“Considero esse encontro essencial para o futuro das Ciências Sociais”; foi com essa fala, pronunciada em inglês com sotaque australiano, que a socióloga Raewyn Connell abriu a palestra “Descolonizando o gênero: teorias de gênero ao sul do globo no século XXI”, realizada na Faculdade de Educação da USP nesta terça-feira, 27 de agosto, e organizado pelo Grupo de Estudos de Gênero, Educação e Cultura Sexual (EdGES), do qual faço parte. Baseada principalmente nos achados de suas pesquisas que culminaram na obra “Southern Theory: The global dynamics of knowledge in social science” (2007), Connell propôs uma revolução na nossa forma de entender, criticar e se apropriar do conhecimento que circula globalmente, sobretudo nas humanidades. Sua fala circulou em torno das teorias de gênero, sua especialidade, mas facilmente transbordava para além. Neste contexto, Connell tem se aproximado do assim chamado “estudos pós-coloniais”, uma tentativa de descolonizar o que é ainda em nós é tão colonizado. No seu caso, e ela não é a primeira e nem será a última a dizer isso, a colonização do conhecimento. Em outras palavras, refere-se à importação acrítica de teorias e métodos gestados no Norte global (com ênfase em EUA e Europa Ocidental) para compreender e conceituar problemas do Sul (o restante do mundo, a maioria dos países e povos), tema já discutido em outro texto. Sua fala é um convite à reflexão e por vezes soa bastante desafiadora. Figuras quase unânimes como Simone de Beauvoir ou Judith Butler foram evocadas, não como fonte de ideias, senão para ilustrar duas pensadoras que, apesar de sua excelência e importância, inevitavelmente escreveram a partir de sua própria experiência. O pulo do gato não é ignorá-las, mas colocá-las no seu contexto e buscar alternativas mais diversas. Por que teríamos que entender a mulher partindo sempre das mesmas autoras consagradas? Tal questionamento se estende a demais esferas, trocando-se “mulher” por outras categorias e conceitos. Não é à toa que Beauvoir e Butler são, respectivamente, europeia e estadunidense. Assim como o são autores como Bourdieu e Foucault (franceses), Marx (alemão), Bauman (polonês), Giddens (britânico), Coleman (estadunidense) etc. A hegemonia euro-americana que se construiu sobre as Ciências Sociais – e que também se estende às demais – não é a consequência de uma pretensa superioridade dos/as nossos/as colegas do Norte. Essa relação assimétrica tem uma história. De fato, uma complexa história sócio-político-econômica e cultural que se iniciou na colonização e explica, entre outras, porque sempre estamos pelo menos um passo atrás na produção do conhecimento. Assim, a proposta da Connell não foi jogar fora as “teorias do Norte”. Isso seria um equívoco. Mesmo ela, quem formulou o conceito de “masculinidade hegemônica”, o fez com base em Antônio Gramsci, um filósofo italiano de inspiração marxista. O Norte está aí também. Mas não é esse o ponto. A questão é mais estrutural, mais sistêmica: como alterar radicalmente uma dinâmica na produção de conhecimento, as relações de dependência do Sul pelo Norte e as desigualdades de gênero (de raça, classe…) em âmbito global? Uma das respostas está na busca de alternativas. Nesse sentido, a palestra da Connell foi bastante rica. Ao longo de sua fala, foi se construindo outra forma de entender o conhecimento nas humanidades pautando-se sempre por referências fora da Europa e EUA. Citaram-se inclusive alguns autores que já foram trabalhados nesse blog, como a australiana Chilla Bulbeck (leia aqui) e o beninense Paulin Hountondji (leia aqui). Só que a lista é maior e inclui nomes como Marnia Lazreg (Algéria), Fatima Mernissi (Marrocos), Uma Chakravarti (Índia) e Amina Mana (Nigéria), figuras desconhecidas por nós, por países do Norte e do Sul e, quem sabe, pelos seus próprios países. Ao se trazer novas perspectivas, muda-se a maneira de entender o problema, de enunciar a nossa realidade, de buscar soluções. As dúvidas aumentam, porque os caminhos mais seguros – das teorias consolidadas, reconhecidas e amplamente utilizadas – vão se tornando mais confusos. Mas o convite está feito. No início, afirmei que a Connell não será a última a falar sobre isso, pois a lição é deixada para as novas gerações de cientistas sociais, educadores/as e pensadores/as no geral. E que nós possamos descolonizar não só o gênero, mas os demais aspectos da vida social na construção de relações globais mais igualitárias e justas para seus respectivos povos e nações. |
Fonte: Ensaio de Gênero
|