A advogada Silvia Pimentel, integrante e ex-presidente do Comitê da ONU para coibir a discriminação contra as mulheres, antecipa com exclusividade ao Informativo Compromisso e Atitude as recomendações que serão feitas aos países que ratificaram a Convenção CEDAW – como o Brasil. A brasileira Silvia Pimentel é advogada e cumpriu dois mandatos (2011 e 2012) como presidente do Comitê CEDAW (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres) das Nações Unidas. Ainda integrante do Comitê, a especialista em direitos das mulheres acompanha há anos o desenvolvimento de leis não-discriminatórias em diversos países. Para Silvia Pimentel, o Brasil conquistou um avanço legislativo enorme com o processo de transformações que culminou na promulgação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). Os desafios para garantir igualdade material entre homens e mulheres, entretanto, ainda são muitos. Entre eles, estão a necessidade de informar a população sobre os direitos das mulheres e também a urgência de capacitar os operadores do Direito e de serviços do Poder Público para que eles mesmos não sejam reprodutores de discriminações. É preciso também que o Estado conheça os diversos contextos em que vivem as brasileiras, desenvolva mecanismos eficazes e adaptados às diferentes necessidades e adote, ainda, meios para mensurar os resultados de suas ações e reavaliar políticas públicas. Para apontar caminhos nesse sentido, o Comitê CEDAW vem há dois anos preparando uma recomendação geral para todos os países que ratificaram a Convenção, que em 1979 foi o primeiro tratado internacional a dispor amplamente sobre os direitos humanos das mulheres. A partir da experiência de monitoramento dos diversos países que aderiram à Convenção, o Comitê busca detectar quais são as dificuldades de interpretação ou necessidades de orientações, formulando, assim, suas recomendações gerais. A expectativa é que a recomendação sobre acesso à Justiça seja lançada ainda este ano. A proposta da recomendação Há dois anos, apresentei a proposta de que o Comitê CEDAW elaborasse uma recomendação geral de acesso à Justiça, porque tinha muita clareza de que, se por um lado houve um avanço no que diz respeito às legislações não-discriminatórias nos países, a mudança legislativa e normativa não foi acompanhada pela implementação dessas mesmas leis. Houve, principalmente na América Latina e na Europa, um processo de revisão das Constituições, que hoje são mais garantidoras dos direitos fundamentais; então, certamente na perspectiva normativa há um avanço. Mas estamos insistindo nesta recomendação porque os Sistemas de Justiça, sistematicamente, não têm sido acessíveis às mulheres, seja no aspecto físico, econômico, social ou cultural. O interesse do Comitê CEDAW é desenvolver um diálogo com os países para dizer: queremos igualdade material! Para isso, há uma série de ações e medidas públicas, ou mesmo de regulamentação, que precisam ser realizadas. Obstáculos materiais e culturais Uma das formas de implementar os direitos é ter aparatos para fazer cumprir essas leis. Hoje ainda faltam estruturas físicas. Além disso, é preciso olhar outros fatores que podem dificultar o acesso a essas estruturas. Em alguns países é necessário, por exemplo, trabalhar com tradutores nos serviços, seja no Poder Executivo, seja no Judiciário, porque há mais de uma língua sendo usada pela população. Ou é preciso olhar para os casos em que o Poder Judiciário e os governos estão geograficamente muito distantes do meio rural – pense, por exemplo, nas mulheres ribeirinhas na nossa Amazônia; ou ainda em casos em que as barreiras são colocadas pela discriminação e pelos estereótipos – casos em que as mulheres têm o direito formal de ir ao Judiciário, mas não vão porque, se forem, serão socialmente reprovadas. Nesses casos, é papel daquele Estado mostrar que está trabalhando contra esses estereótipos comportamentais para fazer com que a mulher se sinta dona de seus direitos. A informação é o primeiro passo É necessário que as mulheres tenham noção de seus direitos. É preciso, em primeiro lugar, informá-las que têm direitos; em segundo, quais são e que elas podem exigir esses direitos; e, em terceiro, aonde ir para exigi-los. É preciso ainda promover a educação em direitos não só para as mulheres, mas para toda a população. Precisamos mostrar que nós, mulheres, não queremos acesso à Justiça porque somos vítimas, mas porque somos sujeitos de direitos. É preciso garantir acesso em diferentes realidades Há uma série de circunstâncias de gênero que agravam as dificuldades ligadas a causas econômicas. Isto efetivamente acontece em vários países, inclusive no Brasil. Se, quando precisa ir a uma instituição, a mulher tem que levar os filhos junto por não ter onde deixá-los, muitas vezes ela desiste. A pobreza, por outro lado, também pode impedir de pegar um ônibus, trem ou barco para chegar a um serviço, porque nem todas as mulheres vivem nas grandes cidades. Por isso, o Sistema de Justiça precisa conhecer as mulheres do seu País e ter as instituições acessíveis e adaptadas para atendê-las nas situações em que vivem, partindo da ideia de que não existe ‘a mulher’, no geral, mas mulheres vivendo em diferentes contextos. Nesse sentido, pode ser preciso criar novas instituições, novos procedimentos e mecanismos. Conscientização dos operadores do Direito Para que, além de existir, os equipamentos tenham qualidade, recomendamos que todos os partícipes do Sistema de Justiça passem por aquilo que, em inglês, estamos chamando ‘professional training’ (treinamento profissional), que vejo como uma construção de capacidades. Esses profissionais precisam internalizar o respeito à ideia de igualdade de gênero. Aumentar os serviços especializados, como as Varas e Juizados, é muito importante, mas não é o suficiente. É essencial promover a conscientização de todo o Sistema – de qualquer Vara e Tribunal – em relação ao gênero e ao direito nacional e internacional das mulheres – e, nesse sentido, eles precisam conhecer todos os mecanismos disponíveis para garantir direitos. Mas, infelizmente, ainda não há nas faculdades uma formação dos operadores do Direito que inclua a desigualdade de gênero, e essa formação é necessária para evitar que a esfera do Direito seja ela mesma reprodutora do preconceito. Integração Recomendamos também a criação de instituições que integrem serviços legais e sociais – o que estamos chamando de ‘one stop shop’ (um ponto de parada), que é algo parecido com a proposta da Casa da Mulher Brasileira: um único lugar onde as mulheres encontram vários serviços reunidos fisicamente. A Casa, por exemplo, é uma proposta interessante de integração dos serviços, é um piloto para as capitais. Mas, levando em consideração as questões geográficas, sobretudo em um País extenso como o Brasil, precisamos pensar, por exemplo, como é que uma Casa em Manaus se interliga com as mulheres do Amazonas. O desafio é esse: como fazer uma rede. Celeridade e resolutividade Recomendamos que os países conduzam uma análise crítica de gênero de seu Sistema de Justiça para fazer um diagnóstico sobre seu funcionamento. Reconhecemos que um dos maiores problemas ainda é fazer com que os responsáveis pelos crimes contra as mulheres sejam efetivamente condenados. Posso dizer que aqui, no Brasil, temos um índice muito grande de crimes não solucionados, de modo geral, e quando se trata de mulheres o índice é ainda maior. A sensação de impunidade precisa ser enfrentada. Recomendamos também que haja ganhos em celeridade. Ainda, destacamos a importância de oferecer às mulheres que não têm meios um advogado para defender gratuitamente suas causas, porque é extremamente importante que ela tenha alguém acompanhando o Estado. E é importante também que as mulheres participem diretamente do Sistema de Justiça, como defensoras, promotoras e juízas.
|
Fonte: Portal Compromisso e Atitude
|