Direito, por sua vez, buscaram identificar se a vítima havia sido coagida a retirar a denúncia e se vivia em situação de violência ou risco por meio de perguntas como: houve um novo episódio de violência?; houve novas ameaças ou agressões?; o agressor tem feito contato com a vítima?; por que há a vontade de retirar a denúncia? Durante todas as audiência, uma advogada está presente para orientar a mulher e promover a defesa de seus direitos – o que aconteceu no caso acima. A equipe psicossocial também pode ser acionada. A condução do pedido de renúncia desta forma, porém, não é uma realidade em todo o território nacional. Pelo contrário, na obra a Lei Maria da Penha Comentada, o promotor Fausto Rodrigues de Lima constata que os Juizados de Violência Doméstica promovem audiências em todos os casos, mesmo sem o pedido das vítimas, para questioná-las sobre seu desejo de desistir do processo penal contra seus agressores. Com esse procedimento equivocado, segundo o promotor, esses operadores do Direito insistem na aplicação de disposições da Lei nº 9.099/95, afastada pela Lei Maria da Penha para os casos de violência doméstica, colocando a mulher em risco ao invés de protegê-la. Não à toa, o artigo 16 é uma das disposições polêmicas do novo marco legal. “O artigo 16 foi pensado para abolir as retratações (que a Lei denomina renúncia) extrajudiciais e tácitas, popularizadas nos Juizados Especiais Criminais. Perigosamente, alguns têm usado o dispositivo para obrigar as vítimas a participar de uma audiência para ratificar a representação anteriormente prestada na polícia”, contextualiza o promotor na obra, destacando a diferença patente entre as duas legislações: “enquanto para a Lei n° 9.099/95, que visava evitar o máximo possível o processo criminal, a vítima devia comparecer em juízo para ratificar a representação, no novo sistema de proteção integral às vítimas, instituído pela Lei nº 11.340/06, é a renúncia à representação que deve ser ratificada em Juízo”. Ou seja, apenas quando se tratar de crimes de ação penal condicionada à representação e as vítimas manifestarem, voluntariamente, interesse em renunciar é que o juiz deve designar a realização da audiência. Quem deve procurar o Estado para o encerramento do caso é a vítima, e não o contrário. E o foco da audiência deve ser, acima de tudo, preservar a integridade e os direitos humanos das mulheres. Ameaça levada a sério Como o STF afastou a necessidade da denúncia da vítima nos casos de lesão corporal, o crime dependente de representação mais comum nessas audiências do artigo 16 é o de ameaça e outras formas de violência psicológica – aqueles que não deixam evidências aparentes e que, portanto, correm maior risco de serem considerados menos importantes na esteira do legado de banalização da violência doméstica deixado pela Lei 9.099. A compreensão da gravidade desta violência pelos operadores de Justiça, nesse contexto, é ainda mais necessária para garantia dos direitos assegurados pela Lei Maria da Penha. Com isso, mesmo nos casos em que a mulher insiste em retirar a denúncia, seria importante, na avaliação do juiz Ben-Hur Viza, que o Estado continuasse acompanhando o conflito de alguma forma, pois é sua responsabilidade garantir a integridade física das mulheres. Nesse sentido, para o juiz, faltam serviços aos quais o Poder Judiciário possa recorrer nesses casos, tanto para acompanhamento da vítima, quanto do homem autor de agressão, conforme previsto pela Lei Maria da Penha. “O que as mulheres que vêm a essa audiência mais querem não é acabar o relacionamento em si, mas sim acabar com a violência, mesmo porque a violência, muitas vezes, continua mesmo depois de a relação ter terminado. Por isso precisamos checar se essa mulher está ameaçada, se precisa de medida protetiva”, recomenda o juiz. “É preciso ainda tomar cuidado para evitar a revitimização. A mulher que tem a coragem de denunciar não pode ser mal recebida pelo Sistema de Justiça. Por vezes, ela quer desistir da denúncia por medo ou por algo que uma medida protetiva já resolve. Muitas vezes, faltam também condições financeiras. Eu já tive o caso de uma mulher que pediu para soltar o seu agressor porque os filhos do casal estavam passando fome. É preciso entender tudo isso e tomar cuidado para não dizer coisas que desencorajem a mulher”, acrescenta. Casos que ganharam repercussão pública, como os assassinatos de Eliza Samudio e Mércia Nakashima, mostram que, quando se trata de violência doméstica, as ameaças têm que ser levadas a sério. A correta aplicação da Lei e atualização da doutrina jurídica para inclusão das inovações que ela trouxe indicam um caminho para evitar que as vidas de milhares de mulheres tornem-se estatísticas alarmantes. Segundo o Mapa da Violência 2012, divulgado pelo Instituto Sangari, 43,7 mil mulheres foram assassinadas no Brasil entre 2000 e 2010. O estudo aponta ainda que altas taxas de homicídios costumam ser acompanhadas de elevados níveis de tolerância à violência contra as mulheres e, em alguns casos, são exatamente o resultado dessa negligência.
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Fonte: Portal Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha
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