Propostas na Câmara Federal podem dificultar atendimento a mulheres vítimas de crimeEnquanto a cultura do estupro rende debates nos quatro cantos do país – motivados por crimes contra adolescentes ocorridos no Rio de Janeiro e no Piauí no mês de maio –, tramitam na Câmara dos Deputados, em Brasília, ao menos quatro Projetos de Lei (PL) que representam, de acordo com especialistas, um retrocesso na política de combate aos abusos e na assistência às vítimas. As propostas incluem orientações que, por exemplo, dificultariam o atendimento de mulheres e até mesmo impediriam o aborto em caso de violência sexual, ambos previstos em lei atualmente. O mais polêmico é o PL 5.069/2013, de autoria do presidente afastado da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), e de outros 12 deputados federais, que determina que o estupro seja provado por meio de exame de corpo de delito e denunciado em boletim de ocorrência para que a vítima possa realizar o aborto. O texto deixa por conta do profissional de saúde a decisão de aconselhar, receitar e administrar procedimento ou medicamento abortivo, sem definir o que é abortivo. Fica a critério do médico julgar, por exemplo, se a pílula do dia seguinte é abortiva. Segundo o deputado Lincoln Portela (PRB/MG), um dos autores, o objetivo é preservar a vida. “Pode ser que aconteça de a mulher dizer que foi estuprada três meses após o crime e, nesse caso, paira uma dúvida. Se o estupro não é provado, abre-se uma porta para a cultura da morte”, defende. O parlamentar rechaça a crítica de que a proposta contribui com a cultura do estupro. “O que incentiva isso é o machismo, que coloca a mulher em segundo plano, além da desvalorização da mulher, propagada, por exemplo, em funks, que acabam induzindo a moça a esse tipo de comportamento”, afirma. No entanto, para a representante da ONU Mulheres no Brasil Nadine Gasman, é necessário manter os direitos das mulheres. “Esse é o momento de lutar pela preservação dos avanços. Os serviços públicos de prevenção e atenção e a lei que garante atendimento humanizado de urgência e profilaxia da gravidez devem ser mantidos porque essa é a forma adequada de acolhimento das vítimas”, diz. A coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Marlise Matos, acredita que projetos como esse são característicos de um Estado policialesco e podem gerar recuo nas conquistas das mulheres. “Não precisamos de novas leis, e sim de fazer com que as que já existem sejam de fato implementadas”, diz. Proposta mais recente, o PL 3.983/2015 retira o direito da mulher de escolher interromper a gravidez em caso de estupro. A justificativa dos autores, entre eles o mineiro Eros Biondini (PTB/MG), é que, “ao ser realizado o aborto, uma pessoa inocente é privada de sua vida, sem direito à defesa” por um crime pelo qual deveria ser punido quem o praticou. O deputado não se pronunciou. Estupro coletivo de garota no Rio motivou protestos em todo o país. Foto: José Lucena/Estadão Secretária Posição. A nova secretária nacional de Políticas para as Mulheres, Fátima Pelaes, já se posicionou contra o aborto em caso de estupro, mas disse que o Estado apoiará a vítima que fizer essa opção. Médicos poderiam ser punidos O Projeto de Lei (PL) 5.069/2013 é, segundo a deputada Maria do Rosário (PT/RS), o mais prejudicial às mulheres. “Além de revogar dispositivos da lei que garantem o atendimento às vítimas de estupro, o texto cria uma punição para os profissionais de saúde que orientarem as mulheres sobre o direito à interrupção da gravidez. Esse projeto não pode ser aprovado de forma alguma”, diz. Segundo a parlamentar, o conservadorismo do Congresso dificulta o avanço de pautas que favorecem as mulheres. “Minha prioridade é o PL 3.792/2015, que ajuda vítimas de violência ao determinar que o depoimento seja gravado, para que elas não precisem repetir o que sofreram. Estamos tentando aprovar uma matéria assim há mais de dez anos”, diz. A deputada move um processo contra o deputado Jair Bolsonaro (PSC/RJ) que, em 2014, disse que não a estupraria porque ela “não merecia”. Ela ganhou em duas instâncias na Justiça, mas o parlamentar recorreu. A reportagem não obteve retorno da assessoria de Bolsonaro sobre o assunto. (RM) Mudança virá com desnaturalização da violência Para evitar retrocessos provocados por projetos de lei é preciso desnaturalizar o fenômeno da cultura do estupro, como analisa a coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher da UFMG, Marlise Matos. “Culpar a vítima de estupro por causa da roupa que ela usa, local em que ela está ou companhias ajuda a normalizar a violência sexual, como se fosse responsabilidade da mulher, que, na verdade, é vitima. Além disso, naturaliza o comportamento abusivo dos homens, que vai desde a cantada até a violência física”, diz. Ela afirma que, apesar dessa cultura estar normalizada em filmes e nas relações entre homens e mulheres, é possível mudar a situação. |
|||
Fonte: O TEMPO
|