Um movimento com vitórias no currículo e desafios de diversas ordens pela frente. Essa é a opinião de feministas brasileiras ouvidas pelo CLAM para analisar os rumos que o movimento de mulheres brasileiro tomou nos últimos anos e os caminhos a perseguir no futuro. Do ponto de vista mais amplo, afirmam feministas, a pauta do movimento de mulheres no Brasil tem se diversificado, girando em torno de 4 dimensões da vida cotidiana. “O tema da violência, seja a violência que se dá pela ausência de políticas públicas, seja a violência que se observa em termos culturais e ideológicos, seja ainda a violência física propriamente. O tema da autonomia reprodutiva e autodeterminação das mulheres sobre o seu corpo, que diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos. A questão do mundo do trabalho, cuja inserção feminina tem sofrido impactos do modelo desenvolvimentista que o país tem praticado, que inclui a construção de hidrelétricas e a expansão do agronegócio e afeta, assim, a autonomia econômica de mulheres rurais, ribeirinhas e pescadoras, assim como das mulheres indígenas e quilombolas. E, por fim, a participação das mulheres nas instâncias de poder”, destaca Silvia Camurça, integrante do “SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia” e militante da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB). As violências de cada dia A condição da mulher na sociedade brasileira tem passado por mudanças. Avanços têm sido registrados, especialmente naquilo que a socióloga Maria Betânia Ávila denomina como a pauta mais visível. Em matéria de violência contra a mulher, o Estado brasileiro discutiu e definiu uma legislação específica, a Lei Maria da Penha, de 2006, que endurece as penas ao agressor e garante proteção às mulheres vítimas de violência doméstica. Nesse contexto, o espaço ganho na mídia e a construção de políticas públicas indicam que o enfrentamento cotidiano é uma preocupação, apesar dos problemas que os serviços e a aplicação da justiça possam enfrentar. Para além da violência doméstica, outras questões têm obtido visibilidade, como a violência sexual sofrida fora de casa. Há algumas semanas, os termos “encoxar” e “encoxadores” tornaram-se mais conhecidos dos brasileiros, depois que a imprensa revelou a existência de páginas na internet que reúnem homens que assumidamente abusam de mulheres em transportes públicos. O desprendimento em tornar público o que é uma grave violação de direitos humanos chama a atenção. De acordo com Maria Betânia Ávila, tais atos ilustram o grau de machismo e patriarcalismo da sociedade brasileira. “É uma cultura arraigada, fundada em uma ideia de poder e superioridade dos homens, como se eles tivessem o direito a fazer o que bem entendem e sentem. É uma questão muito grave, pois remete a uma expressão de subjetividade, de ordem simbólica, que acaba valendo como regra da vida. É o que está na base de todas as violências, físicas ou não, que vitimam as mulheres: a ideia de que isso é natural. Vivemos em um país com uma história patriarcal, racista e homofóbica. Isso precisa ser combatido permanentemente. É, nesse sentido, uma pauta contínua do feminismo e que precisa ser tratada pelas políticas educacionais”, considera a coordenadora do SOS Corpo. Relações desiguais de gênero no espaço doméstico Assim como a mobilidade e segurança diferenciadas nos espaços públicos para homens e mulheres, persiste ainda uma série de outras práticas que demarcam fronteiras desiguais para elas. A divisão sexual do trabalho no ambiente doméstico, por exemplo, ainda é largamente desigual. Pesquisa do Instituto Data Popular em parceria com o SOS Corpo mostra que a divisão do trabalho em casa continua injusta, apesar da maior participação das mulheres no mercado de trabalho. Dentre as 800 mulheres entrevistas no estudo, 7 em cada 10 afirmaram que sentem falta de tempo no dia a dia, números condizentes com os 71% de mulheres que, tendo empregos, também são responsáveis pelas tarefas de cuidado da casa e da família. “Em casa, não há divisão de trabalho. A responsabilidade permanece sendo uma atribuição majoritariamente feminina. Uma situação que não diz respeito apenas às relações de gênero no espaço doméstico. Diz respeito também à precariedade da política de creches no país. Apesar de o governo federal estar movimentando-se na questão das creches, há problemas administrativos na relação entre as esferas federal e municipais que dificultam a execução da política de creches. Assim, há uma série de fatores que contribuem para que a questão das relações de gênero não seja combatida efetivamente”, argumenta Maria Betânia Ávila. Sub-representação feminina nos espaços políticos A matemática do gênero também é desigual quanto se fala da participação política das mulheres nos poderes e nos partidos políticos. Elas representam 51,3% dos 196 milhões que compõem a população brasileira, segundo o Censo do IBGE de 2010. Isso significa que há 5 milhões de mulheres a mais que homens. Apesar de serem maioria da população, na política, no entanto, elas estão sub-representadas, especialmente quando se olha para o Congresso Nacional: no Senado, das 81 vagas, apenas 13 são de senadoras; na Câmara, das 513 vagas, 44 são ocupadas por mulheres. Tal panorama existe apesar de haver políticas de promoção da equidade de representação da mulher na política. De acordo com a legislação eleitoral, os partidos devem reservar 30% das candidaturas às mulheres, uma previsão fruto dos esforços feministas, mas que tampouco tem dado conta das disparidades. Nesse contexto, de acordo com Maria Betânia Ávila, a reforma política brasileira é uma demanda importante na pauta feminista. “Sem a participação das mulheres nos processos de discussão e definição de leis e políticas públicas, os direitos femininos ficam ameaçados. Aliás, a baixa representação das mulheres já é um sinal claro dos obstáculos que enfrentamos. Por isso, a reforma política com ênfase na paridade de gênero é fundamental para que as mulheres estejam presentes nos processos decisórios”, destaca a coordenadora do SOS Corpo, que ressalta ainda a desigualdade que impera nos partidos políticos. “A democratização da esfera política demanda muito esforço. Nossos partidos políticos são organizações muito hierárquicas, marcadamente patriarcais. Como podemos falar em igualdade de gênero se nem os partidos políticos operam nesse sentido? As disparidades se dão nas diversas esferas políticas, o que reforça a importância de uma reforma política. Não é um tema que tenha tanta repercussão midiática, mas é muito caro para os direitos femininos”, completa Maria Betânia. Na opinião de Silvia Camurça, o sistema político brasileiro representa um entrave à mulher. “Nossos sistema político, em termos eleitorais, funciona através do voto nominal, no qual o eleitor vota no candidato. As experiências históricas de outros países, como Argentina, Uruguai e Costa Rica, demonstra que o voto em lista é um modelo inclusivo: vota-se em uma lista de candidatos escolhidos pelo partido e, nesse sentido, cria-se, através de um respaldo legal, a possibilidade de que a indicação dos candidatos seja feita em bases mais equitativas de gênero. Como está, nosso sistema político não favorece à inserção da mulher nos espaços de poder. Mais do que um problema eleitoral, a desigualdade de gênero afeta o poder público como um todo, Omo o Judiciário e o Executivo. Logo, a reforma política é uma questão importante para a pauta do feminismo no Brasil”, argumenta Silvia Camurça. A presença de uma mulher na Presidência do país é vista por Maria Betânia Ávila como um marco importante na história de luta feminista. Em 2010, a eleição de Dilma Rousseff significou que pela primeira vez o Brasil, um país cuja formação social está marcada pelas assimetrias de gênero, seria governado por uma mulher. Desde então, as demandas de mulheres têm sido pautadas na agenda pública, muitas vezes pelo viés negativo, tendo em vista a linguagem conservadora que tem avançado em diversos espaços da sociedade brasileira. Há, contudo, o reconhecimento de certos avanços conquistados nos últimos anos. “A presença de uma mulher no posto mais alto do país tem muito a ver com a luta do movimento feminista. Acredito que há um processo de identificação. Não significa que isso corresponda à igualdade de gênero no país. Muito pelo contrário, sabemos a situação que vivemos, mas indica que é possível continuar na luta e esperar por resultados positivos ao longo do processo”, afirma Maria Betânia Ávila. Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres na mira fundamentalista Na lista de desafios do feminismo, Maria Betânia aponta as forças conservadoras que dificultam e impedem os avanços dos direitos das mulheres. Nos últimos anos, o Brasil tem assistido a uma ocupação crescente de setores religiosos conservadores e dogmáticos nos espaços políticos. Assim, um ambiente que já é tradicionalmente pouco habituado à figura feminina, torna-se terreno fértil para discursos contrários aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Nesse contexto, projetos como o Estatuto do Nascituro, que busca atribuir ao embrião a mesma proteção jurídica e civil de pessoas nascidas, e a não ampliação das possibilidades de aborto para além dos permissivos legais (gravidez por estupro ou com risco de morte à gestante) na reforma do Código Penal – datado de 1940 – integram o rol de ações influenciadas por pressões religiosas. Também no Congresso, tramitam dois projetos de lei que procuram alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no sentido de ampliar o conceito de “primeira infância” desde o momento da concepção, o que teria impactos diretos sobre a questão do aborto, uma vez que fortalece o argumento da defesa da vida desde a concepção, defendido pelos opositores ao direito da interrupção de uma gravidez. Na mesma linha, a sanção do PL 03/2013 pela presidenta Dilma Rousseff, ano passado, foi atacada por tais setores. O projeto regulamenta o atendimento emergencial e multidisciplinar das vítimas de violência sexual no sistema de saúde público, garantindo às mulheres contracepção de emergência. “Vivemos um período de ameaças aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Felizmente, a presidente Dilma não cedeu às pressões e reconheceu a demanda. No entanto, tais setores têm reforçado uma moralidade que é ofensiva e prejudicial às mulheres. Estamos lidando com discursos que atuam tanto no campo ideológico, reiterando visões de mundo autoritárias e desiguais, como no campo prático e político, patrocinando ataques aos direitos das mulheres através de leis. Tais movimentações religiosas são muito articuladas. Na verdade, são ações de alcance mundial. Do meu ponto de vista, são setores que não respeitam a democracia, por isso, não podemos legitimá-los como sujeito de diálogo”, afirma Maria Betânia Ávila. De acordo com Silvia Camurça, o fenômeno do conservadorismo religioso nos espaços políticos não é novo. A maior expressão de tais setores nos dias atuais reforça a necessidade de um pacto entre os movimentos sociais em benefício de uma aliança eleitoral para combater o fenômeno. “São setores que atrasam os direitos das mulheres e, de uma forma mais ampla, os direitos de movimentos rurais, de negros, indígenas. Eles se articulam com outros setores conservadores e barram a agenda democrática. Por isso, a atuação do feminismo deve levar em conta outros movimentos para fazer frente ao fenômeno”, afirma Silvia Camurça. Nas décadas de 1980 e 1990, destaca Maria Betânia Ávila, o movimento feminista tinha uma configuração diferente da atual: era menos diverso, enquanto que nos dias de hoje está presente em diversos espaços e está capilarizado em meio aos distintos movimentos sociais. Nesse contexto, o feminismo aparece articulado na bandeira de luta de movimentos rurais, sindicais, negros, entre outros. “Isso representa um avanço importante, uma maior extensão que representa não apenas uma auto-afirmação do feminismo como movimento, mas também a pluralidade de demandas e desafios que a situação das mulheres impõe no contexto brasileiro. Sem essa transformação, o movimento feminista não teria condições de continuar na luta por mudanças”, observa Maria Betânia Ávila. |
Fonte: Clam – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos
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