Segundo ministra da Saúde, sobras das emendas de relator totalizaram R$ 3 bilhões; R$ 600 milhões já foram liberados para municípios
Firme no cargo após intensa pressão para estabelecer uma melhor interlocução com o Congresso, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, declarou em entrevista ao Valor que o grande motivo da crise política está relacionado a um represamento do chamado orçamento secreto – as extintas emendas de relator, que o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucionais no ano passado.
Somente no Ministério da Saúde, as sobras das emendas de relator totalizaram R$ 3 bilhões. A ministra indicou que R$ 600 milhões já foram liberados para projetos cadastrados por municípios nas áreas de atenção primária à saúde e de média e alta complexidade.
Nísia diz entender a cobrança dos parlamentares pelo ritmo de liberação dos recursos, mas alega que era preciso respeitar a decisão do STF. “O Supremo definiu isso. Esses R$ 3 bilhões não se aplicam ao conceito de emenda. É um valor que o Ministério da Saúde deve alocar nas suas ações programáticas”, esclareceu.
Sobre as emendas impositivas, faz uma comparação com o governo Jair Bolsonaro para comprovar que as críticas não fazem sentido. Ela aponta que a Pasta já empenhou 86% dos recursos até junho. No mesmo período, no primeiro ano da gestão Bolsonaro, o valor dos empenhos foi igual a zero.
Sobre a permanência no posto, afirmou que não tem conhecimento de que formalmente tenham pleiteado seu cargo a Lula. “Eu também não perguntei a ele [Lula] se pensava em mudar. Nem precisei. Ele tem manifestado satisfação com o desempenho do Ministério da Saúde e com as entregas feitas”, pontuou.
Escolhida por Lula, principalmente, por seu desempenho na pandemia à frente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Nísia afirmou que o ministério está desenvolvendo um programa para preparação e resposta a emergências sanitárias, para que o Brasil esteja preparado em caso de outra pandemia.
A ministra rebateu críticas recorrentes de que o Ministério da Saúde não fez entregas no primeiro semestre. “Aí eu comprovo com dados que isso não é verdade”, ressaltou. “Não é uma questão de opinião, de gostar mais ou de gostar menos, é um erro factual”, declarou. Ela já relançou o Farmácia Popular, anunciou o novo Mais Médicos, e o movimento nacional pela vacinação.
Nísia citou o desafio de se retomar o Plano Nacional de Imunizações e alerta para o risco de retorno de doenças já erradicadas, a exemplo da poliomielite. O sarampo já está de volta.
Também destacou que uma das prioridades de sua gestão é fortalecer o complexo econômico e industrial de saúde. A meta estabelecida é para que, nos próximos dez anos, o Brasil tenha 70% de autonomia para produção de insumos, medicamentos e equipamentos de saúde.
Sobre a crise nos planos de saúde e o impacto causado no Sistema Único de Saúde (SUS), destacou que tem feito reuniões com representantes do setor para atenuar o problema.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Valor: Uma das razões da insatisfação de parte dos deputados e senadores com a senhora é a alegação de que as emendas parlamentares estariam sendo represadas no ministério, enquanto eles sofrem pressão dos prefeitos em suas bases eleitorais. Como está o fluxo de liberação desses recursos?
Nísia Trindade: Primeiro, uma constatação. O Ministério da Saúde, desde a Emenda Constitucional 95, perdeu R$ 70 bilhões de seu orçamento. Neste ano conseguimos recuperar um volume expressivo de recursos com a PEC da Transição. Senão, pela lei orçamentária enviada pelo governo anterior, teríamos cortes entre 50% e 60%, e a nossa conversa hoje seria outra. Não haveria recursos para Mais Médicos, para vacinação, ou complexo industrial de saúde. Teríamos que escolher uma ou duas coisas para mitigar uma situação terrível.
Valor: Mas há reclamação dos parlamentares de que recursos do extinto orçamento secreto seriam repassados às prefeituras, que também tiveram os orçamentos reduzidos por causa da crise econômica.
Nísia: Os municípios foram muito penalizados. Por força de lei, os prefeitos arcam com 15% dos gastos de saúde, mas têm arcado com percentual muito maior em alguns casos porque houve desassistência do governo anterior.
Valor: Mas as emendas estão sendo pagas?
Nísia: Sobre as emendas individuais impositivas, nós já empenhamos mais de 86% [dos recursos] até junho, e isso é um ritmo muito bom. Já em 2019, só pra pegar o primeiro ano do governo anterior, de janeiro a junho, não houve nenhum empenho. Mas havia também as emendas de relator, e essa é a queixa maior.
Valor: Por que a maior reclamação dos parlamentares envolve as sobras do orçamento secreto?
Nísia: [Ocorre que] 50% das emendas de relator ficaram para os parlamentares para que eles os destinassem para a saúde, e os outros 50% [foram] para os ministérios, de forma discricionária. Na Saúde, esse montante foi de R$ 3 bilhões. A principal queixa [dos parlamentares] é em relação a esse valor.
Valor: Qual a reclamação deles exatamente?
Nísia: Em parte eu entendo totalmente os prefeitos e também os parlamentares. O Supremo [Tribunal Federal] definiu que esses recursos não são mais emendas. A esses R$ 3 bilhões não se aplica o conceito de emenda porque é um valor que o ministério deve alocar nas suas ações programáticas. Saíram duas portarias hoje [quinta-feira] nesse sentido: são ações para a atenção primária da saúde, e para a atenção de média e alta complexidade, como hospitais.
Valor: E como esses recursos tramitam?
Nísia: Abrimos uma plataforma para que os municípios apresentem os projetos que se encaixem nessas duas linhas, e que avaliamos tecnicamente. Estamos em um momento novo. Nem bem posso usar esse recurso desconsiderando essa realidade anterior, mas não é mais emenda do ponto de vista formal.
Valor: Que realidade deve ser levada em conta para a aplicação dos recursos?
Nísia: Dado o empobrecimento de muitos municípios, muitas vezes a prefeitura depende desse recurso, que estava na emenda do relator, até para pagar a sua folha de pessoal da unidade básica de saúde.
Valor: O dinheiro das emendas virou recurso para custeio?
Nísia: E custeio de ações que deveriam estar equacionadas na rotina. Vamos ter que buscar financeiramente esse equilíbrio do ponto de vista da relação, buscar aquelas ações que tenham maior beneficio para a população. Temos de trabalhar com o Congresso para melhorar o entendimento, a relação e alocação de recursos.
Valor: Desses R$ 3 bilhões das extintas emendas de relator, alguma fatia já foi liberada?
Nísia: Havia saído uma portaria em maio, que definiu os critérios [para os projetos das prefeituras], com alocação de recursos a partir da análise técnica. Hoje saíram duas portarias repassando recursos, algo em torno de R$ 600 milhões.
Valor: A liberação desses recursos vai acalmar os parlamentares?
Nísia: O fundamental é que esses recursos serão usados no SUS [Sistema Único de Saúde], nosso foco é esse. Tivemos que criar os parâmetros, uma plataforma [para cadastro dos projetos]. Queriam que usássemos a plataforma das emendas. Eu disse que não, porque não são mais emendas. A mediação do parlamentar [no trâmite dos recursos] não tem problema, mas a responsabilidade pela demanda é do município e pela resposta é do ministério.
Valor: A demora na liberação dos recursos do antigo orçamento secreto foi o motivo para o Centrão pedir o cargo da senhora?
Nísia: Isso não está claro. Pra mim o que apareceu [sobre pedir o cargo] foi na imprensa. Manifestações de insatisfação com essa questão dos recursos, sim. O presidente Lula me disse, e continua dizendo, que isso está circulando na imprensa, mas em nenhum momento ele falou que alguém pediu o cargo. Isso pode ter acontecido em conversas com lideranças parlamentares.
Valor: A senhora disse em entrevistas que seu perfil excessivamente discreto, às vezes, pode atrapalhar. A senhora vai mudar esse estilo?
Nísia: Elas [as assessoras] sempre cobram que eu dê mais entrevistas. É um equilíbrio difícil porque no ministério, eu me vejo como parte de uma equipe. O todo tem que ser mais importante que as partes. Até porque a saúde não vai avançar se não avançarem as outras pastas, se a economia não avançar. Tenho essa visão, gosto de me comportar como parte de uma equipe. Não é só um estilo pessoal.
Valor: Mas depois de se tornar alvo do Centrão, a senhora vai entrar em campo e fazer mais articulação política?
Nísia: Eu já faço, já atendi mais de 280 parlamentares [em seis meses]. O tempo todo estou recebendo os parlamentares. Mas quero fazer mais reuniões com as bancadas estaduais. Fazer uma agenda sistemática de conversas com os líderes também é importante. Também pedi ao presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL), e ao do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), engajamento maior das duas Casas no movimento nacional de vacinação. Também quero levar as agendas da Saúde ao Congresso, não só receber as legitimas demandas [dos parlamentares].
Valor: Então a senhora se sente segura no cargo?
Nísia: Não perguntei ao presidente se ele pensava em mudar [o ministro da Saúde], nem precisei. Ele tem manifestado a satisfação dele com o desempenho do Ministério da Saúde, com as entregas feitas. Mas ele sempre quer mais. Me pergunta quando vou tratar disso, quando vou cuidar da política das pessoas com deficiência. Eu disse que estamos com consulta pública e, depois, vamos sistematizar e lançar essa política. Depois ele perguntou: e o cidadão que procura o especialista?
Valor: Tem novidade sobre o Mais Especialistas?
Nísia: Passei parte da manhã de hoje no encontro de entidades médicas, e depois, com a Sociedade de Oftalmologia para discutirmos ações conjuntas para o SUS. Precisamos melhorar o acesso às cirurgias de catarata, que estão no topo dos planos estaduais de cirurgias.
Valor: Há muitos anos, discute-se a necessidade de fortalecimento de um complexo econômico e industrial da saúde, mas a ideia sempre fica pelo meio do caminho. O que a senhora pretende fazer para fortalecer este plano?
Nísia Trindade: A primeira questão é retomar essa agenda como uma agenda estratégica para o Brasil. O Ministério da Saúde está fazendo de uma maneira compartilhada como uma agenda interministerial. Nós retomamos o grupo do complexo econômico industrial da saúde com a coordenação do Ministério da Saúde também e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. No longo prazo, vamos trabalhar integrando laboratórios públicos, laboratórios privados, a área de vacinas, de medicamentos e também de equipamentos médicos que, na experiência anterior, foi até hoje onde menos avançamos. A meta é termos em dez anos a possibilidade de o Brasil ter 70% de autonomia nesses produtos. Isso é a meta.
Valor: É basicamente a produção de insumos?
Nísia: É, medicamentos novos, novas terapias e também equipamentos. Nós vimos que houve avanços em algumas áreas na área pública como na área privada. É muita coisa que estamos fazendo, por exemplo, o trabalho de diagnóstico de agenda com todos esses atores.
Valor: O Brasil hoje está mais preparado no caso de enfrentarmos uma nova pandemia? Mudou alguma coisa?
Nísia: O Brasil conseguiu mobilizar, apesar do negacionismo, da falta de coordenação do Ministério da Saúde, apesar de tudo que aconteceu e se expressou nesse número de mais de 700 mil mortes. Durante a pandemia, houve uma expansão da capacidade em alguns laboratórios públicos. Também em universidades que se direcionaram para diferentes tipos de inovação, a própria questão dos respiradores que foi algo sensível na pandemia. Então, houve desenvolvimentos nesse sentido. O que nós vamos fazer aqui no Ministério da Saúde é construir um programa para preparação e resposta à emergência sanitária e isso é muito importante. Isso vai envolver capacidade de mobilizar esses recursos que estão espalhados no país como orientação para uma situação de emergência. Isso envolve também pensar estratégias de rapidamente mobilizar leitos quando isso se faz necessário. O Brasil tem recursos para isso.
Valor: Esse programa emergencial para crises já está pronto ou ainda em desenvolvimento?
Nísia: Estamos desenvolvendo. Nós criamos um centro de inteligência para emergências na área da Secretaria de Vigilância e Saúde. Mas vamos criar um programa mais amplo para isso, a exemplo do que outros países já estão fazendo. O vírus continua a circular. Eles podem dizer que saímos da situação pandêmica, mas, sem dúvida, as vacinas foram fundamentais para essa menor letalidade e gravidade.
Valor: O Brasil diminuiu a cobertura vacinal nos últimos anos. Como retomar os padrões elevados de vacinação? Os municípios, que executam a vacinação na ponta, reclamam da falta de recursos.
Nísia: Propomos um movimento nacional pela vacinação. Isso foi uma proposta que surgiu quase que ao mesmo tempo no Ministério da Saúde e no Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde. A primeira coisa que eu fiz foi retomar esse ambiente de diálogo que estava inviabilizado no governo anterior. No SUS, pela lei mesmo do SUS, você precisa das pactuações entre os entes da federação. Isso não estava acontecendo. Muitas portarias foram aprovadas sem essa pactuação. Eu recuperei esse ambiente. Eu acho que é um ponto importantíssimo, até para que as ideias surjam de maneira convergente, para você ter um ambiente de construção de consenso e não simplesmente de validação de uma proposta que vem do ministério. Por que um movimento? Porque a ideia é que nós não vamos ter uma resolução de curto prazo. O movimento vai ocorrer esse ano todo e vai continuar até nós recuperarmos as coberturas vacinais.
Valor: Corremos o risco de retorno de doenças já erradicadas?
Nísia: Corremos. Sarampo já voltou. A gente tem que conter para que não surjam novos casos. A poliomielite é uma ameaça clara porque a cobertura vacinal é muito baixa. Nós tivemos um caso recente no Peru. Então, isso tudo nos coloca em estado de alerta. Primeiro, o discurso antivacina que já existe em muitos países do mundo, tornou-se muito agudo em relação à vacinação para covid-19. Nós estamos fazendo ações em todo o Brasil e estamos fazendo com foco para aprofundar progressivamente em diferentes Estados uma estratégia de planejamento que nós estamos chamando de microplanejamento.
Valor: E os recursos?
Nísia: Nós estamos com a distribuição das vacinas feitas de maneira célere. Claro, que algumas regiões podem ter um pouco mais demora, mas, para todos os municípios, não há falta de vacina. Isso é muito importante. Quando nós assumimos o governo, não havia planejamento. Nós tivemos que recompor estoques, inclusive, de poliomielite e sarampo. Agora, fizemos a destinação de R$ 150 milhões para esse esforço de planejamento local. Não há falta de recurso para vacinação.
Valor: A senhora está dialogando com as empresas de planos de saúde, que enfrentam uma crise?
Nísia: Já tive diálogo muito positivo com o setor, porque eles apontam problemas que são comuns à atenção diretamente prestada pelo SUS, como a necessidade de investir em prevenção, de rever muitos procedimentos que são solicitados desnecessariamente. Temos possibilidade de ações conjuntas nos processos de judicialização da saúde, e há uma questão importante relacionada a fraudes.
Valor: A crise dos planos pode ter impacto no SUS?
Nísia: Já houve uma migração [de pacientes da rede privada para o SUS]. Isso já vinha acontecendo. Não tenho os dados precisos, mas existe essa migração pela crise econômica, pelo empobrecimento da população.